Interesse Público

Crônica jurisprudencial sobre um "polimorfismo organizatório"

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18 de maio de 2023, 8h00

Na última semana, a ConJur noticiou dois julgamentos dos principais sodalícios do país, a versar a temática do regime jurídico das empresas estatais.

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Na ADPF 896, ministra Rosa Weber, o Plenário do STF negou pedido da Minas Gerais Administração e Serviços S.A. (MGS), empresa pública de capital fechado, para que seus débitos judiciais fossem submetidos ao regime constitucional dos precatórios. De acordo com o voto da ministra relatora, a empresa estatal mineira não desenvolve exclusivamente serviços públicos essenciais, mas exerce atividade econômica em regime concorrencial, pelo que se deve subordinar ao sistema geral de execuções judiciais e não ao sistema fazendário privilegiado.

Já a 2ª Turma do STJ apreciou o REsp 2.036.038/RJ, ministro Francisco Falcão, proferindo decisão segundo a qual o regime dos precatórios é plenamente aplicável à Rio Trilhos (Companhia de Transportes sobre trilhos do Estado do Rio de Janeiro), sociedade de economia mista prestadoras de serviço público próprio do Estado, de natureza não concorrencial. O STJ reformou acórdão do TJ-RJ que afastava, ao argumento de se tratar de sociedade de economia mista, a impenhorabilidade de bens da estatal.

Os julgados do STF e do STJ alinham-se à tendência jurisprudencial, que vem de se sedimentar nos últimos tempos (ver, por todos, os Temas 235 [1], 508 [2], 532 [3] e 1.140 [4] do STF), de reconhecer que a organização administrativa brasileira é caracterizada por um polimorfismo organizatório [5], que ultrapassa as raias do Decreto-lei 200/67.

Verdade seja dita. A doutrina brasileira, na esteira das lições de Celso Antônio Bandeira de Mello [6], há bastante tempo já sustentava uma dicotomia entre empresas estatais exploradoras de atividade econômica e empresas estatais prestadoras de serviços públicos, reconhecendo-lhes diferenças em relação ao regime jurídico aplicável.

E isso, convém complementar, a despeito da existência de empresas estatais, alheias a essa dualidade (atividade econômica/serviço público), dedicadas ao exercício de atividades, tais como: planejamento econômico (Empresas Brasileira de Pesquisa Energética), fomento estatal (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), fiscalização (Empresa de Transportes e Trânsito de Belo Horizonte — BHTrans).

Deveras, esse rol de atividades detectáveis no universo das empresas estatais brasileiras revela que o regime jurídico aplicável a elas não decorre apenas de disposições constitucionais ou da Lei 13.303/16 (Estatuto Jurídico das Empresas Estatais), senão também, e tão importante quanto, de uma análise pormenorizada, entre outros aspectos, das leis de criação e do tipo de atividade que desempenham, além de sua submissão ou não a um regime concorrencial.

Também emblemáticas, ao mister, as decisões do STF a respeito das autarquias profissionais (ADC 36, da ADI 5.637, ADPF 367), corporações que sempre foram tradicionalmente estudadas com perfil de autarquias e subordinadas a regime predominantemente público. Na oportunidade, o STF decidiu acertadamente que "os Conselhos profissionais gozam de ampla autonomia e independência; eles não estão submetidos ao controle institucional, político, administrativo de um ministério ou da Presidência da República, ou seja, eles não estão na estrutura orgânica do Estado. Eles não têm e não recebem ingerência do Estado nos aspectos mais relevantes da sua estrutura — indicação de seus dirigentes, aprovação e fiscalização da sua própria programação financeira ou mesmo a existência, podemos chamar, de um orçamento interno", [concluindo que] "merece ser franqueado ao legislador infraconstitucional alguma margem de conformação na discriminação do regime aplicável a esses entes, entendida a necessidade de se fazer incidir certas exigências do regime jurídico de direito público, na linha do afirmado na ADI 1.717, mas bem entendida também a importância de se identificar aspectos que destoam do regime puro de Fazenda Pública" [7].

As orientações jurisprudenciais citadas ao longo deste ensaio admitem a noção de polimorfismo organizatório em cada uma das unidades federativas, a demonstrar que, não obstante o tratamento legislativo dado às entidades da administração indireta em nível federal e além (v.g., Decreto-lei 200/67, artigos 4º e 5º), particularidades sobressaem e dependem sempre das opções políticas feitas pelo legislador ordinário.

Há tempos escrevi (aqui na ConJur) que o regime jurídico das administrações públicas no Brasil é híbrido e variável, a mesclar elementos, institutos e conceitos de direito público e de direito privado, aspectos de legalidade e de autonomia das vontades. E que a maior ou menor incidência das regras de direito público e de direito privado nas relações travadas pelas administrações públicas depende de fatores como: (a) da pessoa jurídica que exerce a atividade administrativa (sujeito), seja ela pertencente ou não à administração pública; (b) do tipo de atividade administrativa desenvolvida (regulação, polícia, serviços públicos, atividade econômica, fomento); (c) do instrumento jurídico utilizado para efetivar a ação administrativa (ato ou contrato); (d) da finalidade perseguida pela atividade administrativa; (e) dos direitos e interesses legitimamente envolvidos nessa persecução [8].

Com efeito, a utilização de formas múltiplas de atuação pelo Estado (ou em pareceria com o Estado), vinculadas ao enfrentamento das necessidades concretas da administração pública, conduz à imprescindibilidade de se raciocinar em torno da existência de variados meios ou formas (polimorfismo) para atingir finalidades públicas que o ordenamento prescreve ao Estado. Não se trata de alcançar relevantes fins públicos por quaisquer meios, como adverte argutamente Fabrício Motta [9], mas de alcançá-los por meios legítimos e variados, consideradas fundamentalmente as consequências práticas das decisões (artigo 20 da Lindb).

 


[1] Tema 235: "Os serviços prestados pela Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos – ECT, inclusive aqueles em que a empresa não age em regime de monopólio, estão abrangidos pela imunidade tributária recíproca (CF, art. 150, VI, a e §§ 2º e 3º)".

[2] Tema 508: "Sociedade de economia mista, cuja participação acionária é negociada em Bolsas de Valores, e que, inequivocamente, está voltada à remuneração do capital de seus controladores ou acionistas, não está abrangida pela regra de imunidade tributária prevista no art. 150, VI, 'a', da Constituição, unicamente em razão das atividades desempenhadas."

[3] Tema 532: "É constitucional a delegação do poder de polícia, por meio de lei, a pessoas jurídicas de direito privado integrantes da Administração Pública indireta de capital social majoritariamente público que prestem exclusivamente serviço público de atuação própria do Estado e em regime não concorrencial."

[4] Tema 1.140: "As empresas públicas e as sociedades de economia mista delegatárias de serviços públicos essenciais, que não distribuam lucros a acionistas privados nem ofereçam risco ao equilíbrio concorrencial, são beneficiárias da imunidade tributária recíproca prevista no artigo 150, VI, a, da Constituição Federal, independentemente de cobrança de tarifa como contraprestação do serviço."

[5] Essa vertente teórica é trabalhada mais amiúde em excertos doutrinários estrangeiros. Em Portugal, vale conferir: MOREIRA, Vital. Administração Autónoma e Associações Públicas. Coimbra: Almedina, p. 256. Na França, existem arestos do Conseil d’État e do Tribunal de Conflitos a versar sobre o conceito de ‘atos administrativos editados por organismos privados’, respectivamente, o arrêt Morand (1946) e o caso Barbier (1968). Nos EUA, são delegadas a privados tarefas públicas como a gestão de prisões, a elaboração de códigos e regramentos para o exercício de atividades econômicas, a certificação e qualificação de instituições (por ex. escolada privadas e hospitais), o licenciamento e a regulação de atividades (ver, sobre o tema, GONÇAVES, Pedro Antônio Pimenta da Costa. Entidades Privadas com Poderes Públicos: o exercício de poderes públicos de autoridade por entidades privadas com funções administrativas. Coimbra: Almedina, 2008. p. 60-73).

[6] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo, 7ª ed., São Paulo: Malheiros, 1995. p. 104 e segs.

[7] Antes mesmo da decisão final do STF, ver aqui na ConJur: FERRAZ, Luciano. Regime Jurídico aplicável conselhos profissionais está nas mãos do STF. Disponível em https://www.conjur.com.br/2017-mar-02/interesse-publico-regime-juridico-conselhos-profissionais-maos-stf. Acesso em 16.05.2023.

[8] FERRAZ, Luciano. Regime Jurídico das Administrações Públicas é Híbrido. Disponível em https://www.conjur.com.br/2016-abr-14/interesse-publico-regime-juridico-aplicavel-administracoes-publicas-hibrido. Acesso em 16.05.2003.

[9] MOTTA, Fabrício. Prefácio à obra de FERRAZ, Luciano. Controle e Consensualidade, Belo Horizonte: Forum, 2019.

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