Pedido de nulidade sobre o procedimento não se confunde com o mérito
18 de maio de 2023, 21h30
O pedido de nulidade sobre um procedimento penal deve ser analisado imediatamente e não se confunde com o mérito para ser avaliado somente no momento da sentença.

As nulidades suscitadas devem ser conhecidas como preliminares ao mérito, essa é a lógica certa, de maneira imediata, antes de qualquer ato subsequente à instrução processual, pois irá reger e contaminar tudo o que acontece a partir daquele momento.
Assim, se um reconhecimento fotográfico é denunciado como nulo em seu procedimento no inquérito policial, não poderá sua análise ser adiada para avaliação junto com a sentença penal, pois não pode haver atos, questionamentos ou provas que dele sejam frutos durante a instrução processual. É dizer, evita-se que haja um contágio de todos envolvidos, principalmente da acusação, pois a função do processo penal não é validar uma nulidade sobre a forma, mas julgar um caso com base em elementos válidos e legais.
Um processo com vários elementos de prova não precisa de discursos simplicistas que autorizam irregularidades sobre a perspectiva de condenar a qualquer custo. A política criminal que tem por base "dar respostas a sociedade a qualquer preço" é um dos maiores males do processo penal. Tamanha é a crise desse modelo, que aqueles que investigam, acusam e julgam, acreditam que a nulidade de forma e mérito são passíveis de confusão com a análise de um fato, isto é, seriam os fins que justificam os meios. Se o fato é quem é a pessoa, por certo que a validade do procedimento de reconhecimento com a pessoa não se confunde.
Não se trata somente de evitar que um inocente seja envolvido no processo. E, também, ninguém deseja que culpados sejam absolvidos por "discursos" vazios. A verdade é que nulidade não é discurso vazio, como também forma não é fato. Isso precisa ser repetido incansavelmente, até que rompa uma barreira e entre na surdez seletiva da justiça penal. Em sua grande maioria, as provas colhidas fora da forma processual são realizadas somente em razão de uma cultura que é fomentada pela validação do judiciário, isto é, preguiça em muitos dos casos, pois poderiam terem sido feitas dentro das regras. O reconhecimento de pessoas é o maior exemplo disso. A nulidade destes atos ocorre por simples liberalidade do agente responsável que escolhe diuturnamente e livremente não respeitar as regras.
No momento que a justiça penal entender e passar a ter uma posição transparente e diretiva, em que pedidos de nulidade sobre procedimentos não irão se confundir com o mérito de um processo penal, ela incentivará que todo um ecossistema seja modificado em favor do respeito as regras.
A importância dos HC números 598.886/SC e 652.284/SC se dá no nível embrionário de tentar romper com a linha de um entendimento cultural e anterior sobre a nulidade de reconhecimentos fotográficos, feitos em desacordo com o procedimento legal previsto (artigo 226 do CPP):
"O reconhecimento de pessoas deve, portanto, observar o procedimento previsto no artigo 226 do Código de Processo Penal, cujas formalidades constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime, não se tratando, como se tem compreendido, de 'mera recomendação" do legislador'."
No entanto, assim como são as políticas corporativas dentro das empresas, não basta estar escrito, é preciso que aqueles que tem o poder de controle deem o exemplo para que diretrizes sejam seguidas. Cabe mencionar que o CNJ emitiu a Portaria nº 209, de 31/08/2021, para desenvolver novas diretrizes "com vistas a evitar condenação de pessoas inocentes", no entanto, o maior exemplo deve vir do judiciário, do dia a dia forense, quando deixar de tratar nulidades sobre a forma como algo que possa ser vinculado ao mérito de um processo.
Incansavelmente vem sendo destacada a decisão proferida no HC 712.781 no STJ de relatoria do ministro Rogério Schietti, quando sinaliza que a falta de rigor técnico na produção da prova colhida em total desacordo com as regras probatórias pertinentes é nula. Trata-se de um julgado exemplar, pois permite separar, na prática, aquilo que é nulidade frente aquilo que seria mérito de um processo e que estes dois elementos não se confundem. O primeiro é de nulidade e o segundo é de entender se um reconhecimento fotográfico válido seria o suficiente para uma condenação.
Um pedido de nulidade nunca poderia depender da avaliação prévia sobre o merecimento de um julgado que condena ou absolva. Para ilustrar, quando existe uma nulidade sobre uma prova e, a partir disso sobrevém a inexistência de elementos para continuar um processo ou para condenar, não parece que haja confusão entre o mérito e a nulidade. A nulidade é declarada autonomamente e preliminarmente e, posteriori, a falta de elementos é que levará o juiz a declarar a absolvição, sendo notadamente distinto cada momento decisório.
Com certeza as circunstâncias do procedimento de reconhecimento influenciam diretamente em sua eficácia probatória. Ao dizer que um reconhecimento nulo pode ser avaliado junto com o mérito, o que o julgador decidiu foi por sua validade, pois todo um rito será conduzido mantendo aquele ato no processo. Por isso, não se pode admitir como válida, por omissão de posição do juiz, uma identificação pessoal ou fotográfica que não esclareça circunstanciadamente as condições em que fora realizada e que não tenha seguido um rito que lhe foi imposto por lei. Diferente é debater sobre a suficiência probatória de um reconhecimento válido e sem outros elementos para condenar alguém. Neste caso, quando a forma for respeitada, o que se coloca é o peso epistemológico sobre o mérito de uma condenação que usa exclusivamente deste reconhecimento legal.
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