Embargos Culturais

O "direito da primeira noite" e "As Primícias", de Dias Gomes

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

7 de maio de 2023, 8h00

Conta-nos certa narrativa historiográfica que o senhor feudal reservava para si o direito de passar a primeira noite de casamento com todas as mulheres do seu domínio. Na qualidade de dono inconteste de tudo e de todos o senhor via-se como o legítimo proprietário da primeira noite de todas as moças, as quais desvirginava. Atribuía-se um "privilégio", que ainda justificava como favor e benesse para praticava autorizado por costumes imemoriais.

Ainda que o resumo que apresento seja historicamente impreciso, porque há variáveis e nuances, o tema é o pano de fundo para um horror civilizatório que na verdade revela relações de poder e de violência. É o tema do jus primae noctis, o "direito da primeira noite".

Spacca
Dias Gomes, o mais produtivo e importante dramaturgo popular brasileiro, (recomendo o estudo de Iná Camargo Costa, recentemente publicado pela Editora da Unesp) tomou o assunto do direito da primeira noite como fio condutor de "As Primícias", peça que escreveu em 1977, e que foi levada ao palco pela primeira vez em Brasília, em 1979, dirigida por Ricardo Torres. O diretor, Ricardo Torres, competentíssimo, dirige presentemente "Luiz Gama, uma voz pela liberdade", levado ao palco no Centro Cultural da Justiça Federal, na Cinelândia, no Rio de Janeiro. Mais uma peça imperdível.

"As Primícias" é um texto militante, de alto nível. É talvez o texto mais sério sobre a condição feminina (e sobre a violência contra as mulheres) que li nos últimos tempos. O problema é de algum modo universal e de todos os modos atemporal. Tanto que o dramaturgo diz ambientar a estória "em uma aldeia da Europa ou da América do Latina, entre os séculos 6 e 20". Essa peça tem o peso moral de quem sabe que está dizendo uma coisa importante.

No enredo, uma virgem que seria oferecida ao senhor, e que se insurgiu contra a exigência do costume local. O marido, ao contrário de todos os outros maridos do tempo, também se insubordinou ao desejo do chefão. A própria mãe da insurgente defendia o costume abjeto: "Todos suportam, se não há outro jeito. Também não é assim… É um homem muito gentil, muito perfumado… Vou lhe dizer o que deve fazer para que a coisa não seja tão desagradável. Basta que na hora do sacrifício feche os olhos, relaxe e pense no homem que desejaria ter por cima (…)".

O senhor local insiste que se trata de uma obrigação, de um sacrifício para ele próprio (sic), uma obrigação natural que não pode deixar de cumprir: "Mesmo sendo sacrifício, não iria me eximir. Porque a lei é a lei. Dever ser para todos igual. Esse ato expressa meu imenso amor ao povo, sem o menor preconceito estético ou racial (…)". A lei, mais uma vez, é a lei…

Na noite alcançada pela peça o senhor violentou quatro mulheres, aguardando a insurgente, que seria a última. Os noivos das mulheres violentadas se revoltaram, saindo à caça da noiva insurgente e de seu noivo. Ao invés de se unirem no ataque contra uma instituição diabólica, exigiam que o sacrifício fosse também vivido pela noiva insurgente. A solidez das instituições locais estava em jogo.

Não conto o desfecho, porque resenhas críticas não podem insinuar spoilers. Porém, adianto que os leitores dessa aliciante peça (agora publicada pela Bertrand Brasil) ficarão duplamente chocados com a reação da esposa do senhor todo poderoso.

"As Primícias" é uma peça sobre poder, violência e misoginia. A estória que Dias Gomes contou não é diferente da história por tantas pessoas vivida. O dramaturgo dissecou a espinha dorsal de relações de poder que é misteriosamente sustentada por aqueles que são paradoxalmente os mais oprimidos. Um tema fascinante para quem gostamos do selo direito e literatura. Uma estória aflitiva para quem nos preocupamos com a dignidade da condição humana.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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