Opinião

Revolução da administração pública digital e a Agenda 2030 da ONU

Autor

  • Theresa Christine de Albuquerque Nóbrega

    é professora doutora de Direito Administrativo do programa de pós-graduação da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco) e Direito do Terceiro Setor na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) — especialização. Mestre e doutora em Direito Público pela UFPE. Coordenadora do Geda (Grupo de Estudos em Direito Administrativo). Advogada consultora jurídica em Recife (Theresa Nóbrega Sociedade de Advocacia). Associada fundadora da Abradade (Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico). É membro do IAP (Instituto dos Advogados de Pernambuco) da Comissão de Infraestrutura da OAB-PE presidente da comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-PE membro da Comissão de Direito Administrativo do IAB (Instituto Brasileiro de Advogados) membro do Idasan (Instituto de Direito Administrativo Sancionador) e vice-presidente do Infra-E (Instituto de Infraestrutura e Energia).

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11 de maio de 2023, 16h15

O direito administrativo tem sido o protagonista do espetáculo vivenciado com os movimentos de ruptura constitucional, reformas administrativas, ordenação e reordenação de modelos de Estado, que oscilam diante de relações políticas, sociais e econômicas determinadas no contexto local, nacional e internacional.

A revolução 4.0 na administração pública decorre de transformações tecnológicas, que são tencionadas por inovações trazidas pelo consenso sobre o papel do uso das tecnologias, especialmente da inteligência artificial, robótica e inteligência das coisas na produção de serviços públicos, baseados em modelo de governança digital, aliando informações produzidas pelo Estado, mercado e terceiro setor, com o apoio de dados sistematizados para formulação e aperfeiçoamento de políticas públicas (Ramió, 2019).

O direito administrativo brasileiro foi tocado por todas as escolas jurídicas, a visão do global administrative law é o fenômeno que, aparentemente, dominante no cenário das transformações, sobretudo, com o marco da Agenda 2030 da ONU.

A noção de direito administrativo global não está inserida no contexto do direito internacional, observando normas que regem as negociações entre os países, ou seja, acordos para o estabelecimento de pactos de reciprocidade entre estados soberanos. Trata-se, pois, de um conjunto de normas jurídicas construídas por comunidades internacionais, que influenciam as administrações públicas nacionais com base em tratados, convenções e acordos multilaterais, tendo em vista a promoção de interesses gerais inseridos da percepção do direito das gentes (YAMAMOTO, 1969).

O direito administrativo global se apresenta a partir de um modelo de governança global baseado em três pilares considerados universais no Estado democrático de Direito, quais sejam: o controle da prestação de contas dos estados, a proteção dos direitos humanos e a promoção da democracia.

A tendência de integração do direito produzido pelo Estado ao direito paraestatal, proposto no cenário do direito administrativo global, refere reflexões críticas que referem a perspectiva da escola jurídica produzir um tipo de imperialismo acadêmico para legitimar diretrizes, estabelecidas por uma classe elitista do capitalismo transnacional, com uma dimensão ideológica tal qual àquela apresentada pela reforma gerencial, baseada no Public Management, que, a priori, apresenta natureza não vinculante, mas vai sendo adotado, paulatinamente, como um caminho sem volta, sem um processo de discussão mais customizado e conectado a realidade de países (CASSESE, 2009; CHIMNI, 2006).

Nesse contexto, a agenda 2030 da ONU, assinada em 2015, vem apontando as principais balizas do direito administrativo, mesmo considerando os distintos estágios de desenvolvimento social e econômico dos cento e noventa e seis países signatários da convenção, que sucedeu a Declaração do Milênio em função de vários aspectos: a) os 17 objetivos do desenvolvimento sustentáveis podem ser aferidos com base em metas pragmáticas; b) os signatários da convenção se comprometeram a introduzir uma agenda política compatível com as metas da convenção; c) a ONU concebeu um sistema de monitoramento para aferir o cumprimento das metas da agenda 2030 (ONU, 2022).

A Agenda 2030 consolida a noção de sustentabilidade baseada em três dimensões: a) ambiental, considerando a compatibilidade entre o modelo de produção econômica e a garantia de preservação dos ecossistemas naturais, manutenção de sua autorreparação ou capacidade de resiliência; b) econômica, considerando o aumento da eficiência da produção e consumo sustentável, com observância das inovações necessárias a superação gradativa do uso de energia com base em recursos fósseis, compensação da emissão de gás carbônico e recuperação de mananciais e redução do desperdício de água; c)  social, considerando a delimitação de limites para a pobreza, desigualdade, promoção da igualdade de gênero e cidadania (FEIL; SCHREIBER, 2017).

A Agenda 2030 da ONU é um fim que se coaduna diretamente com a revolução 4.0 da Administração Pública, que aponta para os meios ou as ferramentas necessárias ao alcance dos resultados da tratativa internacional.

A noção de governo digital abarca o uso das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), em quatro principais segmentos da gestão pública: desenvolvimento de laboratório de inovação, instrumento interna corporis de controle de recursos humanos e recursos materiais, instrumentos de controle voltados para otimizar o diagnóstico de fraudes com foco na política anticorrupção e produção de serviços públicos digitais para a sociedade.

Em 2020, 18 estados-membros, representando 67% das administrações estaduais, 6 municípios em capitais estaduais, totalizando apenas 23% das administrações de sedes metropolitanas apresentaram alinhamento aos 17 ODS da agenda 2030 da ONU nos seus planos plurianuais, mas apesar da mostra pouco pujante nesse ano, em 2021, plataforma Connected Smarties Cities avaliou 677 munícipios com mais de 50 mil de habitantes referiu ranking das cidades mais inteligentes do Brasil, identificando 100 administrações municipais com perfil de liderança (Congresso CLAD e Urban Systems, 2022).

Nesse contexto, o governo digital ou governo eletrônico se apropria de ferramentas de tecnologia da informação e comunicação (TIC) para permitir relações mais eficientes do Estado com instituições públicas, empresas, organizações da sociedade civil e cidadãos, considerando três dimensões: a) promoção de dados abertos capazes de promover o acesso à informação pública por meio eletrônico; b) prestação de serviços públicos por meio eletrônico; e c) democracia digital, baseada em mecanismos de participação política de forma eletrônica (FARAZMAND, 2018).

A governança digital pode aportar evidências capazes de fundamentar a elaboração e revisão de políticas públicas com base em dados absorvidos, filtrados e inseridos em aplicações de inteligência artificial compatíveis proposituras mais eficientes para a promoção de decisões administrativas que impactam com serviços de saúde, educação, transporte, coleta seletiva de resíduos sólidos, assistência a desastres e outros desafios nas administrações locais, que conectam, no mínimo, o ODS 11 aos ODSs 3,4,5,9 e 16 (MASTER, 2019; ONU, 2020).

As transformações tecnológicas no âmbito da administração pública implicam o redesenho da burocracia por meio do uso das tecnologias da informação e comunicação (TIC), considerando as perspectivas de avanço na promoção da eficiência, a transparência, a participação social, o controle, a simplificação de processos, a agilidade, a igualdade e o tratamento isonômico na prestação de serviços públicos.

Com base no EGDI (Índice de Desenvolvimento em Governo Eletrônico), lista em que o Brasil ocupa a 54ª posição, as Nações Unidas mesuram o grau de efetividade da prestação de serviços públicos por meios digitais em 193 países, calculado levando três indicadores: o índice de oferta de serviços online, o índice de infraestrutura de telecomunicações e o índice de recursos humanos disponíveis.

A Lei 14.129/2021, que dispõe sobre princípios, diretrizes e componentes do governo digital, refere a obrigatoriedade da ação integrada da administração pública para a prestação digital de serviços públicos. A plataforma www.gov.br conectada com 23 estados da federação: Acre, Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Brasília, Ceará, Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraná, Paraíba, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Santa Catarina, São Paulo e Tocantins. Mas o número de municípios ainda pouco expressivo, já que das 5.570 unidades da federação, apenas 118 estão inseridas no gov.br.

Os 4.912 serviços da plataforma 3.733 foram digitalizados, agregam 16 áreas de atuação: a) Agricultura e Pecuária; b) Assistência Social; c) Ciência e Tecnologia; d) Comunicações e Transparência Pública; e) Cultura, Artes, História e Esportes; f) Educação e Pesquisa; g) Empresa, Industria e Comércio; h) Energia, Minerais e Combustíveis; i) Finanças Impostos e Gestão Pública; j) Forças Armadas e Defesa Civil; l) Justiça e Segurança; m) Meio Ambiente e Clima, n) Saúde e Vigilância Sanitária; o) Trabalho, Emprego e Previdência, p) Infraestrutura, Trânsito e Transportes, q) Viagens e Turismo (BRASIL, 2022).

De acordo com dados fornecidos pelo governo federal, a plataforma gov.br possui 130 milhões de usuários, o que equivale a 80% da população brasileira acima dos 18 anos de idade, mas os serviços digitais concentram prestações relacionadas a realização de cadastros, emissão de certificações, informações sobre a localização de prestadoras de serviços públicos, consulta de dados e área para manifestações de elogios e reclamações relativos a prestação de serviços digitais.

Apesar da quantidade expressiva de usuários da plataforma gov.br e da quantidade de áreas relativas a prestação de serviços, os impactos relativos a obtenção da prestação apresentam baixo impacto na concretização das metas da agenda 2030, referentes à produção de direitos fundamentais, e ainda não é possível afirmar a construção de um modelo de cidadania digital, observando os seguintes aspectos: a) os dados abertos não consolidam as informações indicadas no 7º da Lei 11.257/201; b) as cartas de serviços públicos referidas no artigo 7º  Lei 13.460/2017 não apresentam os dados necessários para a averiguação da adequação dos serviços públicos nas administrações estaduais e municipais; c) não é possível avaliar a gestão pública com base em evidências apresentadas a partir da filtragem de informações das manifestações, de acordo com a Lei 14.129/2021.

Conclusão
Para além da necessidade de vincular a agenda 2030 da ONU aos municípios brasileiros e fomentar o compartilhamento de tecnologia para implantação da Lei do Governo Digital e aperfeiçoamento dos indicadores de qualidade de gestão indicados no programa smarties citities, há uma expectativa de que a administração pública digital amplie sua eficiência numa perspectiva mais abrangente.

A administração pública 4.0 é uma realidade em construção que se beneficia de várias aplicações de Inteligência Artificial, agregando diversas soluções de machine learning. Alice, Mônica e Sofia mineram informações de 77 bases de dados para o Tribunal de Contas da União, Controladoria Geral da União, Ministério Público Federal, Polícia Federal e Tribunais de Contas estaduais, com a leitura de editais de licitações e atas de registros de preços publicados pela administração federal, alguns órgãos públicos estaduais e empresas estatais, realizados por Alice, que aponta indícios de irregularidades, enquanto Mônica observa todas as compras públicas, inclusive aquelas oriundas de dispensa e inexigibilidade e Sofia aponta erros produzidos em auditorias.

Portanto, é impreterível que a Administração Pública invista em educação digital, pois a revolução 4.0 já chegou e é possível que os governos municipais sejam cada vez mais digitais, contudo a aplicação de TICs na gestão pública brasileira deve ser cautelosa e identificar riscos para minimizar danos à cidadania digital, considerando os dilemas da exclusão digital, do analfabetismo digital, da  privacidade de dados e os possíveis erros no alinhamento de políticas públicas decorrentes do uso de inteligência artificial, em função de eventuais distorções na leitura e diagnóstico apresentado por algoritmos.

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Referências
BRASIL, Governo do Brasil. Serviços para você. Disponível em: https://www.gov.br/pt-br. Acesso: 17 jun. 2022.

BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Regional. Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento 2020. Disponível: http://snis.gov.br/painel-informacoes-saneamento-brasil/web/painel-setor-saneamento

CASSESE, Sabino. Globalizzazione del diritto. XXI Secolo Enciclopedia Italiana. Roma. p. 7-14, 2009. Disponível: https://images.irpa.eu/wp-content/uploads/2009/06/22_Globalizzazione-del-diritto.pdf. Acesso: 15 jun. 2022;

CGI. TIC Domicílios 2020: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros. 1. ed. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2021. Disponível: file:///C:/Users/there/Downloads/tic_domicilios_2020_livro_eletronico%20(1).pdf. Consulta 20/06/2022

CHIMNI, Bhupinder Singh. Third World approaches to international law: a manifesto. International Community Law Review. London. v. 8, nº 1, p.3-27, 2006. Disponível: https://jnu.ac.in/sites/default/files/Third%20World%20Manifesto%20BSChimni.pdf. Acesso: 15 jun. 2022.

BUARQUE, Sérgio C. Construindo o desenvolvimento local sustentável: metodologia de planejamento. 4. ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2008.

DELOITTE. Cidades Inteligentes: Como os avanços rápidos na tecnologia estão remodelando nossa economia e sociedade, 2015. Disponível em: https://www2.deloitte.com/content/dam/Deloitte/tr/Documents/public-sector/deloitte-nl-ps-smart-cities-report.pdf. Acesso em: 17 jun. 2022.

FARAZMAND, Ali. Global Encyclopedia of Public Administration, Public Policy, and Governance. Boca Raton: Springer, 2018.

FEIL, Alexandre  André.  SCHREIBER,  Dusan. Sustentabilidade e desenvolvimento sustentável: desvendando as sobreposições e alcances de seus significados. Cadernos Ebape, v. 14, nº 3, jul./set. 2017.

FUNDAÇÃO JOÃO PINHEIRO. Deficit habitacional no Brasil – 2016-2019. Belo Horinzonte: FJP, 2021. Disponível em: https://www.gov.br/mdr/pt-br/assuntos/habitacao/Relatorio DeficitHabitacionalnoBrasil20162019v1.0.pdf. Acesso em: 20 jun. 2022.

RAMIÓ, Carles. Inteligencia artificial y administración pública. Robots y humanos compartiendo el servicio. Madrid: Los Libros de la Catarata, 2019.

SCHMIDT-ASSMANN, Eberhard. La teoria General del derecho administrativo como sistema: objeto y fundamentos de la constucción sistemática. Barcelona: Instituto Nacional de Administración Pública (Inap). 2003.

URBAN SYSTEMS. Ranking Connected Smart Cities. Edição 2021. Disponível em: https://d335luupugsy2.cloudfront.net/cms/files/48668/1636033080Relatorio_RCSC_21_RD.pdf. Acesso em: 12 jun. 2022.

YAMAMOTO, Soji. O fundamento do direito administrativo Internacional. Revista de Direito Internacional e Diplomacia. Sociedade Japonesa de Direito Internacional. Tokyo. Vol. 67, nº 5, Fev, 1969.

Autores

  • é professora doutora de Direito Administrativo do programa de pós-graduação da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco) e Direito do Terceiro Setor na UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) — especialização. Mestre e doutora em Direito Público pela UFPE. Coordenadora do Geda (Grupo de Estudos em Direito Administrativo). Advogada, consultora jurídica em Recife (Theresa Nóbrega Sociedade de Advocacia). Associada fundadora da Abradade (Associação Brasileira de Direito Administrativo e Econômico). É membro do IAP (Instituto dos Advogados de Pernambuco), da Comissão de Infraestrutura da OAB-PE, presidente da comissão de Direito do Terceiro Setor da OAB-PE, membro da Comissão de Direito Administrativo do IAB (Instituto Brasileiro de Advogados), membro do Idasan (Instituto de Direito Administrativo Sancionador) e vice-presidente do Infra-E (Instituto de Infraestrutura e Energia).

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