Opinião

Nova lei de licitações e contratos e direito intertemporal: velhos problemas

Autores

  • José Humberto P. Muniz Filho

    é mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) especialista em Direito Tributário MBA em PPP e Concessões pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp) aluno visitante na UCL-Londres procurador do Estado e secretário-chefe da Controladoria Geral do Estado do Tocantins.

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  • João Benício V. Aguiar

    é mestrando pela Universidade de Brasília (UnB) aluno visitante na Fudan University SciencePo e Universidade de Salzburg membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia da UnB e do Centro de Direito Bancário da Universidade de São Paulo (USP) sócio do Aguiar e Mello Advogados e assessor jurídico no Senado.

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27 de março de 2023, 15h13

A data de revogação total da Lei nº 8.666/93 se avizinha, de acordo com o artigo 193, inciso II, da Lei nº 14.133/21 (nova Lei de Licitações): 1º de abril de 2023. Ambas são leis gerais sobre licitações e contratos da administração pública. Em conjunto, também se vão a Lei do Pregão (Lei nº 10.520/02) e as disposições sobre o Regime Diferenciado de Contrações (artigos 1º a 47-A da Lei nº 12.462/11).

Do ponto de vista teórico e prático, a aplicação da Nova Lei repisa um sem-número de discussões. Neste ensaio, o objetivo é empreender esforços e reflexões sobre situações postas, a amplitude dos artigos 191 e 193 daquela e conceitos jurídicos tradicionais que podem contribuir ao regime de transição das leis gerais mencionadas, a fim de gerenciar melhor eventuais questionamentos sobre direito intertemporal.

Tanto a Lei nº 14.133/21, quanto a Lei nº 8.666/93, disciplinam regras de direito material como de procedimento.

O critério de reajustamento de preços, requisitos de habilitação, medição, gestão do contrato, exigência de um plano de contratação, publicidade, requisitos do termo de referência, definição de serviços técnicos, hipóteses de contratação direta, sistema de registro de preço, garantias, duração dos contratos, infrações, etc., todos são exemplos de regras de direito material.

Enquanto isso, o faseamento, ou rito, da licitação (preparação, divulgação do edital de licitação, apresentação de propostas e lances, julgamento, habilitação, recursos, homologação), caracteriza as regras de procedimento. Não à toa, o Capítulo I, do Título II, da Lei nº 14.133/21, é denominado "Do Processo Licitatório". Contudo, nem todas as regras previstas no campo do aparte citado são de procedimento.

A importância da distinção dessas regras calha aos limites e matéria da vigência das leis no tempo. Com efeito, não custa revisar outro momento recente do direito brasileiro, no qual o direito intertemporal amadureceu na literatura nacional: a transição entre os Códigos de Processo Civil de 1973 e 2015. Na oportunidade, em linhas gerais, o artigo 1.046 do CPC/15 foi claro ao determinar a aplicação imediata aos processos pendentes, quando da entrada vigor da nova legislação. Porém, ao contrário de outros dispositivos de transição, a Nova Lei de Licitações aborda indistintamente as regras materiais e processuais.

Por sua vez, a Nova Lei facultou à administração a opção de licitar ou contratar diretamente de acordo com o antigo ou novo diploma. Logo, a lei agiu de forma indistinta a regras processuais (procedimentais) ou materiais (frise-se), ou a fase ou ato da licitação como limite temporal para a sua incidência.

As normas de direito material são disciplinadas pelos conceitos clássicos de irretroatividade das leis. Esta protege o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito (CRFB. Artigo 5º, XXXVI). O artigo 6º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42) define legislativamente aqueles conceitos. Não obstante, a moldura normativa da irretroatividade e da “lei no tempo” entabula matriz constitucional, não sendo possível interpretá-la a partir de dispositivos infraconstitucionais [1]. De tal modo, o Supremo Tribunal Federal decidiu no julgamento do RE 226.855/RS [2] e o Superior Tribunal de Justiça no ArRg no AREsp nº 539.901/SP [3].

A seu turno, a compreensão do direito intertemporal para com regras processuais exige a visualização estrutural do procedimento como um ato-complexo de formação sucessiva e do processo licitatório como uma relação jurídica teleológica entre partes [4]. Uma relação jurídica se define como toda relação intersubjetiva sobre a qual a norma jurídica incidiu, juridicizando-a, nascendo, já dentro do mundo do direito, como decorrência de fato jurídico [5]; caracteriza-se na circunstância em que ela vincula, pelo menos, dois sujeitos de direito a respeito de um objeto, cujo conteúdo é um direito (prestacional ou potestativo) e a sua correlata situação jurídica passiva (dever ou estado de sujeição), bem como as extensões acerca das pretensões, ações, exceções e obrigações [6].

Por essa medida sobrevém um desafio. Há uma maior facilidade em se enxergar o elemento subjetivo de uma relação jurídica ou procedimento em um processo judicial: partes e juiz, por exemplo. Ocorre que em boa parte do seu tempo, o elemento subjetivo da relação jurídica do processo de licitação tem vinculação indeterminada. Não existe, portanto, o sujeito "a", "b" ou "c", entretanto há uma sucessão de atos internos praticados pela administração na instrução de um processo licitatório: justificativa do gestor, memorando de abertura do processo, pesquisa de mercado, estudo técnico preliminar, termo de referência, minutas de edital e contrato, pareceres, detalhamento de dotação orçamentária, etc. Esses atos exemplificam o dever público da Administração em obedecer o rito legal.

Em todos os processos de licitação, o elemento subjetivo se inicia indeterminado, formado apenas pelo dever público do ente ou entidade licitante para com o cumprimento da lei geral de licitações. Tem-se uma relação subjetiva de direito público, na qual atos são desempenhados pelo licitante e passíveis de controle por órgão internos (procuradorias e controladorias, e.g.), externos (tribunais de contas, Ministério Público, e.g.) ou pela sociedade (via ação popular, mandado de segurança coletivo, e.g.) de forma mediata.  Só se afigura na fase externa da licitação uma determinação do elemento subjetivo, com a participação dos licitantes ou interessados.

A respeito dessa visão estrutural do procedimento como um ato-complexo de formação sucessiva e do processo licitatório como uma relação jurídica aparece o cerne do problema aqui enfrentado. Porquanto, "as normas processuais provêm para o futuro, disciplinando atos processuais que irão ser realizados" [7]. É o festivo princípio do tempus regit actum. Conforme preceitua Pontes de Miranda, ainda em lições preliminares ao direito intertemporal do Código de Processo Civil de 1939 a 1973, "a lei processual é de incidência imediata; vale dizer: a sua vigência determina a incidência sobre todos os atos que se vão praticar, ou se estão praticando" [8]  ressalve-se o sentido de vigência para o citado autor, aqui abordado como vigor.

Neste ínterim, três sistemas tratam da aplicação da lei processual no tempo: 1) o sistema da unidade, que determina a aplicação de uma só lei ao processo, da sua abertura até a sua conclusão (por esse, em proteção à irretroatividade da lei nova e proteção a um direito adquirido, aplica-se uma ultratividade lei antiga, mesmo aos processos concluídos na vigência novo diploma); 2) o sistema das fases processuais, pelo qual o processo é dividido em fases separadas ou concentradas, recaindo a incidência da nova lei a partir de determinada fase [9]; 3) o sistema do isolamento dos atos processuais para a incidência de uma nova lei ao ato em que for praticado em seu vigor (construção adotada no CPC/15, em seus artigos 14 e 1.046 do CPC/15).

A Nova Lei de Licitações não trouxe dispositivo de transcrição claro como os artigos 14 e 1.046 do CPC/15, por exemplo. De acordo com o artigo 191, apenas se abordou textualmente a faculdade da Administração optar por licitar ou contratar diretamente de acordo consigo ou com o antigo regramento, devendo a escolha ser indicada expressamente no edital ou no aviso ou instrumento de contratação direta, vedada a aplicação combinada desta Lei com as citadas no referido inciso.

O conjunto semântico do dispositivo traz duas premissas: primeira, o edital ou o aviso ou instrumento de contratação direta é o ato jurídico escolhido para indicar o regime jurídico adotado; segunda, e mais importante, é vedada a aplicação combinada da Nova Lei com o regime passado.

A problemática avança quando da análise do Parecer 6/2022 da CNLCA/CGU/AGU, da manifestação técnica de auditoria do Tribunal de Contas da União na representação TC 000.586/2023-4 e, por fim, da informação circular emitida pela a Secretaria de Gestão da Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital (Seges) do então Ministério da Economia, órgão central do Sistema de Serviços Gerais (Sisg), acerca da padronização parametrização do sistema Compras.gov.br à publicação dos editais no dia 31/03/2023, como marco temporal à vigência da Lei nº 8.666/93 e da nova Lei.

Escapa do debate administrativista perceber o edital ou o aviso ou instrumento de contratação direta como ato jurídico que dá imediatidade e publicidade ao regime jurídico escolhido (novo ou velho). Para isso, o edital perfectibiliza os efeitos dos atos e procedimentos já praticados nas fases da licitação passadas em regime único, pois é vedada a aplicação combinada das leis. Noutros termos, o edital aparece como ato de homologação e publicização dos atos passados.

Tudo isso ilustra o pressuposto de que a norma jurídica (no caso, o art. 191 da Nova Lei) tem o poder de limitar, protrair, restaurar, dar imediatidade, modificar ou extinguir efeitos jurídicos, desde que respeitado o princípio da irretroatividade [10]. Por tal razão, a simples abertura de processo licitatório que opte por uma ou outra lei, no período de concorrência legislativa do artigo 193, inciso II, da Nova Lei (até 31 de março/23), poderá ter uma ultratividade especial à Lei 8.666/93, segundo melhor interpretação do artigo 191 da Nova Lei.

Não parece crível se deparar com a vedação expressa à combinação de regimes jurídicos, mas adotar um ou outro ato, como estudo técnico preliminar ou termo de referência como marco temporal à incidência de algum dos regime. Técnica e analiticamente, isso desvencilharia o conceito jurídico de licitação como processo, procedimento e relação jurídica de direito público. Caso assim denotasse, a técnica legislativa e a própria lei deveriam ter traçado marcos temporais e a aplicação imediata aos processos pendentes, como se maneja no sistema de isolamento dos atos ou fases processuais.

A exemplo e reflexão: em caso de justificativa de gestor e estudo técnico motivados na Lei nº 8.666/93, os quais violem a regulação do objeto licitado, mas que tenham edital e fase externa, ou até anteriormente o termo de referência, motivados na Lei nº 14.133/2021, qual deve ser o parâmetro de liquidez e certeza para a pretensão de interessado na impetração de mandado de segurança, a Lei nº 8.666/93 ou a Lei nº 14.133/2021? A opção por um ou outro regime traz aplicação combinada à relação jurídica de direito público e processual que é a licitação?

Nessa intelecção, a Secretaria-Geral do Controle Externo do TCU muito bem ponderou: por decorrência lógica, pelo próprio sentido da palavra, a opção por licitar pelo regime antigo parece vir antes da publicação do instrumento convocatório. Antes da publicação do edital, ocorre a fase interna da licitação, o que agora a nova lei chama de fase preparatória, com a elaboração de diversos documentos, tais como o documento de formalização da demanda, estudos técnicos preliminares, termo de referência ou projeto básico, dentre outros [11].

Por esse enredo, uma preocupação surge. Muitos Entes vêm regulamentando a nova Lei, delimitando marcos temporais e investindo interpretação àquela a partir de decretos ou atos normativos secundários. É o caso, por exemplo, do governo federal com a Portaria Seges/MGI Nº 720 e do estado de São Paulo com o Decreto nº 67.570/2023. De maneira similar, o Rio de Janeiro publicou o Decreto nº 48.375/23; Pernambuco [12] editou a Portaria Conjunta SAD/PGE nº 14/2023; o Rio Grande do Sul [13] publicou a Lei nº 15.901/2022; o Estado do Maranhão publicou uma série de decretos no último 6 de março, aqui importando os artigos 55 e 58 do Decreto nº 38.136; o Estado da Paraíba [14] publicou a Portaria Conjunta 1/2023/CGE/PGE/Sead; entre outros estados a publicarem suas regulamentações e municípios. A regulamentação também tem surgido por órgãos de controle como o TCM-BA com a Portaria nº 02/2023.

Todavia, já em conclusão, a indicação de uma ou outra fase, ou ato, no curso do processo de licitação, para fins de delimitação da incidência legislativa, põe em xeque uma construção macro. Há, in casu, vedação à interpretação da matriz constitucional do direito adquirido e do ato jurídico em matéria de direito público (de titularidade indefinida) e da relação jurídica processual, por parte de atos infralegais, sejam decretos regulamentadores ou outros atos normativos secundários, conforme já decidido no RE 226.855/RS e no ArRg no AREsp nº 539.901/SP. Por essa medida, o "simples" e correto se amolda a uma ultratividade especial da Lei nº 8.666/93 para com os processos abertos e justificados até 31 de março de 2023.


[1] CUNHA, Leonardo Carneiro da. Direito intertemporal e o novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 13.

[2] Relator ministro Moreira Alves, Plenário, julgado em 31.08.2000.

[3] Relator ministro Benedito Gonçalves, 1ª Turma, julgado em 11.11.2014.

[iv] Ver DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Fatos Jurídicos processuais. Salvador, Juspodiv, 2011, p. 25 e 128.

[5] MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da eficácia — 1ª Parte. 3ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 171.

[6] DIDIER JR. e NOGUEIRA, op. cit.

[7] CUNHA, p. 25.

[8] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil de 1973. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 4.

[9] CUNHA, p. 27.

[10] MELLO, p. 37.

[11] Item 31 da TC 000.586/2023-4.

Autores

  • é mestre em direito pela Universidade Católica de Pernambuco (Unicap), especialista em Direito Tributário, MBA em PPP e Concessões pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fespsp), aluno visitante na UCL-Londres, procurador do Estado e secretário-chefe da Controladoria Geral do Estado do Tocantins.

  • é mestrando pela Universidade de Brasília (UnB), aluno visitante na Fudan University, SciencePo e Universidade de Salzburg, membro do Grupo de Estudos em Direito e Economia da UnB e do Centro de Direito Bancário da Universidade de São Paulo (USP), sócio do Aguiar e Mello Advogados e assessor jurídico no Senado.

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