O "direito da primeira noite" e "As Primícias", de Dias Gomes
7 de maio de 2023, 8h00
Conta-nos certa narrativa historiográfica que o senhor feudal reservava para si o direito de passar a primeira noite de casamento com todas as mulheres do seu domínio. Na qualidade de dono inconteste de tudo e de todos o senhor via-se como o legítimo proprietário da primeira noite de todas as moças, as quais desvirginava. Atribuía-se um "privilégio", que ainda justificava como favor e benesse para praticava autorizado por costumes imemoriais.
Ainda que o resumo que apresento seja historicamente impreciso, porque há variáveis e nuances, o tema é o pano de fundo para um horror civilizatório que na verdade revela relações de poder e de violência. É o tema do jus primae noctis, o "direito da primeira noite".
"As Primícias" é um texto militante, de alto nível. É talvez o texto mais sério sobre a condição feminina (e sobre a violência contra as mulheres) que li nos últimos tempos. O problema é de algum modo universal e de todos os modos atemporal. Tanto que o dramaturgo diz ambientar a estória "em uma aldeia da Europa ou da América do Latina, entre os séculos 6 e 20". Essa peça tem o peso moral de quem sabe que está dizendo uma coisa importante.
No enredo, uma virgem que seria oferecida ao senhor, e que se insurgiu contra a exigência do costume local. O marido, ao contrário de todos os outros maridos do tempo, também se insubordinou ao desejo do chefão. A própria mãe da insurgente defendia o costume abjeto: "Todos suportam, se não há outro jeito. Também não é assim… É um homem muito gentil, muito perfumado… Vou lhe dizer o que deve fazer para que a coisa não seja tão desagradável. Basta que na hora do sacrifício feche os olhos, relaxe e pense no homem que desejaria ter por cima (…)".
O senhor local insiste que se trata de uma obrigação, de um sacrifício para ele próprio (sic), uma obrigação natural que não pode deixar de cumprir: "Mesmo sendo sacrifício, não iria me eximir. Porque a lei é a lei. Dever ser para todos igual. Esse ato expressa meu imenso amor ao povo, sem o menor preconceito estético ou racial (…)". A lei, mais uma vez, é a lei…
Na noite alcançada pela peça o senhor violentou quatro mulheres, aguardando a insurgente, que seria a última. Os noivos das mulheres violentadas se revoltaram, saindo à caça da noiva insurgente e de seu noivo. Ao invés de se unirem no ataque contra uma instituição diabólica, exigiam que o sacrifício fosse também vivido pela noiva insurgente. A solidez das instituições locais estava em jogo.
Não conto o desfecho, porque resenhas críticas não podem insinuar spoilers. Porém, adianto que os leitores dessa aliciante peça (agora publicada pela Bertrand Brasil) ficarão duplamente chocados com a reação da esposa do senhor todo poderoso.
"As Primícias" é uma peça sobre poder, violência e misoginia. A estória que Dias Gomes contou não é diferente da história por tantas pessoas vivida. O dramaturgo dissecou a espinha dorsal de relações de poder que é misteriosamente sustentada por aqueles que são paradoxalmente os mais oprimidos. Um tema fascinante para quem gostamos do selo direito e literatura. Uma estória aflitiva para quem nos preocupamos com a dignidade da condição humana.
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