Paradoxo da Corte

Carência da ação possessória derivada de relação locatícia

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

12 de maio de 2023, 8h00

O juiz, ao construir a ratio decidendi e aplicar as "normas legais" ao caso concreto, dispõe de absoluta liberdade, no contexto dos fatos que individualizam a pretensão do autor e a exceção oposta pelo demandado, e que constituem, respectivamente, a causa petendi e a causa excipiendi. Ocorre que a qualificação jurídica desenhada pelo autor e secundada pelo réu nunca é definitiva e, consequentemente, nada impede a livre eleição de fundamentos jurídicos que o órgão judicante entenda incidentes no caso concreto.

Spacca
Embora o nomen iuris (rótulo) e/ou fundamento legal porventura declinado pelo autor na petição inicial possa influenciar a convicção do julgador, nada impede que este requalifique juridicamente a demanda, emoldurando-a em outro dispositivo de lei ou mesmo em outra categoria jurídica (e. g.: contrato de parceria para contrato de representação comercial). A função jurisdicional é detentora, pois, do poder-dever de examinar os fatos que lhe são submetidos nos quadrantes de todo o ordenamento jurídico, ainda que determinada norma ou categoria jurídica não tenha sido mencionada pelas partes.

Desse modo, o juiz não só pode como deve, sem alterar os fatos expostos, imprimir o enquadramento jurídico que entender mais adequado, circunscrito ao pedido deduzido pelas partes.

Cumpre, portanto, reconhecer que essa premissa, sintetizada pelo velho brocardo da mihi factum dabo tibi ius, está a revelar que, no drama do processo, a delimitação do factum e a individuação do ius correspondem, em princípio, a atividades subordinadas à iniciativa de diferentes atores. Enquanto a alegação e a comprovação do fato são incumbência dos litigantes, a aplicação do Direito é apanágio do juiz!

Como bem explica José Roberto dos Santos Bedaque, em relação ao julgamento extra petita, "situação real revela a importância de determinadas inovações legislativas, desde que compreendidas segundo os princípios da instrumentalidade da forma, do contraditório e da economia processual. O vício pode ser ignorado em sede recursal, não obstante sua gravidade, mediante aplicação analógica do artigo 1.013, parágrafo 3º, do Código de Processo Civil, pois a situação pode ser equiparada à extinção do processo sem julgamento do mérito, em que o juiz também não examina os fundamentos de mérito deduzidos pelo autor como causa de pedir" (Efetividade do Processo e Técnica Processual, 3ª edição, São Paulo, Malheiros, pág. 515).

Tal concepção é consagrada não apenas na doutrina, mas também nos tribunais, em especial na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça.

Examinando essa importante questão, a 4ª Turma, no julgamento do Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial nº 1.587.128/MG, com voto condutor do ministro Luis Felipe Salomão, assentou que:

"Não há falar em decisão surpresa quando o magistrado, diante dos limites da causa de pedir, do pedido e do substrato fático delineado nos autos, realiza a tipificação jurídica da pretensão no ordenamento jurídico posto, aplicando a lei adequada à solução do conflito, ainda que as partes não a tenham invocado (iura novit curia) e independentemente de oitiva delas, até porque a lei deve ser do conhecimento de todos, não podendo ninguém se dizer surpreendido com a sua aplicação.

À luz dos artigos 128 e 460 do Código de Processo Civil/73, atuais, 141 e 492 do Código de Processo Civil/15, o vício de julgamento extra petita não se vislumbra na hipótese do juízo a quo, adstrito às circunstâncias fáticas (causa de pedir remota) e ao pedido constante nos autos, ao proceder à subsunção normativa com amparo em fundamentos jurídicos diversos dos esposados pelo autor e refutados pelo réu. O julgador não viola os limites da causa quando reconhece os pedidos implícitos formulados na inicial, não estando restrito apenas ao que está expresso no capítulo referente aos pedidos, sendo-lhe permitido extrair da interpretação lógico-sistemática da peça inicial aquilo que se pretende obter com a demanda, aplicando o princípio da equidade".

Assim, por exemplo, se o autor ajuizar uma ação rotulada de despejo, gerada pelo esbulho causado pelo possuidor direto, nada obsta a que o juiz decida como se tivesse sido aforada uma ação genuinamente possessória, desde que atendidos os pressupostos de admissibilidade desta demanda, não se vislumbrando qualquer prejuízo ao demandado.

No entanto, a recíproca não é verdadeira, como restou decidido pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no recentíssimo julgamento do Recurso Especial nº 1.812.987/RJ, da relatoria do ministro Antonio Carlos Ferreira, num caso em que foi ajuizada ação de reintegração de posse fundada em relação ex locato. A locação foi denunciada mediante notificação visando à desocupação do imóvel para uso próprio. Tendo resistido a tal pleito, o locador, entendendo que o comportamento da locatária configurava esbulho, aforou a referida ação de natureza possessória.

O pedido foi julgado procedente em primeiro grau e, na sequência, pelo TJ-RJ, a despeito de ter constado do acórdão que a ação adequada seria a de despejo. Não obstante, em consonância com os termos do acórdão, por força do princípio da mihi factum tibi ius, não havia qualquer vício em julgar a ação possessória como se fosse ação de despejo.

Ao prover o recurso especial, entendendo inviável a fungibilidade entre a ação possessória e a ação de despejo, a aludida 4ª Turma asseverou, com inegável acerto, que:

"Embora o pedido da reintegração de posse e da ação de despejo seja a posse legítima do bem imóvel, trata-se de pretensões judiciais com natureza e fundamento jurídico distintos, pois, enquanto a primeira baseia-se na situação fática possessória da coisa, a segunda se fundamenta em prévia relação contratual locatícia, regida por norma especial, o que consequentemente impossibilita sua fungibilidade".

Ademais, no pedido de retomada para uso próprio, o artigo 47, parágrafo 1º, da Lei nº 8.245/91, estabelece requisitos específicos para a adequação da ação de despejo, que devem ser comprovados pelo autor da demanda.

Assim, segundo o voto do ministro Antonio Carlos Ferreira, "ao se permitir o ajuizamento de ação possessória em substituição da ação de despejo, nega-se vigência ao conjunto de regras especiais da Lei de Locação, tais como prazos, penalidades e garantias processuais".

Daí o provimento do recurso especial, por negativa de vigência ao artigo 5º, caput, da Lei nº 8.245/91, determinando-se, com fundamento no artigo 485, inciso IV (rectius: VI), do Código de Processo Civil, a extinção da ação de reintegração de posse por inadequação do meio processual utilizado pelo demandante.

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    é sócio do Tucci Advogados Associados. Ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo). Professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP. Membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas. Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual. Conselheiro do MDA.

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