Opinião

Abolição do crime de evasão de divisas pela LCCI (parte 1)

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17 de maio de 2023, 9h12

A administrativização do Direito Penal, entendida como o recurso a tipos penais como instrumento de modulação de condutas reguladas pelo Direito Administrativo, não raro tem o efeito colateral da desconexão regulatória. Um exemplo emblemático deste fenômeno, caracterizado pelo descompasso entre o arcabouço regulatório e as novas dinâmicas do mercado, é o crime de evasão de divisas, previsto no artigo 22, da Lei nº 7.492/1986.

A figura penal foi estruturada no contexto de uma sociedade contemporânea de risco, em meados da década de 1980, quando motivos de ordem político-criminal determinaram o reforço, por um tipo penal, da proteção jurídica conferida à disponibilidade de divisas por normas administrativas.

Os tempos eram outros, de hiperinflação, desequilíbrios no balanço de pagamentos, baixo nível de reservas cambiais e reduzida inserção internacional de empresas brasileiras. O Banco Central, permeável a interferências políticas, estabelecia óbices regulatórios às remessas internacionais de valores que dificultavam até mesmo a realização de negócios lícitos.

Nesse pano de fundo, o sentimento social de aversão ao risco soberano legitimou o recurso ao aparato estatal penal, com a força simbólica que lhe é peculiar, para reforçar a política de rígido controle do fluxo e estoque de divisas. A emergência cambial era real e iminente: em fevereiro de 1987, constatada a insuficiência de moeda forte no caixa do BC para adimplir compromissos externos, foi decretada a famigerada "moratória", que reduziu, ainda mais, a entrada de capital estrangeiro no País.

A conjuntura macroeconômica, 37 anos depois, entretanto, se apresenta profundamente distinta. O regime de "metas para a inflação" estabelece a diretriz para fixação da política monetária; o Tesouro Nacional dispõe de reservas cambiais bilionárias, que funcionam como uma espécie de seguro para fazer frente às obrigações externas; e empresas brasileiras aumentaram, de forma significativa, a sua inserção nas cadeias globais de valor.

O BC, autônomo, blindado contra interferências políticas indesejadas, e equipado com um novo marco regulatório punitivo para manter a disciplina no sistema financeiro, flexibilizou o seu viés regulatório para investir no desenvolvimento de tecnologias disruptivas. No primeiro ciclo de seu sandbox regulatório [1],  a autarquia monetária selecionou projeto de solução tecnológica para o registro de operações de compra e venda de moeda estrangeira com o uso da tecnologia blockchain, com a finalidade de troca instantânea de reservas cambiais.

No front legislativo, a entrada em vigor da LCCI (Lei de Câmbio e Capitais Internacionais — nº 14.286/2021) repaginou o marco legal cambial, ampliou as operações com divisas estrangeiras e modernizou as disposições sobre o capital brasileiro no exterior, o capital estrangeiro no Brasil e a prestação de informações ao BC, de forma consistente com as boas práticas preconizadas pelos Códigos de Liberalização de Movimento de Capitais e de Operações Correntes Intangíveis da OCDE.

O artigo 8º da LCCI vai além do conceito de territorialidade para definir Capital Brasileiro no Exterior (CBE) e Capital Estrangeiro no Brasil (CEB). A definição é efetuada em função dos ativos financeiros serem detidos, respectivamente, por residentes ou não residentes, sendo que o artigo 9º assegura a dispensa de tratamento jurídico igualitário a ambos, de acordo com o padrão usual em economias desenvolvidas.

Contas em reais de titularidade de não residentes terão os mesmos requisitos das tituladas por residentes, excetuados os procedimentos que o BC vier a estabelecer (artigo 5º § 4º). Faculta-se ao Banco Central a possibilidade de autorizar a abertura e a manutenção de contas em moeda estrangeira no país (artigo 5º, IX).

O artigo 2º da LCCI aproxima o tratamento das operações cambiais ao dispensado às demais operações do SFN, ao determinar o seu livre formato e a sua realização com menos burocracia e sem limitação de valor, observados os requerimentos legais pertinentes a prestação de informações. A taxa de câmbio será livremente pactuada, e instituições autorizadas a operar no mercado de câmbio serão responsáveis pela identificação e qualificação de seus clientes, e pelo processamento lícito de operações. 

Operações de compra ou venda de moeda estrangeira em espécie, no valor de até US$ 500 ou seu equivalente em outras moedas, realizadas entre pessoas físicas de forma eventual e não profissional, não precisam mais ser registradas, nem realizadas por entidade autorizada, em razão da quantia ser considerada inexpressiva na compilação estatística e regulatória do BC (artigo 19).

Para favorecer a convertibilidade do real em moeda de transação e reserva de valor internacional, o artigo 6 º da LCCI permite que bancos autorizados enviem ordens de pagamento de terceiros para o exterior, através de contas em reais mantidas no Brasil. O artigo 12 inaugura a possibilidade de compensação privada de créditos ou valores entre residentes e não residentes, nos termos a serem determinados pelo BC, e o artigo 13 permite a estipulação de pagamento em moeda estrangeira de obrigações exequíveis no território nacional, nas situações elencadas em seus incisos.

O mercado de câmbio foi aberto a empresas de menor porte, como instituições de pagamento e fintechs, que doravante podem efetuar operações cambiais de até US$ 10 mil ou seu equivalente em outra moeda, sem a necessidade de associação com bancos e corretoras habilitados junto ao BC.

O novo pacto normativo-social estabelece "liberdade com responsabilidade" na movimentação e aplicação de capitais na arena global, com remessas e manutenção de divisas no exterior sem restrições, observada a sua fundamentação econômica e a prestação de informações ao BC. A proteção jurídica da disponibilidade de divisas em si, conferida originalmente pelo tipo penal da evasão de divisas, portanto, foi inadvertidamente reconfigurada para tutelar o interesse da autoridade monetária em compilar dados, para fins estatísticos, sobre fluxos e estoques de ativos brasileiros contabilizados em moeda estrangeira.

Tais informações passaram a ser consideradas estratégicas para fins de formatação de política monetária; atendimento de demandas informacionais provenientes da academia, da imprensa, do mercado; bem como para viabilizar a publicação de relatórios macroeconômicos oficiais idôneos para cumprir compromissos de cooperação informacional assumidos perante FMI, tais como o Special Data Dissemination Standard Plus — SDDS Plus, a Pesquisa Coordenada sobre Investimentos em Portfólio (Coordinated Portfolio Investment Survey — CPIS) e o Censo Anual de Capitais Estrangeiros (Coordinated Direct Investment Survey — CDIS).

A reconfiguração jurídica do tipo penal da evasão de divisas para tutelar uma mera regularidade informacional, para fins de compilação estatística pelo BC, entretanto, ostenta dois pontos problemáticos: 1) o risco social que se pretendia neutralizar com o crime de perigo abstrato foi substituído por outro desvalor de resultado, cuja ofensividade não tem dignidade penal, nem é condizente com uma reprimenda estatal de até 6 anos de reclusão e multa;  e 2) a aplicação direta do ne bis in idem, que veda a possibilidade de um mesmo indivíduo ser processado ou sancionado, mais de uma vez, por um mesmo fato, com prevalência da instancia administrativa sancionadora sobre a penal, nos termos preconizados pela LCCI.

Cumpre ressaltar, inicialmente, que a LCCI confere tratamento jurídico diferenciado à prestação de informações sobre o câmbio manual, efetivado no ingresso e na saída do território nacional. Na hipótese de porte de divisas em espécie acima US$ 10 mil ou seu equivalente em outras moedas, viajantes internacionais deverão comprovar a fundamentação econômica das respectivas divisas à Receita Federal, na forma regulamentar, sob pena de perdimento do excedente em favor do Tesouro, após o devido processo legal, além das sanções penais previstas na Lei nº  8.137/1990, que define crimes contra a ordem tributária e dá outras providencias.

Nas infrações pertinentes ao cambio manual, portanto, a LCCI contempla mandado legal expresso de imposição de múltiplas sanções, em âmbito penal e administrativo, a um mesmo fato, que constitui infração nas duas searas.

No que concerne à regularidade da prestação de informações sobre às demais operações cambiais (atual bem jurídico protegido no delito de evasão de divisas), o artigo 20, caput, da LCCI dispõe que infrações aos seus dispositivos legais, bem como aos regulamentos a serem editados pelo CMN e pelo BC, estarão sujeitas ao procedimento administrativo sancionador (PAS) na esfera de atuação da autoridade monetária, sem quaisquer ressalvas atinentes à sobreposição de processo penal e cumulação de sanções. Dito de outra forma: a LCCI remete expressamente a apuração de infrações aos seus dispositivos ao PAS do BC, com silencio eloquente a respeito de sobreposição da seara penal.

Neste sentido, a Lei nº 13.506/2017 equipou o BC com um sofisticado arcabouço disciplinar sancionador, de matiz quasi-penal, que contempla a transposição mitigada de princípios e institutos de índole penal, em linha com os padrões civilizatórios mais avançados para o exercício do poder repressivo estatal.

No que concerne à aplicação de sanções administrativas, o novo marco legal disciplinar estabelece os parâmetros a serem utilizados pelo Banco Central na aplicação de penalidades semelhantes às impostas como sanções em âmbito criminal, incidentes no patrimônio e exercício da atividade profissional do apenado. Podem ser aplicadas, cumulativamente: 1) admoestação pública; 2) multa; 3) proibição de praticar determinadas atividades; 4) proibição de prestar determinados serviços; v) inabilitação para o exercício de determinados cargos; e 5) cassação de autorização para funcionamento. Os valores máximos para a pena de multa foram elevados para dois bilhões de reais, ou 0,5% da receita anual de serviços e produtos financeiros apurada no ano anterior ao da consumação do ilícito, o que for maior.

O marco legal disciplinar do BC também se inspirou em institutos do regime jurídico penal ao estabelecer  mecanismos inovadores destinados a assegurar a efetividade da supervisão do autoridade financeira brasileira, tais como: 1) termo de compromisso (TC), instrumento de ajustamento de conduta alternativo ao PAS; 2) medidas coercitivas e acautelatórias, inclusive multa cominatória diária, no caso de recalcitrância em atender às determinações do órgão supervisor;  e 3) acordo administrativo em processo de supervisão (APS), destinado a obter a colaboração de infratores na investigação de ilícitos de que participem, mediante compromisso da autoridade reguladora de extinguir a punibilidade, ou reduzir a pena no âmbito do PAS.

Note-se que o BC teve o seu poder sancionatório intencionalmente turbinado pelo legislador para elevar, de forma exponencial, o custo de praticar infrações e dispensar o recurso ao truculento aparato estatal penal, para fins de modular a conduta de seus regulados.

O delito de evasão de divisas se encaixa na interseção entre o Direito Penal Econômico e o Direito Administrativo Sancionador, que são manifestações do mesmo poder punitivo estatal. Na hipótese em apreço, as fronteiras delimitadoras dos dois ramos jurídicos são extraordinariamente fluidas, por se tratar de norma penal em branco, na qual o prévio ilícito administrativo constitui a premissa obrigatória e o fundamento de validade do correspondente ilícito penal. Os dois ilícitos incidem sobre as mesmas relações administrativas organizadas em normas de regulação econômica e ostentam idênticas densidade técnica e fundamentação axiológica.

Um Estado democrático de Direito contempla normas penais mínimas, fragmentárias e subsidiárias, protetoras de valores especialmente relevantes ao convívio social, consagrados como bens jurídicos, que atuam como fundamento legitimador e critério limitador da intervenção jurídico-penal. Intervenções estatais sobre a liberdade devem ser restritas ao mínimo necessário, e adotadas apenas quando não houver alternativa menos gravosa.

A proibição do excesso impõe barreiras ao exercício do poder repressivo, ainda que através de searas jurídicas distintas, e autoriza a aplicação direta do ne bis in idem, na interface entre as instancias penal e administrativa sancionadora. Trata-se de princípio implícito no texto constitucional e previsto textualmente em tratados multilaterais dos quais o Brasil é signatário. Nessa ordem de ideias, a LCCI submete expressamente as condutas tipificadas como evasão de divisas ao crivo do PAS do BC, e orienta o caminho a ser seguido por seu intérprete ao se deparar com a concorrência de instancias punitivas sobre o mesmo fato.

Imputar responsabilidade criminal pelo descumprimento de obrigação de fazer devidamente regulamentada na esfera administrativa sancionadora afronta os princípios da proporcionalidade e da segurança jurídica, que alicerçam a vedação de bis in idem. O uso da máquina penal será inconstitucional, constatada a existência de medidas administrativas sancionadoras idôneas para tutelar a almejada regularidade informacional.

Nesta toada, a submissão de infrações cambiais, pela LCCI, ao crivo exclusivo do Direito Administrativo Sancionador, traduz uma percepção evolutiva do injusto penal da evasão de divisas, com a produção de efeitos penais imediatos, ensejadora de abolitio criminis.

Continua na parte 2


[1] espaço experimental monitorado para o desenvolvimento de modelos de negócios não tradicionais nos sistemas financeiro e de pagamentos, onde há afastamento temporário de normas regulatórias cuja incidência inviabilizaria a oferta de produtos e serviços inovadores.

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