Controvérsias Jurídicas

Lavagem de dinheiro: considerações sobre o dolo e a teoria da cegueira deliberada

Autores

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

  • Fabia Puglisi

    é advogada mestranda em direito penal pela PUC-SP especialista na tutela de direitos difusos e coletivos professora e assessora-chefe do Procon-SP (2019-2023).

18 de maio de 2023, 8h00

Ao adotar a teoria finalista da ação, a Lei nº 7.209/1984, que introduziu a base sistêmica da parte geral do nosso Código Penal, e que ainda está em vigor, reconheceu no artigo 18, I e II, a imprescindibilidade da responsabilidade subjetiva para a configuração da figura típica.

Spacca
O tipo penal exige sempre a presença do dolo e, quando previsto expressamente, também da culpa, como elementos necessários para a adequação típica. Antes considerados elementos da culpabilidade, pela Teoria Naturalista ou Causal (também conhecida como Teoria Clássica), tanto o dolo quanto a culpa integram o tipo e se originam da voluntariedade humana.

A vontade é a mola propulsora da conduta humana, de maneira que, sem vontade, não existe conduta. Se, por um lado, a vontade é o motor que põe a ação em movimento ou, no caso da omissão, determina a sua abstenção, por outro lado, a finalidade é o leme que direciona a conduta num ou noutro sentido, disso resultando a imprescindibilidade da vontade humana finalística para o aperfeiçoamento do fato típico.

Se a conduta voluntária orientada pela finalidade produz ou tenta produzir um resultado penalmente relevante, ocorre o chamado crime doloso; quando a ação voluntária e finalística produz um resultado involuntário danoso, há o crime culposo.

Assim, não existe em nosso ordenamento jurídico penal previsão típica que não seja dolosa ou culposa, isto é, ou o crime é doloso, ou é culposo (quando prevista tal modalidade expressamente), ou não existe crime. Num exemplo de fácil percepção, o CP prevê o homicídio doloso e o homicídio culposo, mas não há qualquer tipo que abrigue um homicídio sem dolo ou culpa.

Isso porque o Direito Penal só empresta relevo aos comportamentos humanos que tenham na vontade sua força motriz, baseado no princípio geral da evitabilidade da conduta, de modo que só se devem considerar penalmente relevantes aquelas que poderiam ser evitadas [1]. O caso fortuito e a força maior, a coação física (vis absoluta) e os movimentos não comandados pela vontade, como os reflexos, excluem a própria conduta, acarretando a atipicidade do fato. Do contrário, haveria responsabilidade objetiva, há muito banido dos sistemas legais dos países civilizados.

Define-se dolo como a vontade e consciência de realizar os elementos constantes do tipo legal. É o elemento psicológico da conduta e, por conseguinte, do fato típico [2]. Identifica-se o dolo em diversas espécies, dentre as quais o dolo direto ou determinado e o dolo indireto ou indeterminado (alternativo ou eventual).

Tem-se o dolo direto quando o agente quer produzir diretamente o resultado. Como lembra José Frederico Marques: "Diz-se direto o dolo quando o resultado no mundo exterior corresponde perfeitamente à intenção e à vontade do agente. O objetivo por ele representado e a direção da vontade se coadunam com o resultado do fato praticado" [3]. No dolo direto o sujeito diz: "eu quero o resultado".

Já no dolo eventual o agente não quer diretamente o resultado, mas aceita a possibilidade de produzi-lo. Na lição de Magalhães Noronha: "É indireto quando, apesar de querer o resultado, a vontade não se manifesta de modo único e seguro em direção a ele, ao contrário do que sucede com o dolo direto. O sujeito prevê o resultado e, embora não queira propriamente atingi-lo, pouco se importa com a sua ocorrência ('eu não quero, mas se acontecer, para mim tudo bem, não é por causa deste risco que vou parar de praticar minha conduta — não quero, mas também não me importo com a sua ocorrência')" [4].

Nélson Hungria lembra a fórmula de Frank para explicar o dolo eventual: "Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir" [5]. Age com dolo eventual o agente que, na dúvida a respeito de um dos elementos do tipo, arrisca-se em concretizá-lo. Por exemplo, pratica o delito do artigo 218 do CP o agente que, na dúvida se o indivíduo tem mais de 14 anos, o induz a satisfazer a lascívia de outrem. São também casos de dolo eventual a roleta-russa, acionando por vezes o revólver carregado com um cartucho só e apontando-o sucessivamente contra outras pessoas, para testar sua sorte, e participar de disputa automobilística realizada em via pública ("racha"), sem se importar se isso irá provocar a morte de terceiros. No dolo alternativo, o agente quer produzir diretamente um resultado ou, alternativamente, outro, como, por exemplo, quando pretende matar ou ferir.

Há certos tipos penais que não admitem o dolo eventual, pois a descrição da conduta impõe um conhecimento especial da circunstância, tal como o delito de receptação (CP, artigo 180): "Adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte".

A Lei nº 9.613/1998, a chamada Lei de Lavagem de Dinheiro, em seu artigo 1º, caput prevê o crime de "ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal".

Conforme se percebe, a existência desse crime pressupõe uma infração penal anterior que seja do conhecimento do autor. Se ele realiza qualquer das ações nucleares do tipo da lavagem sem o conhecimento de que os valores ocultados ou dissimulados têm origem ilícita, não haverá o crime de lavagem de dinheiro. Desse modo, ao se falar do elemento subjetivo, existem requisitos mais rigorosos do que nas configurações típicas que independem de infração anterior.

A primeira ação consiste em "ocultar", isto é, esconder, retirar do conhecimento das autoridades, valores que o agente sabe serem produto de infração penal. Quem oculta, quer esconder. Se quer esconder, é porque tem consciência da necessidade de fazê-lo. Esconde porque sabe que precisa esconder, e sabe que precisa esconder porque conhece a origem ilícita do que está escondendo. Assim, tal consciência da necessidade, exige conhecimento inequívoco da origem ilícita do bem ocultado. Com efeito, só oculta quem quer esconder algo que sabe ser ilícito.

O mesmo raciocínio serve para a ação de dissimular, só que com ainda maior razão. A dissimulação pressupõe todo o desenvolvimento de um aparato para dar aparência de legalidade a bens de origem ilícita. Todo o estratagema desenvolvido para dissimular valores de qualquer natureza pressupõe um conhecimento prévio a motivar todo o esforço para o ardil simulatório.

Em ambos os casos, é imprescindível a demonstração do dolo direto por parte do agente. Se o legislador desejasse alcançar o sujeito que tem dúvidas sobre a licitude do objeto da ação típica de ocultar, teria lançado mão da elementar: "que deve saber", tal como ocorre na receptação qualificada (CP, artigo 180, § 1º) e na receptação de animal (CP, artigo 180-A). Nada disso, porém, foi exigido pelo dispositivo de lavagem em questão, o qual prevê secamente a conduta de ocultar ou dissimular bens oriundos de infração penal. Diante da ausência de elemento autorizador do dolo eventual, não cabe exigi-lo mediante esforço retórico ou sob o argumento da necessidade de maior eficácia na repressão criminal, principalmente porque em normas penais incriminadoras não se admite analogia ou interpretação extensiva, sob pena de ofensa direta ao princípio da reserva legal (CF, artigo 5º, XXXIX), pedra angular do Direito Penal desde a Magna Charta Libertatum de 1215.

Exigir, por exemplo, de um gerente de banco a adoção de todas as cautelas para certificar-se de que o dinheiro objeto de transação internacional tem origem lícita implicaria em criar exigência fora do âmbito de proteção da norma e impor-lhe ônus não exigido pela legislação penal. O âmbito de proteção do tipo penal não pode alcançar aqueles que não praticaram as condutas de ocultar ou dissimular intencionalmente, não tinham certeza da origem ilícita do bem, e simplesmente se abstiveram de investigar. Tal conduta pode eventualmente ser punida administrativamente, por eventual violação a normas institucionais, do Banco Central ou do próprio Coaf, mas incapaz de gerar responsabilidade penal por estar fora da linha de desdobramento causal. Presunção de dolo direto, jamais.

Até porque, de acordo com o princípio da confiança, se o sujeito realiza a conduta esperada, atendendo às expectativas sociais de um comportamento normal, não há que se falar em ação típica. Basta que cumpra seu dever de solidariedade com a sociedade e faça a parte que dele se espera. Toda vez que alguém age dentro de padrões de normalidade, confiando que o outro assim também o fará, sua conduta será considerada atípica, mesmo que o terceiro quebre a expectativa social e atue fora da linha de desdobramento causal previsível, causando um dano. É a chamada confiança permitida, a qual decorre do normal desempenho das atividades pessoais, dentro do papel que se espera de cada um e exclui a tipicidade da conduta, em caso de comportamento irregular de terceiro. Não realiza, portanto, conduta típica aquele que, agindo de acordo com o direito, acaba por envolver-se em situação na qual terceiro descumpriu seu dever de lealdade e cuidado [6].

O Direito Penal não pode transferir a terceiros o ônus que cabia ao autor do comportamento criminoso. Não se pode exigir, por exemplo, de um condutor de um veículo que deixe de trafegar quando a sinalização lhe for favorável, por temer que o outro motorista desatenda às regras de trânsito e provoque uma colisão. A cada um o Direito Penal confere uma parcela de responsabilidade a que corresponda seu dever. O cirurgião recebe o instrumento das mãos do assistente cirúrgico na convicção de que este o esterilizou previamente, não lhe sendo exigível certificar-se de que o auxiliar cumpriu seu dever corretamente.

Em suma, seja pela própria natureza dos verbos ocultar ou dissimular, que pressupõe ciência prévia da origem infracional do objeto material, seja por não existir a expressão deve saber como elementar do tipo, não é possível se falar na prática do crime de lavagem de dinheiro (artigo 1º, caput) mediante dolo eventual. O legislador, no intuito de evitar um perigoso alargamento típico que permitisse na prática a responsabilidade objetiva, optou pela prudência, inserindo condutas que pressupõem dolo intenso, seja para esconder algo das autoridades, seja para realizar toda sorte de manobras para conferir aparência de falsa legalidade a bens ilícitos.

Outro instituto comumente mencionado quando se trata dos crimes previstos na Lei de Lavagem de Capitais é a teoria da cegueira deliberada. A Teoria da Cegueira Deliberada, mencionada pelo eminente Celso de Mello em seu voto na Ação Penal 470/MG [7], tem cabimento quando o agente finge não perceber determinada situação de ilicitude para, a partir daí, alcançar a vantagem pretendida. O escopo da aludida teoria reside em abarcar situações nas quais o agente simula não visualizar a ilicitude das circunstâncias, como um avestruz que enterra sua cabeça no solo para não tomar conhecimento da natureza dos acontecimentos (razão pela qual a doutrina americana o denomina de Ostrich Instructions). Desse modo, a suposta insipiência proposital acerca da ilicitude e gravidade de uma situação não pode conduzir à inocência do agente, haja vista a presença do dolo eventual como elemento subjetivo do tipo [8].

Em caso próprio de lavagem de dinheiro, o STJ aduz: a cegueira deliberada consiste em criação doutrinária e jurisprudencial, a qual preconiza ser possível a condenação pelo crime de lavagem de capitais, ainda que ausente o dolo direto, sendo admitida a punição nos casos em que o agente crie consciente e voluntariamente barreiras ao conhecimento da intenção de deixar de tomar contato com a atividade ilícita, se ela vier a ocorrer, quando teria plenas condições de investigar a proveniência ilícita dos bens [9].

Pelo próprio adjetivo deliberada, o instituto pressupõe o agente que quer intencionalmente abstrair-se do conhecimento de algo. Aquele agente que desconfia da possibilidade de o bem ser de origem ilícita, mas mesmo assim não procura investigar. Em razão do termo deliberada, verifica-se a intenção, por isso não se confunde com a culpa consciente. Nada mais é do que uma expressão moderna para dolo eventual.

No mesmo sentido, Mirabete: "O agente age com dolo eventual quando, mesmo sem querer o resultado, assume o risco de produzi-lo, como se aceitasse a possibilidade de que ele ocorra. A cegueira deliberada é uma forma de dolo eventual, em que o agente se faz de cego para não ter que lidar com as consequências de sua conduta" [10].

É certo que em outras legislações é perfeitamente possível distinguir a cegueira deliberada do dolo eventual, encontrando-se aquela em um estágio anterior de consciência e vontade. O sujeito tinha condições de investigar, mas preferiu permanecer na dúvida e dela beneficiar-se. Ocorre que o artigo 18 do CP só prevê o dolo direito e o indireto, não sendo admissível em nosso sistema a ampliação do elemento psicológico, sob pena de ofensa à legalidade estrita e à responsabilidade subjetiva, dogmas insuperáveis do nosso Direito Penal.

Por todos os motivos já expostos, entendemos não serem puníveis as condutas previstas no caput, do artigo 1º da Lei de Lavagem de Capitais a título de dolo eventual, muito menos por cegueira deliberada. A ausência de termo expresso (deve saber) traduz a intenção legislador, de modo que a lei penal não pode ser interpretada de maneira extensiva para incriminar condutas não abarcadas pelo tipo penal, sob pena de violação ao princípio da legalidade (CF, artigo 5º, XXXIX e CP, artigo 1º). Nesse contexto, portanto, descabido se falar na aplicação da teoria da cegueira deliberada aos casos de lavagem de dinheiro no ordenamento pátrio.

 


[1] CAPEZ, Fernando. Limites Constitucionais à Lei de Improbidade. São Paulo: Saraiva, 2010

[2] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, volume 1: parte geral. 27. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2023.

[3].MARQUES, José Frederico. Tratado de Direito Penal, volume I: parte geral. 4ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 1980.

[4]. Direito penal, 30ª ed., São Paulo, Saraiva, v. 1, p. 135.

[5]. Comentários, cit., v. 1, p. 289.

[6]CAPEZ, Fernando. Limites Constitucionais à Lei de Improbidade. São Paulo: Saraiva, 2010

[7] v. Informativo nº 684/STF

[8] STJ – AREsp: 2.089.882 PI 2022/0076372-8, relator: ministro HUMBERTO MARTINS, data de publicação: DJ 2/5/2022

[9] AgRg no REsp nº 1.793.377/PR, relator ministro Jesuíno Rissato (desembargador convocado do TJDFT), 5ª Turma, julgado em 15/3/2022, DJe de 31/3/2022.

[10] MIRABETE, Julio Fabbrini. Manual de Direito Penal – Parte Geral. 28ª ed. São Paulo: Atlas, 2012

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

  • é advogada, mestranda em direito penal pela PUC-SP, especialista na tutela de direitos difusos e coletivos, professora e assessora-chefe do Procon-SP (2019-2023).

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