Opinião

Células-tronco embrionárias: questões éticas e responsabilidade civil

Autor

  • Rodrigo Spessatto

    é mestrando em Direito pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc) especialista em Direito Público pela Universidade Potiguar (UNP) e procurador da Foz Previdência (Fozprev).

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3 de maio de 2023, 17h22

Não é recente o interesse da humanidade em encontrar o "elixir da longa vida ou da imortalidade". Desde a mitologia grega, com o manjar dos deuses do Olimpo, até a mitologia nórdica, cujas maçãs de um pomo poderiam dar vida eterna aos deuses, passando pelas lendas que envolvem as fontes da juventude, sempre houve uma contínua busca pela manutenção da saúde e da vida.

Ao lado da mitologia e das lendas que perpassaram milênios, hodiernamente a humanidade se depara com a realidade das pesquisas científicas que envolvem as células-tronco embrionárias, que possuem uma grande capacidade de diferenciação e transformação em qualquer outra célula do corpo humano, inclusive, podendo formar outro ser humano por completo.

Percebe-se, portanto, que atualmente não é mais preciso recorrer à ficção para quiçá encontrar a imortalidade, uma vez que a tecnologia hoje à disposição da humanidade já proporciona uma palpável possibilidade de, ao menos, prolongar-se a vida a níveis até então inimagináveis.

As primeiras pesquisas relacionadas às células-tronco tiveram início na década de 1960, tendo como precursor o cientista britânico John B. Gordon, ao substituir o núcleo celular existente no óvulo de um sapo, pelo núcleo de uma célula intestinal madura, constatando que o DNA da célula madura e diferenciada permanecia com as informações necessárias ao desenvolvimento de todas as células do corpo, sendo que o óvulo continuou a se desenvolver normalmente.

No ano de 2012, John B. Gordon, aos 79 (setenta e nove) anos de idade, foi agraciado pelo Prêmio Nobel de Medicina, em Estocolmo, na Suécia. A premiação foi ao mesmo tempo ofertada pelo Instituto Karolinska, ao japonês Shinya Yamanaka (50), pela descoberta, em trabalhos separados por 44 anos de distância temporal, de que células adultas podem ser "reprogramadas" para se tornarem imaturas e pluripotentes, ou seja, capazes de se especializar em qualquer órgão ou tecido corporal, como nervos, músculos, ossos e pele (Globo Notícias, 2012).

Tem-se notícia de que as pesquisas com células-tronco se iniciaram no Brasil em 2001, quando da criação do Instituto Milênio de Bioengenharia Tecidual, vinculado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. O mencionado instituto foi criado com o escopo de fortalecer os estudos acadêmicos e tecnológicos, objetivando a produção de abordagens terapêuticas inovadoras, com o uso de tecnologia celular para o reparo de órgãos e tecidos (Zorzanelli, 2016).

As células-tronco, também denominadas de células-mãe ou células estaminais, são erigidas a partir da fecundação do espermatozoide com o óvulo, quando do surgimento do zigoto que, após ser objeto de mitoses, resulta em uma "bola de células" que se diferenciam originando os folhetos germinativos, diferenciando-se novamente em tecidos e órgãos do organismo. São classificas em células-tronco adultas ou não embrionárias, células-tronco induzidas e células-tronco embrionárias (Moraes, 2022).

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As primeiras pesquisas com células-tronco embrionárias humanas foram publicadas no ano de 1998, pela equipe do professor James A. Thomson, da Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos. Há também relato de que o cientista John D. Gearhart, da Universidade Johns Hopkins, realizou em 1998 pesquisas com células tronco fetais humanas (Goldim, 2002).

No Brasil, o primeiro registro de utilização das células-tronco extraídas de embriões foi em 2010, para curar lesões de uma fêmea de lobo-guará, atropelada por um caminhão. O tratamento durou quatro meses, metade do tempo previsto para a recuperação do animal (Magalhães, 2022).

As células-tronco embrionários são aquelas encontradas nos embriões, aproximadamente cinco dias após a fecundação do espermatozoide com o óvulo. Assim, formam-se no começo do desenvolvimento embrionário, bem como se destacam pelo processo chamado de "diferenciação celular", apresentando alta capacidade de se transformar em qualquer tipo de célula.

Os estudos com células-tronco embrionárias são ainda incipientes, contudo, sabe-se que os benefícios decorrentes de sua utilização são enormes, mormente em favor da vida e da saúde dos seres humanos. Não há dúvida, outrossim, que alguns riscos são erigidos de seu uso deliberado, causando preocupação e uma certa cautela dos pesquisadores, motivo pelo qual infindáveis discussões surgiram em torno de sua aplicação, em especial nas áreas médica e terapêutica.

Insta consignar que as células-tronco embrionárias, quando de sua retirada, acabam por destruir totalmente o embrião do qual decorrem, de modo que a sua pesquisa ainda não é mundialmente aceita de maneira uniforme, uma vez que considerada um atentado à vida humana. Assim, inúmeros países proíbem ou possuem alguma restrição no que concerne à sua utilização, a exemplo de Portugal, Alemanha, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Reino Unido, Áustria, Bélgica, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda e Suécia (Lino, 2022).

Destaca-se que no Brasil também não foi diferente, precipuamente depois da edição da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005, intitulada como Lei de Biossegurança, que objetivou regulamentar o uso das células-tronco embrionárias, provenientes de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no respectivo procedimento, desde que atendidas determinadas condições e unicamente para fins de pesquisa e terapia.

A norma editada fez surgir acalorados debates entre diversos setores da sociedade, alguns contrários e outros favoráveis à utilização das células-tronco embrionárias para pesquisas nas áreas médica e terapêutica, de modo que acabou sendo inevitável o ajuizamento de uma ação a fim de questionar a constitucionalidade da referida lei.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.510/DF foi ajuizada, pelo procurador-geral da República, em face do artigo 5º da Lei nº 11.105, de 24 de março de 2005 (Lei de Biossegurança). Ao perscrutar o citado dispositivo legal, constata-se que procurou o legislador autorizar as pesquisas com células-tronco embrionárias, entretanto, com a observância de determinadas cautelas, notadamente objetivando o respeito à vida intrauterina que ainda irá se desenvolver.

Acalorados debates foram travados por diversos segmentos da sociedade, especialmente entre as classes científica e religiosa, ambos os lados externando substanciosos e convincentes fundamentos, aqueles favoráveis e estes contrários à utilização das células-tronco embrionárias, motivo pelo qual restou necessário, inclusive, que fossem agendadas incontáveis audiências públicas com o escopo de fornecer elementos aos julgadores acerca do tema sub examine.

Após intensa discussão acerca da matéria, o Supremo Tribunal Federal então julgou constitucional o artigo 5º da Lei de Biossegurança, permitindo as pesquisas com células-tronco embrionárias, desde que observadas as condições preceituadas na norma. Dessa forma, encontra-se hodiernamente permitida no Brasil a sua utilização para fins medicinais e terapêuticos.

No entanto, considerando o dinamismo e a complexidade das relações sociais, verifica-se hoje o surgimento de alguns problemas que decorrem e estão intrinsecamente ligados à declaração de constitucionalidade da referida norma, precipuamente no âmbito da responsabilidade civil.

A declaração de validade da norma relativa à utilização das células-tronco embrionárias, acabou por originar relações jurídicas até então inexistentes no ordenamento jurídico brasileiro e que agora estão sendo enfrentadas pelo Poder Judiciário. A partir de então foram constituídas inúmeras empresas especializadas na prestação de serviços de coleta e armazenamento de material biológico, cuja atividade normalmente é exercida durante e após o parto, quando da retirada do cordão umbilical e da placenta.

A coleta e o armazenamento das células-tronco embrionárias têm por finalidade a preservação de material biológico, extraído da placenta e do cordão umbilical de neonatos, pelo regime da criopreservação, objetivando o futuro tratamento de patologias que eventualmente possam acometer o indivíduo.

Segundo informações constantes no 2º Relatório de Produção de Bancos de Sangue de Cordão Umbilical e Placentário para Uso Autólogo (BSCUPA), publicado em 2011, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram armazenados no Brasil, até o ano de 2010, aproximadamente 45 mil unidades de sangue de cordão umbilical, sendo que apenas oito foram utilizadas para transplante (Rinaldi, 2013).

Revela-se natural que, ao longo do tempo, ocorram falhas na prestação desses serviços, como, por exemplo, quando o responsável pela coleta não comparece tempestivamente no momento do parto, quando o material biológico não é apropriadamente armazenado, ou quando o descongelamento é inexitoso acarretando a sua perda. Considerando ser contratual a relação jurídica entre a empresa especializada e a pessoa física contratante, bem como que o regramento aplicável é o consumerista, deve incidir o microssistema normativo tutelado pelo Código de Defesa do Consumidor.

Vale ressaltar que o artigo 2º da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (CDC), define consumidor como sendo qualquer pessoa que contrata o serviço como destinatário final, de modo que a relação jurídica, malgrado possa ser ultimada por quaisquer dos genitores, compreende a unidade familiar (pai, mãe e nascituro) como destinatária da contratação, exaurindo-se o serviço prestado na utilização do material biológico, não havendo qualquer escopo de circulação econômica ou repasse ao mercado de consumo. Por outro lado, nos moldes do artigo 3º do CDC, não há dúvida da condição de fornecedora da empresa especializada.

A despeito de haver divergência acerca do tema, tendo em vista que as relações jurídicas formadas ainda são recentes, pode-se dizer que os contratos de prestação de serviços de coleta e armazenamento de células-tronco embrionárias, resultam apenas em obrigação de meio à empresa especializada e não de resultado, cabendo tão somente, a fim de excluir a responsabilidade civil, a demonstração de que, ao longo de todo o processo, foram adotadas todas as medidas e técnicas adequadas ao procedimento médico (REsp 992.821/SC, STJ, 2012).

Por sua vez, devidamente demonstrada a responsabilidade civil da empresa especializada, ante a comprovação de falha na prestação dos serviços de coleta e armazenamento do material biológico, deve haver o integral ressarcimento dos danos materiais, morais e estéticos eventualmente sofridos pelo consumidor. Da mesma forma, conquanto haja divergência jurisprudencial, podem ser encontradas decisões aplicando ao caso a Teoria da Perda de uma Chance, considerando que restou frustrada a expectativa de uma vantagem futura (Apelação 0121698-24.2007.8.19.0001, TJ-RJ, 2012).

Impende mencionar, ainda, que o avanço tecnológico relacionado às áreas médica, farmacológica e terapêutica, proporcionou longevidade e uma melhor qualidade de vida aos seres humanos. Entretanto, não se pode olvidar que a evolução científica é resultado de intensos estudos que, conforme demonstrado pela história recente, utilizam-se de técnicas e métodos questionáveis, violando os mais básicos direitos inerentes à existência digna de qualquer indivíduo, a exemplo dos fatos notoriamente conhecidos que ocorreram durante a Segunda Guerra Mundial.

Eram inúmeras as atrocidades cometidas nos campos de concentração nazista, citando-se como exemplo as praticadas em Dachaun (Sul da Alemanha), ao mergulharem os prisioneiros despidos em temperaturas abaixo de zero, obrigando as vítimas a ficar de pé ou deitadas, nuas, ao ar livre, no auge do inverno, de nove a quatorze horas, sendo que, ao falecerem, os seus respectivos órgãos eram retirados e enviados ao Instituto de Patologia de Munique, e os corpos eram descongelados a fim de posteriormente serem utilizados em técnicas experimentais com finalidades militares (Reckziegel, 2013).

Destarte, considerando a enorme mácula histórica no que concerne às pesquisas científicas realizadas na área da saúde, alguns questionamentos devem ser aventados especificamente em relação aos experimentos com células-tronco embrionárias. Atualmente, com o expresso aval da Suprema Corte brasileira, malgrado devam ser respeitadas determinadas condições, diversos laboratórios têm se dedicado ao estudo e, quiçá, de forma duvidosa ante incipiente fiscalização erigida pela legislação vigente.

Faz-se mister ressaltar que a clonagem, cujo estudo é altamente questionável ante os reflexos morais e éticos que podem impactar a sociedade, também decorre das pesquisas com células-tronco embrionárias. Assim, a indagação que surge é no sentido de saber se os laboratórios médicos, às escuras e de forma velada, não estão direcionando todos os seus esforços na obtenção de um clone humano.

A imensidão territorial do país e a ainda incipiente fiscalização erigida pela legislação de regência, poderá ser um incentivo à pesquisa celular objetivando não apenas a clonagem de seres humanos, mas também de outros experimentos científicos que sequer podem ser imaginados pela sociedade atual, que estão sendo realizados às escondidas a pretexto de se alcançar um maior desenvolvimento nas áreas médica, farmacológica e terapêutica.

Os fatos históricos ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial não podem ser nunca esquecidos, de modo que a vigilância deve ser constante para que o exemplo nazista não se repita nos dias atuais. Por óbvio, o desiderato da humanidade é a busca de uma vida longeva e saudável, contudo, a sua obtenção não pode violar princípios fundamentais e basilares que devem tutelar todo e qualquer indivíduo.

A história recente deve servir de exemplo a não ser seguido pelas futuras gerações, uma vez que o ser humano não mais pode ser utilizado como um mero objeto e, por consequência, vítima de atrocidades em prol da ciência como um fim em si mesmo.

A ficção outrora existente e intangível, hodiernamente foi substituída pela realidade palpável de uma diferenciação celular, que poderá, inclusive, formar outro ser humano por completo, seja para simplesmente armazenar órgãos vitais a serem transplantados, seja para suceder uma pessoa que já não mais possui condições físicas de sobrevivência.

Percebe-se que a mitologia e a ficção foram hoje substituídas pela concreta possibilidade de se atingirem resultados que sequer podem ser mensurados, que dependerão apenas do esforço responsável do ser humano em proporcionar aos seus pares uma vida mais saudável ou, talvez num futuro distante, a imortalidade tão sonhada desde os tempos mais remotos.

 


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MAGALHÃES, Lana. Células-tronco. Toda Matéria, 2022. Disponível em: < https://www.todamateria.com.br/celulas-tronco/>. Acesso em: 14 dez. 2022.

MORAES, Paula Louredo. Células-tronco. Brasil Escola, 2022. Disponível em: <https://brasilescola.uol.com.br/biologia/celula-mae2.htm>. Acesso em: 14 dez. 2022.

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ROBEY, P. G. Stem cells near the century mark. J. Clin. Invest., Thorofare, v.105, n.11, p.1489-1491, June 2000.

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TJ/RJ, Apelação 0121698-24.2007.8.19.0001, Relator Desembargador Luciano Rinaldi, Sétima Câmara Cível, Julgado em 23/5/2012, DJe 29/5/2012).

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