Opinião

Direito à autodeterminação informativa e o processo penal

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18 de maio de 2023, 6h02

A ministra Rosa Weber, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), pautou para a próxima semana (dia 24) o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6.305, e outras correlatas, nas quais foi proferida decisão liminar pelo ministro Luiz Fux, em janeiro de 2020, que suspendeu a eficácia de diversos dispositivos do Código de Processo Penal (CPP), introduzidos ou alterados pela Lei 13.964/2019.

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Dentre os dispositivos cuja eficácia foi suspensa, deu-se especial destaque aos que instituíram o juiz das garantias (artigo 3º-A a 3º-F do CPP). Pouca ou nenhuma atenção dedicou-se a outra relevante inovação legislativa: o reconhecimento, atrelado ao âmbito da investigação criminal, do direito à autodeterminação informativa, um direito que confere ao indivíduo a faculdade de controlar as informações que lhe digam respeito, e de ter conhecimento sobre quem sabe e o que sabe sobre si, quando e em que ocasião [1].

Segundo o artigo 28 do CPP, ainda suspenso pela decisão liminar:

"Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei."

Extraído do correlato dever atribuído ao Estado, o direito à autodeterminação informativa aqui se manifesta, mais precisamente, na feição de um direito do investigado de ser comunicado sobre a preexistência de uma investigação criminal arquivada, o que haveria de permitir ao cidadão, em consequência, conhecer a extensão e a profundidade com que tratados seus dados pessoais.

Supre-se, assim, uma enorme lacuna jurídica, na medida em que, pelo regime atual, determinado o arquivamento do inquérito, nenhuma medida comunicacional se adota em relação a quem tenha sofrido a ação investigatória do Estado. Ou seja, o indivíduo que tenha sido investigado de forma não ostensiva talvez nunca venha a saber que o foi; assim como provavelmente nunca venha a saber que seus dados pessoais, inclusive os mais sensíveis (v.g., dados bancários, fiscais, telemáticos, telefônicos), possam ter sido ou tenham efetivamente sido tratados pelo Estado, que ao final de tudo concluiu pela inexistência de causa penal provável.

Outro problema da sistemática até então vigente é que ela dificulta — senão impede — o controle sobre o abuso da ação investigatória, sobretudo quanto à extensão objetiva e subjetiva da investigação. O fato de eventualmente existir um promotor e um juiz no controle da tramitação do inquérito pode contribuir ao controle do excesso, mas não o elimina, porquanto o excesso poderá ter emanado — ou estar referendado — por essas próprias autoridades. E são conhecidos os casos — e recentes os exemplos — de diligências investigatórias amplas e genéricas (fishing expedition) sobre indivíduos e autoridades públicas, inclusive do Poder Judiciário. Quantas mais terão ocorrido, sem que os investigados tenham tomado conhecimento da ação estatal invasiva? Aliás, uma pergunta que poderíamos nos fazer: será que já fomos investigados e não sabemos? E será que não teríamos o direito de saber?

Pois é a esse universo de questões que o Congresso Nacional parece ter respondido (1) ao constituir normativamente o direito fundamental à proteção dos dados pessoais (artigo 5º, LXIX, da CF[2], acrescido pela Emenda Constitucional 115, de 2022), (2) ao estabelecer, para situações extrapenais, a Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018), e (3) ao estipular, agora no âmbito da investigação criminal, a obrigação do Estado em comunicar o investigado sobre o encerramento da investigação (artigo 28 do CPP).

Em outros países que levam bastante a sério o direito fundamental à proteção de dados a matéria já se encontra regulada. Apenas como exemplo, analisemos a Diretiva (UE) 2016/680 do Parlamento Europeu e do Conselho, que serve de inspiração ao nosso anteprojeto de uma LGPD penal. No intuito de garantir que o indivíduo possa saber e determinar quem toma conhecimento de suas informações, a diretiva exige dos Estados-membros, em breve síntese, as seguintes garantias [3]:

(i) direito à informação: o indivíduo investigado tem o direito de saber-se objeto de uma intervenção estatal em seus dados (artigos 12-15); esse direito é concretizado por meio de correspondentes deveres de informação do controlador (Estado) e da regulação dos limites do direito de acesso do titular dos dados (artigos 13, 14 e 15);

(ii) direito ao controle do processamento de dados (artigos 16-22): trata-se do direito de controle do devido processamento dos dados, ao qual correspondem deveres de retificação, eliminação e limitação do tratamento de dados;

(iii) direitos de supervisão da autoridade de controle e à apreciação judicial (artigos 13, III, 15, III, e 16 IV): referem-se ao direito de oposição judicial e administrativa a eventual ilegitimidade do processamento, voltados à busca de correção diante de eventuais abusos.

Ao apreciar a liminar suspensiva, o STF tem a oportunidade de reabilitar a eficácia do artigo 28 do CPP, reconectando-se, assim, com as diretrizes normativas, internacionais e locais, que asseguram a proteção de dados pessoais, sobretudo contra sua utilização indiscriminada.

Essa tarefa já foi assumida, pelo menos em parte, pelo legislador democrático, ao irradiar, para o ambiente da investigação criminal, a proteção jurídica a uma ampla série de "pedaços da vida" [4] relativos ao sigilo dos dados pessoais e à autodeterminação informativa [5], tal como vem sendo assegurado, aliás, pela recente jurisprudência do STF [6]. Eis aí uma oportunidade, também, a que se inaugure uma releitura do processo penal à luz do novo direito constitucional à proteção de dados pessoais.

 


[1] Nestes termos é a definição da autodeterminação informativa no direito constitucional alemão, conforme MENDES, Laura S. F. Autodeterminação informativa: a história de um conceito. Revista de Ciências Jurídicas Pensar, v. 25, n. 4, 2020, p. 9 e ss.

[2] CF – Art. 5º (…) LXXIX – É assegurado, nos termos da lei, o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais (acrescentado pela EC 115/2022).

[3] A respeito, com mais detalhes, e de onde se retira a sistematização que se segue: GLEIZER, Orlandino; MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. O direito de proteção de dados no processo penal e na segurança pública. São Paulo: Marcial Pons, 2021, p. 148 e ss.

[4] O termo é de GRECO, Luís. Introdução. In: WOLTER, Jürgen. O inviolável e o intocável no direito processual penal. São Paulo: Marcial Pons, 2018.

[5] Nesse sentido: GLEIZER, Orlandino; MONTENEGRO, Lucas; VIANA, Eduardo. O direito de proteção de dados no processo penal e na segurança pública. São Paulo: Marcial Pons, 2021, p. 38-39.

[6] ADIs 6.389, 6.390, 6.393, 6.388 e 6.387, relatora min. Rosa Weber, Tribunal Pleno, j. em 7/5/2020; ADI 4.924, relator: min. Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, j. em 4/11/2021; ADI 6.561 MC, relator: min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, j. em 13/10/2020; ADPF 722 MC, relatora: min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. em 20/8/2020; ADI 6.529 MC, relatora: min. Cármen Lúcia, Tribunal Pleno, j. em 13/8/2020.

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