Prática Trabalhista

A (des)lealdade processual e a advocacia predatória associativa

Autores

  • Ricardo Calcini

    é professor advogado parecerista e consultor trabalhista. Atuação estratégica e especializada nos Tribunais (TRTs TST e STF). Coordenador trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social da Universidade de São Paulo (Getrab-USP) do Gedtrab-FDRP/USP e da Cielo Laboral.

  • Leandro Bocchi de Moraes

    é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito (EPD) pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) pós-graduado em Diretos Humanos e Governança Econômica pela Universidade de Castilla-La Mancha pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos (IGC/Ius Gentium Coninbrigae) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho da Universidade de São Paulo (NTADT/USP).

18 de maio de 2023, 8h00

Nos últimos dias, foi veiculada uma matéria jornalística na qual a Justiça do Trabalho condenou o autor de uma ação trabalhista, juntamente com a sua testemunha, ao pagamento de uma multa por litigância de má-fé, no importe de 2% do valor da causa, por entender que existiam indícios e elementos fervorosos da prática de advocacia predatória [1].

Ao proferir a decisão, a juíza destacou: "Assim, em acontecimento cósmico raro, é necessário chegar à conclusão de que o escritório Sanches e Sanches representa apenas trabalhadores que vivem as mesmas violações trabalhistas, provavelmente rejeitando os demais empregados, já que a conclusão oposta seria a prática de advocacia predatória" [2].

Entrementes, ao prolatar a sentença, a magistrada determinou a expedição de ofícios à Corregedoria do TRT-SP da 2ª Região e à Ordem dos Advogados do Brasil, para que fossem adotadas as diligências cabíveis. Aliás, a OAB Nacional é parte integrante do grupo que discute esta temática no Conselho Nacional de Justiça (CNJ), participando dos debates e sugerindo ações para o enfrentamento estrutural da litigância predatória associativa [3].

Por certo, a matéria divulgada causou uma enorme polêmica entre advogados e advogadas de todo o país, tanto que o assunto foi indicado por você, leitor(a), para o artigo da semana na coluna Prática Trabalhista, da revista Consultor Jurídico (ConJur) [4], razão pela qual agradecemos o contato.

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Dito isso, surgem algumas indagações: o que seria a prática de advocacia predatória? Quais seriam as consequências de tal conduta? O que diz a legislação sobre esta temática?

Com efeito, na seara laboral, após o advento da Lei nº 13.467/2017, foram incluídos os artigos 793-A a 793-D na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que tratam da responsabilidade por dano processual [5], de modo que poderá haver responsabilização, por perdas e danos, de quem litigar, de má-fé, como reclamante, reclamado ou interveniente.

Impende destacar que as inovações introduzidas na norma celetista tiveram como base as disposições já existentes no Código de Processo Civil (CPC) de 2015, em seus artigos 79 a 81 [6].

De outro norte, a Recomendação nº 127, de 15 de fevereiro de 2022, do CNJ, preconiza aos tribunais a adoção de cautelas visando a coibir a judicialização predatória que possa acarretar o cerceamento de defesa e a limitação da liberdade de expressão [7]. Nesse desiderato, a referida recomendação dispõe, em seu artigo 2º, que "entende-se por judicialização predatória o ajuizamento em massa em território nacional de ações com pedido e causa de pedir semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas, a fim de inibir a plena liberdade de expressão".

Bem por isso, pode-se entender como advocacia predatória a propositura em massa de ações, cuja elaboração das peças processuais é feita no formato popularmente conhecido como "Ctrl+C e Ctrl+V", quando as petições são elaboradas sem nenhuma fundamentação jurídica consistente, repetindo-se quase que automaticamente pedidos e a causa de pedir.

Se é verdade que a Constituição, por um lado, assegura o direito de ação no inciso XXXV de seu artigo 5º [8], lado outro, as partes devem agir com lealdade e boa-fé, conforme disposto no artigo 422 do Código Civil [9].

Acerca do tema, oportunos são os ensinamentos do juiz do Trabalho dr. Marco Antônio dos Santos [10]:

"O comportamento ético deve ser observado em todos os segmentos da sociedade, inclusive a conduta adotada pelos sujeitos dos processos judiciais (reclamante, reclamada e terceiros intervenientes), conforme previsão no ordenamento jurídico, nos termos dos arts. 79 a 81 do CPC e a Lei n. 13.467/2017, a qual reformulou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

A ausência de reprimenda aumenta, substancialmente, a repetição de tais atos ensejando o incremento de demandas e incidentes desnecessários no curso do processo trabalhista, resultando em dispêndio de tempo, custos, descumprimento do princípio constitucional da duração razoável do processo e perda de credibilidade perante a sociedade, que seja dos sujeitos do processo; quer seja do próprio Poder Judiciário.

(…) Usar do processo para conseguir objetivo ilegal também tem se mostrado prática comum nos tribunais, exemplificando: postular declaração de vínculo empregatício quando era efetivamente sócio com vistas a eximir das responsabilidades da pessoa jurídica perante credores, inclusive trabalhista, face a insuficiência patrimonial empresarial."

E, mais, conquanto a regra processual seja pela presunção da boa-fé, ao passo que a má-fé necessita ser efetivamente comprovada, fato é que uma vez constatados indícios de que o processo foi utilizado fora dos padrões éticos admitidos, indiscutivelmente poderá haver responsabilização.

Nesse diapasão, colhe-se o exemplo do Centro de Inteligência do Tribunal Regional do Trabalho (TRT-RS) da 4ª Região, que foi instituído em agosto de 2021, o qual é responsável por planejar e implementar ações que asseverem tratamento apropriado das demandas repetitivas e de massa [11].

Ocorre que há que se ter sempre cautela na imputação da litigância de má-fé, e, por conseguinte, da prática de advocacia predatória, sob pena de se impedir o acesso à Justiça por receio de uma condenação indevida.

Aliás, já houve pronunciamento do TRT-SP da 2ª Região sobre o assunto [12]. Ao proferir o seu voto, a desembargadora relatora, ponderou:

"A caracterização da litigância de má-fé está condicionada à prática de ato previsto no rol taxativo do artigo 793-B da CLT, não se admitindo ampliações, o que não se verifica na conduta do reclamante. O fato de os pedidos da presente reclamação ser idêntico a outros processos de outros empregados, por si só, não revela prática fraudulenta. Deixou a reclamada de demonstrar, efetivamente, ser vítima de advocacia predatória e conluio dos empregados, como alega em suas razões recursais."

De igual modo, também foi o entendimento do TRT da 15ª Região, ao julgar um caso na qual a empresa pleiteava a aplicação da litigância de má-fé por prática de advocacia predatória [13]. Destacou o desembargador relator:

"O fato de a empresa reclamar ter mais de 80 ações trabalhistas contra si, muitas delas supostamente patrocinadas pelo mesmo patrono, não caracterizadas, por si só, advocacia predatória, mas sim evidência, em tese, o descumprimento de normas trabalhistas em relação a muitos funcionários. Sobre a alegação de captação de clientes e advocacia predatória, o reclamado, se desejar, pode fazer denúncia contra o patrono da reclamante à Ordem dos Advogados do Brasil, mesmo porque não veio a estes autos documentos que comprovem tal alegação, como petições iniciais judiciais, e/ou que os interessados nos pedidos não sejam os próprios reclamantes."

Em arremate, vale lembrar que o processo tem por maior finalidade a entrega da prestação jurisdicional em razão dos conflitos de interesses, de modo que não deve ser utilizado para outros fins que não sejam lícitos ou para obtenção de vantagens indevidas. Indubitavelmente que, uma vez constatada e comprovada a atuação de modo temerário no caso concreto, é forçoso a imputação de responsabilidades civis e administrativas aos envolvidos.

 


[4] Se você deseja que algum tema em especial seja objeto de análise pela coluna Prática Trabalhista, entre em contato diretamente com os colunistas e traga sua sugestão para a próxima semana.

[7] Disponível em https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/4376. Acesso em 15.5.2023.

[9] Art. 422. Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé.

[10] CLT 2020 comparada e comentada: pelos magistrados do TRT da 2ª Região precedentes e jurisprudência do TST e TRT2 / Fábio Ribeiro da Rocha, Lorena de Mello Rezende Colnago, Farley Roberto Rodrigues de Carvalho Ferreira, coordenadores – São Paulo: LTr, 2020. Página 817 e 818.

Autores

  • é professor sócio consultor de Chiode e Minicucci Advogados | Littler Global. Parecerista e advogado na Área Empresarial Trabalhista Estratégica. Atuação especializada nos Tribunais (TRTs, TST e STF). Docente da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Coordenador Trabalhista da Editora Mizuno. Membro do Comitê Técnico da Revista Síntese Trabalhista e Previdenciária. Membro e Pesquisador do Grupo de Estudos de Direito Contemporâneo do Trabalho e da Seguridade Social, da Universidade de São Paulo (Getrab-USP), do Gedtrab-FDRP/USP e da Ceilo Laboral.

  • é pós-graduado lato sensu em Direito do Trabalho e Processual do Trabalho pela Escola Paulista de Direito, pós-graduado lato sensu em Direito Contratual pela PUC-SP, pós-graduando em Direitos Humanos pelo Centro de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro da Comissão Especial da Advocacia Trabalhista da OAB-SP, auditor do Tribunal de Justiça Desportiva da Federação Paulista de Judô e pesquisador do núcleo O Trabalho Além do Direito do Trabalho, da USP.

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