Opinião

Entre grades e corpos: o labirinto do encarceramento em massa

Autor

  • Eduardo Benfica

    é advogado membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária (CPCP) da OAB-RJ pós-graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).

16 de maio de 2023, 6h30

1. Breve digressão
Sendo o encarceramento em massa no país o tema a ser discutido, é imprescindível traçar, ainda que de forma sucinta, um panorama histórico do problema — afinal, de antemão, asseguramos se tratar de uma chaga que, perpetuando-se, tem se mostrado incontrolável até o momento.

Conquanto alguns acreditem, quase que de forma inata, que o cárcere sempre foi utilizado como mecanismo, primeiro e até mesmo único, de reprimenda ao comportamento tido como desviante, essa prática — encarceramento como sinônimo de punição — ganha adesão no século 18, principalmente a partir do Velho Mundo.

Até então, a prisão era considerada incompatível com as ideias de pena-efeito e de incutir na população justamente aquilo que o soberano desejava, ou seja, aproximar os indivíduos das expectativas sociais, impedindo-lhes de transgredir os limites invisíveis da vida em sociedade.

Michel Foucault, sobre o tema, lembra que a prisão era duramente criticada pelos reformadores da época:

"Porque incapaz de responder à especificidade dos crimes. Porque é desprovida de efeito sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios…" [1]

Dessa forma, antes da ascensão da prisão ao posto de carro-chefe da prática penal, já superada a ideia de vingança privada, recorria-se aos suplícios, pena corporal, dolorosa, caracterizada pela "arte de reter a vida no sofrimento, subdividindo-a em 'mil mortes' e obtendo, antes de cessar a existência, a mais exótica das agonias. O suplício repousa na arte quantitativa de sofrimento" [2].

O fato criminoso ou desviante era reputado como um "desafio lançado ao soberano: o que vai provocar da parte dele uma réplica que tem por função ir mais longe que essa atrocidade, dominá-la, vencê-la por um excesso que a anula" [3]; O suplício, por sua vez, tornava-se espetacularização pública do sofrimento, cerimônia cujo objetivo era menos "fazer justiça" do que manifestar poder e força.

Ocorre, contudo, que sobreveio o século das luzes, época na qual convencionou-se que era necessário punir de outra forma, sem a confrontação física do soberano e do condenado, afinal, era preciso punir, não se vingar.

Cesare Beccaria, o grande precursor do movimento de reforma, em oposição ao desmedido poder punitivo que emanava do soberano, insculpe, através de seu clássico Dos Delitos e das Penas, os princípios da legalidade, proporcionalidade, moderação e tantos outros que deram vida, em definitivo, ao movimento de derrocada das penas eminente e excessivamente corporais.

De acordo com Foucault, é o marco de nascimento da economia do poder de punir, ou seja, "não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severidade atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade; inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir" [4].

A prisão emerge, ao fim e ao cabo, como humanização — menos impactante do que os suplícios, mas, na verdade, tão cruel quanto — e modernização do poder de punir, diminuindo seu custo econômico e político e aumentando sua eficácia.

Infelizmente, porém, subjaz às boas intenções do movimento reformista, de submissão das ilegalidades a determinados freios do poder punitivo e diminuição do sofrimento, o domínio cada vez maior dos corpos e almas.

2. Três séculos depois
Muito embora seja somente o sexto país mais populoso, o Brasil, terra de excelência no futebol e em tantos outros esportes, habituado a subir nos pódios de competições esportivas internacionais, ocupa posto que, diferente de outros defendidos, em nada causa orgulho: tem a terceira maior população carcerária do planeta, ficando atrás apenas de Estados Unidos e China.

De acordo com o último relatório do Infopen [5] (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), publicado em dezembro de 2022, a população carcerária do país alcançou a expressiva marca de 832.295 (oitocentos e trinta e dois mil e duzentos e noventa e cinco) — dos quais aproximadamente 1/4 é composto por presos provisórios, ou seja, sem sentença penal condenatória transitada em julgado.

Não bastasse a superlotação carcerária que acomete o sistema prisional brasileiro — o que, por si só, seria suficiente para demonstrar a necessidade impreterível de reforma —, soma-se à problemática a insalubridade, violência intramuros sistêmica, falta de recursos, más administrações e um sem-número de outros abusos: eis a fórmula mágica para o surgimento de uma das maiores moléstias nacionais.

Na era das fake news, socorremo-nos da ação que reconheceu os pontos supracitados, lançando luz sobre o tema: a arguição de descumprimento de preceito fundamental n° 347, cujo julgamento importou, pela primeira vez, o conceito de estado de coisas inconstitucional, atribuindo-lhe ao sistema carcerário brasileiro.

Naquela ocasião, em decisão paradigmática, o plenário do Supremo Tribunal Federal admitiu o quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais, decorrente de falhas estruturais e falência de políticas públicas e "cuja modificação depende de medidas abrangentes de natureza normativa, administrativa e orçamentária".

Oito anos depois, o quadro continua o mesmo, senão muito pior, afinal, neste ínterim, houve o aumento de 19% da população carcerária do país, além de inúmeros casos públicos de mortes violentas, rebeliões e torturas nas penitenciárias Brasil afora [6].

Os reflexos práticos do reconhecimento do estado de coisas inconstitucional no sistema penitenciário nacional foram modestos, à exceção de pouquíssimos avanços, tais como a adoção da realização de audiências de custódia.

Por esse ângulo, no ano de 2023, em decisão proferida nos autos da Reclamação 29.303 [7], o Supremo Tribunal Federal formou maioria para determinar a todos os tribunais de justiça do país a realização de audiência de custódia em todas as modalidades prisionais.

Na esteira das violações que se multiplicam e perpetuam-se, em um período de 13 anos, o país teve, ao menos, sete grandes rebeliões em presídios, que totalizaram aproximadamente 193 mortes violentas.

Lembremos, a título de exemplo, da (1) rebelião no Compaj [8], Manaus — AM, em 2017, com 56 mortes, da (2) rebelião de Alcaçuz, Rio Grande do Norte [9], também em 2017, com 26 mortes (15 por decapitação) e da (3) rebelião em Altamira (PA) [10], em 2019, com 62 mortes, sendo esta a maior tragédia carcerária do país depois do massacre do Carandiru.

Os números são conclusivos, seja acerca da alarmante taxa de ocupação dos presídios brasileiros, das condições sanitárias ou dos indicativos relacionados ao sistemático e institucionalizado quadro de desrespeito à dignidade da pessoa humana, razão pela qual há que se reconhecer a importância do debate.

Em última análise, cerca de três séculos depois que reformistas se insurgiram contra os abusos punitivos, volvemos à espetacularização pública do sofrimento e do horror, que agora se efetivam dentro dos muros das cadeias públicas, sempre às custas do Estado — ora negligenciando os corpos sob sua tutela dos mais variados modos, ora ditando quem pode viver e quem deve morrer (necropolítica).

Os personagens, métodos e circunstâncias podem ser outros, mas a razão de ser permanece a mesma: (re)produzir sofrimento intenso através dos suplícios, porém, não mais em praça pública.

3. A perniciosa crença coletiva: indivíduos privados de liberdade foram — ou deveriam ser — despojados de todos os outros direitos e garantias fundamentais

No bojo de um Estado que se pretende Democrático de Direito, a dignidade da pessoa humana erige como um de seus sustentáculos — senão o fundamento primevo.

Outrossim, a dignidade da pessoa humana "congloba em si todos aqueles direitos fundamentais, quer sejam os individuais clássicos, quer sejam os de fundo econômico e social. É um princípio de valor pré-constituinte e de hierarquia supraconstitucional" [11].

Não resta dúvida, portanto, no que concerne ao alcance e importância do primado da dignidade da pessoa humana — irrenunciável, inalienável e não passível de suspensão, por óbvio —, aplicável a todo e qualquer pessoa, em qualquer conjuntura possível, inclusive às pessoas que tenham, ocasionalmente, sua liberdade restringida.

Esmar Filho/Agência CNJ
Nesse sentido, é preciso reconhecer, desde logo, que ao Estado incumbe privar o indivíduo somente de sua liberdade, se preciso, devendo assegurar, todavia, os demais direitos individuais, sobretudo a dignidade humana.

Lembremos, v.g., dos mandamentos contidos no artigo 5°, inciso XLVII, da Constituição Federal, que veda as penas (a) de morte, salvo em caso de guerra declarada, (b) de caráter perpétuo; (c) de trabalhos forçados; (d) de banimento e as (e) cruéis.

A despeito da taxatividade do texto constitucional, dos ensinamentos doutrinários, da jurisprudência sedimentada dos Tribunais Superiores e dos regramentos internacionais sobre o tema, parcela da sociedade, acrítica e inconscientemente, seduzida por discursos extremistas e sem lugar num Estado Democrático de Direito, acaba por aderir ao estapafúrdio — mas convincente, do ponto de vista do senso comum — ódio "aos direitos humanos", que, para essas pessoas, é a materialização do anticristo e se opõe ao seu regramento moral, porque, supostamente, beneficiariam pessoas tidas como indignas.

Sem o menor conhecimento do que são e o que representam, de fato, os direitos humanos, esses indivíduos desenvolvem um verdadeiro quadro psicótico, através do qual passam a acreditar que "os direitos humanos" privilegiam os "bandidos" em detrimentos dos considerados "cidadãos de bem".

O modus operandi passa, necessariamente, pela difusão em massa do pânico moral característico de grupos de extrema-direita, cuja agenda se baseia, em regra, na simplificação — indevida, irracional e perigosa — de temas atinentes à segurança pública, para os quais o recrudescimento das penas, a "tolerância zero" e o tratamento autoritário, ao arrepio dos mandamentos constitucionais, legais e convencionais, para com os indivíduos selecionados pelo sistema de Justiça Criminal é o caminho para uma sociedade melhor.

Assim, justifica-se o encarceramento em massa e as condições desumanas às quais são submetidos os indivíduos presos, tendo em vista que essa espécie de higienização social contemporânea garantiria o mundo ideal aos cidadãos livres e, por isso, "de bem".

Não basta lhes despir da liberdade, também devem ser privados dos mais comezinhos direitos, inclusive da própria dignidade, porquanto verdadeiras "coisas", seres reificados.

Desinteressam os motivos que os levaram até o cárcere; se lá estão, são presumidamente culpados e, logo, merecedores das atrocidades de toda sorte.

Por isso, aos indivíduos privados de liberdade, todo furor e violência do todo-poderoso Estado, porém, vez ou outra, basta trancafiá-los e abandoná-los à própria sorte nas lixeiras humanas, digo, presídios.

Essa doutrina, entretanto, carece — ademais de todas suas falhas — de lógica, tendo em vista que não há no Brasil, felizmente, pena perpétua ou de morte, embora poder eliminar os "indesejáveis" de forma definitiva seja o não declarado desejo de muitos.

4. Caminhos para a emancipação de um futuro eminentemente distópico
Alfim, fica claro que a problemática esposada requer, além de atuação massiva do Estado, uma mudança de mentalidade social.

Por limitação acadêmica, não nos debruçaremos, por ora, sobre questões criminológicas profundas, porém, é importante que tenhamos sempre em mente que os instrumentos criminalizadores, o próprio fenômeno da criminalidade, o capital, a ordem econômica e o poder político estão intrinsecamente ligados.

É preciso que enxerguemos o indivíduo privado de liberdade como sujeito de direito — que, assim como todo homem, é um fim em si mesmo —, e, invariavelmente, retornará, cedo ou tarde, ao convívio social.

Não se advoga pela impunidade, mas por um tratamento condizente com os ditames de um Estado cujos pilares estão reunidos pelo princípio da dignidade da pessoa humana.

Nas palavras de Alessandro Baratta, "só aparentemente está à disposição do sujeito escolher o sistema de valores ao qual adere. Em realidade, condições sociais, estruturas e mecanismos de comunicação e de aprendizagem determinam a pertença de indivíduos a subgrupos ou subculturas, e a transmissão aos indivíduos de valores, normas, modelos de comportamentos e técnicas, mesmo ilegítimos" [12].

Devemos reconhecer, portanto, os indeléveis e nocivos efeitos que, hoje, o cárcere impinge sobre o indivíduo; uma vez recluso, é alvo do fenômeno da prisionização, que o faz aderir, involuntariamente, aos padrões daquele ambiente.

Nesse sentido, a estigmatização social do indivíduo é determinante para a sua mudança de identidade, tendo em vista que passa a permanecer no papel social ao qual a estigmatização o introduziu.

O que queremos dizer é que a passagem do indivíduo pelo cárcere, e sua experiência no lugar, são determinantes para o restante da vida.

Desse ponto de vista, "o sistema penal age, portanto, como a escola, em face dos grupos sociais mais débeis e marginalizados, antes que no sentido de integração, no sentido oposto" [13].

Isso importa admitir uma antinomia irreparável do sistema penitenciário: tendo o cárcere como uma das funções teoricamente pretendidas a "ressocialização do indivíduo", o que acontece, na prática, é a sua "desaculturação", ou seja, desadaptação às condições necessárias para a vida em sociedade.

Não é outra a conclusão, senão a de que não se pode, ao mesmo tempo, excluir e incluir; e a verdadeira reeducação deveria começar pela sociedade, antes que pelo indivíduo.

 


[1] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p.112.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: o nascimento da prisão. 42 ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014, p.37.

[3] Ibidem.

[4] Ibidem.

[11] NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios constitucionais e processuais penais. 4ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 33

[12] BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan: instituto carioca de criminologia, 6ª ed. P. 74.

[13] BARATA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: Introdução à sociologia do Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Revan: instituto carioca de criminologia, 6ª ed.

Autores

  • é advogado, bacharel em Direito pela Universidade Veiga de Almeida (UVA-Rio), membro da Comissão de Política Criminal e Penitenciária (CPCP) da OAB-RJ, pós-graduando em Ciências Penais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal Económico e Europeu (IDPEE), da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), onde integra o Grupo de Estudos Avançados (GEA) em Direito Penal Econômico, e conciliador capacitado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

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