Observatório Constitucional

Em busca do ethos constitucional brasileiro

Autores

  • Melina Girardi Fachin

    é professora associada da Universidade Federal do Paraná (com estágio pós-doutoral na Universidade de Coimbra no Instituto de Direitos Humanos e Democracia) doutora em Direito Constitucional (com ênfase em direitos humanos) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo visiting researcher da Harvard Law School (2011) mestre em Direitos Humanos pela PUC-SP bacharel em Direito pela UFPR e advogada sócia de Fachin Advogados Associados.

  • Rodrigo Luís Kanayama

    é doutor em Direito do Estado pela UFPR professor do Departamento de Direito Público da UFPR e advogado em Curitiba.

20 de maio de 2023, 8h00

No intuito de identificar se há um ethos no constitucionalismo brasileiro e qual seria sua relevância, esta reflexão pretende trazer uma perspectiva constitucional pátria, com foco, sobretudo, no atual paradigma, estabelecendo paralelo com o livro do professor Alexander Tsesis, Constitucional Ethos, recém-traduzido para o português. O objetivo é compreender se o constitucionalismo brasileiro, devido aos seus respectivos contextos históricos e complexidades, possui um ethos e entender o quão suscetível a mudanças e ameaças ele é.

É certo que a Constituição brasileira está muito distante da Constituição dos Estados Unidos. Assim, apesar de a ideia de ethos ter sido construída sob a análise da Constituição dos Estados Unidos da América, o intento é promover um estudo comparativo uma vez que sua existência é viva e contextualizada, conectada aos sujeitos e sujeitas que formam a noção plural de "povo".

"Ethos" é um termo que se origina do grego e é usado para descrever os valores, crenças e caráter moral de uma pessoa, grupo ou sociedade. No contexto do Direito Constitucional e da teoria constitucional, refere-se ao conjunto de valores fundamentais, princípios e ideais que permeiam uma Constituição ou ordem constitucional. É a expressão do espírito ou identidade de um sistema constitucional, refletindo as aspirações e os compromissos fundamentais de uma sociedade.

O livro Constitutional Ethos, de Alexander Tsesis, oferece uma análise profunda do espírito subjacente à ideologia constitucional e seu papel na formação e interpretação da Constituição dos Estados Unidos. O autor explora como os princípios e valores subjacentes à Constituição moldam a cultura política americana e influenciam a evolução do Direito Constitucional. Tsesis examina diversos tópicos, incluindo liberdade de expressão, igualdade, privacidade e direitos fundamentais, destacando a importância de compreender o espírito constitucional para uma interpretação e aplicação adequadas da Constituição.

A referida obra, ainda, destaca a necessidade de preservar e fortalecer o ethos constitucional como uma base sólida para a democracia e a proteção dos direitos fundamentais. Como aduz Tsesis em seu livro, o ethos da Constituição não é uma "criação textual", mas um "princípio de justiça que o grupo coletivo, comumente referido como 'o povo', reconhece ter status normativo superior a qualquer maioria contemporânea" [1].

O ethos não é, portanto, o mero texto escrito da Constituição; representa, nas palavras de Tsesis, "um princípio que capacita indivíduos a prosperar buscando suas missões de vida únicas, ao mesmo tempo em que mantém padrões coercitivos para que o governo promova políticas provavelmente alcançar bens coletivos" [2]. Assim, conforme afirma o autor mencionado, o ethos da Constituição deve abranger a pluralidade social que compõe "nós, o povo" de modo contextualizado.

Tsesis demonstra que o ethos — que decorre justamente das ideias e antecedentes históricos que desembocaram na promulgação da Constituição norte-americana — obriga os três poderes do governo e legitima o exercício do poder em todos os níveis. É no axioma da proteção dos direitos e do alcance do bem comum que repousa o espírito da Constituição que deve ser sempre considerado em sua leitura e aplicação.

Uma das principais teses da obra é que mesmo as leis promulgadas por maiorias populares não têm autoridade, a menos que estejam de acordo com o axioma central do constitucionalismo, qual seja: a proteção dos direitos para o bem comum. Este princípio de governança constitucional sintetiza a proteção dos direitos individuais decorrentes da Declaração de Independência e do Preâmbulo, antecedendo a própria Constituição norte-americana.

Embora Constitutional Ethos, de Alexander Tsesis, se concentre no contexto constitucional dos Estados Unidos da América, seu conteúdo também tem relevância para o direito brasileiro. Assim como nos EUA, identificar e compreender o ethos constitucional brasileiro é fundamental para a interpretação e aplicação corretas da Constituição. A preservação e fortalecimento do espírito constitucional no Brasil são essenciais para garantir uma sociedade justa, democrática e respeitadora dos adágios da dignidade humana.

Por não haver uma única Constituição brasileira, é difícil ou até mesmo impossível estabelecer um ethos estável e perene no constitucionalismo brasileiro. A Constituição, por certo, não é resultado do Big Bang, como se o tempo nem mesmo existisse antes dela. Ela é a forma jurídica pela qual uma sociedade politicamente organizada expressa sua autonomia. "Uma constituição é sempre a tradução do equilíbrio político de uma sociedade em regras fundamentais" [3], ensina Caio Prado Jr.

A história constitucional brasileira é bastante complexa, tanto pela sucessão formal de oito modelos constitucionais, quanto pelos fatos políticos que influenciaram e antecedem cada uma delas. Houve muitas Constituições brasileiras [4] (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967, 1969, 1988), sendo que das últimas sete no período republicano: quatro promulgadas (1891, 1934, 1946, 1988) e três impostas (1937, 1967, 1969 [5]).

No espírito do constitucionalismo, não pode haver ethos senão onde houver democracia. Assim, ao perquirir a partir de nossos textos constitucionais democráticos, não se pode encontrar, de acordo com a teoria de Alexander Tsesis, um ethos constitucional brasileiro comum entre essas Constituições. Senão vejamos:

A Constituição de 1891 foi resultado de uma ruptura de cima para baixo. A Constituição de 1934 foi brevíssima e sucumbiu ao Regime do Estado Novo de Getúlio Vargas em 1937. Na tentativa de restabelecer a democracia novamente, a Constituição de 1946 foi promulgada, comprometida com o ideal democrático do Estado de Direito, mas, não conseguiu pacificar a democracia brasileira por muito tempo, surgindo outra ruptura em 1964 com o golpe civil-militar. Após mais de duas décadas de ditadura, a democracia formal foi restabelecida. A Constituição atual surge como marco da transição democrática, ainda em andamento, e que permitiu o restabelecimento do Estado de Direito e a tutela reforçada dos direitos humanos. O resultado — o texto da Constituição Brasileira de 1988 — foi um pacto provisório entre as inúmeras forças políticas em disputa no regime de transição.

Nota-se que as Constituições democráticas no Brasil surgiram devido a fraturas institucionais. Do Império à República, da República Velha ao Estado Novo, do Estado Novo à Terceira República, desta à ditadura civil-militar e, finalmente, à democracia. À luz dessa observação, não se pode afirmar a existência de um ethos inexaurível que subjaz à tradição constitucional democrática brasileira. Pelo menos, não como imanente na ordem constitucional pátria, ou seja, não como um espírito comum entre as Constituições promulgadas, como a vontade do "povo", aqui tomado na sua acepção complexa.

Voltamos, então, os olhos ao presente para nos concentrar na Constituição de 1988, e repetir a pergunta se há ethos na atual Constituição brasileira.

A proteção constitucional contemporânea é, como dito, fruto e motivo da transição (necessária e ainda inacabada e em curso), na medida em que se enraíza na tríade: preservação da democracia, Estado de direito e promoção dos direitos humanos. Esta ampliação de horizontes constitucionais corrobora com a inclusão e o empoderamento dos direitos, especialmente para grupos vulneráveis e desfavorecidos, que, por sua vez, é a chave para a consolidação democrática e a transição justa para a democracia.

Com quase 35 anos de idade, nosso texto constitucional ainda é jovem e enfrentou, e enfrenta, testes difíceis. Foi alterada 128 vezes pela via constituinte derivada, o que, de todo modo, coloca em questão sua permanência saudável no tempo. Diante dessa plasticidade constitucional, pode ser também bastante difícil extrair um ethos da Constituição de 1988, porque, em nossa tradição, ao contrário da tradição norte-americana, a Constituição está abrindo o caminho, e não pavimentando algo que já estava pronto.

Considerando que uma Constituição não nasce como Constituição, mas se torna; ela é uma declaração contextualizada dotada de um sentido performativo [6]. Assim será também o ethos, refletindo os valores enraizados na Constituição de 1988, como a dignidade humana, a igualdade, a liberdade e a solidariedade.

O ethos não segue (não é uma consequência) o texto da Constituição, mas o texto da Constituição o revela. Como afirma Alexander Tsesis, "O ethos constitucional não é, no entanto, uma criação textual. Refere-se, antes, ao princípio de justiça que 'o povo', reconhece ter um status normativo mais elevado do que qualquer maioria contemporânea" [7]. Todavia, reconhece-se difícil estabelecer o que significa "o povo" e de que forma seu espírito é reflexionado na Constituição.

Se não houve tempo para a fundação de um ethos fortalecido no constitucionalismo brasileiro até agora, que enfrentou atritos e retrocessos, o ethos constitucional brasileiro pós-88, é gestado no sentido do bem comum, dos direitos do povo, do bem-estar, visando a uma sociedade plural e com respeito às outras e aos outros. Voltamos a Alexander Tsesis quando ele afirma que "o ethos constitucional é um princípio que capacita os indivíduos a prosperar ao buscar suas próprias missões de vida únicas, ao mesmo tempo em que mantém padrões coercitivos para que o governo avance políticas capazes de alcançar bens coletivos" [8].

Experienciamos nos últimos anos um teste da democracia e legitimidade do constitucionalismo brasileiro com o populismo autoritário que tomou conta do cenário político. Ainda que a desdemocratização recente tenha deixado marcas profundas, a institucionalidade constitucional sobreviveu, quiçá pavimentando o ethos no horizonte constitucional futuro no Brasil, impedindo inclusive os avanços autoritários do amanhã.

É de extrema importância identificarmos o ethos do constitucionalismo brasileiro para enfrentar e refrear os retrocessos autocratas vividos e ainda vivos como ameaças à nossa democracia. Um ethos constitucional sólido é essencial para fortalecer os princípios democráticos, a proteção dos direitos humanos e a preservação das instituições republicanas. A clareza e a firmeza do nosso espírito constitucional são fundamentais para construir uma sociedade justa, inclusiva e livre, na qual os valores democráticos prevaleçam sobre qualquer tentativa passada ou futura de retrocesso autoritário.

 


[1] Alexander Tsesis. Constitutional Ethos: Liberal Quality of the Common Good (Oxford University Press, 1rd edn, NY, 2017, p. 85.

[2] Id.

[3] PRADO JR., Caio. Evolução política do Brasil: Colônia e Império (Brasiliense, 13th edn, SP, 1993, 48).

[4] O objetivo da presente reflexão não é traçar a história do constitucionalismo brasileiro, por isso o texto explora apenas os textos constitucionais.

[5] Pela sua extensão e materialidade, apesar da forma de emenda constitucional, pelas funções e sentidos que essa apresentação assume como Constituição, consideramos a emenda constitucional de 1969 como uma verdadeira constituição.

[6] DERRIDA, Jacques. Declarations of independence. In: ROTTEMBERG, Elizabeth (ed.). Negotiations: interventions and interviews, 1971-2001. Stanford: Stanford Univ. Press, 2002. p. 46-54. p. 47.

[7] Ibid. p. 85.

[8] Id.

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