Opinião

Troca de informações concorrencialmente sensíveis no setor de cuidados à saúde

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19 de abril de 2023, 11h17

O Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) vem, há muitos anos, conferindo atenção especial e crescente ao mercado de saúde suplementar por meio do exercício de todas as suas funções: preventiva, repressiva e educativa.

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Como exemplos que sustentam essa afirmação, podemos citar a existência de investigações e decisões do Cade em relação a condutas nos mercados de atenção à saúde, como os casos que envolvem tabelas de honorários médicos, cooperativas médicas e unimilitância. Quanto ao exercício de sua função educativa, citamos as recentes atualizações dos cadernos "Mercado de Saúde Suplementar: Condutas" [1] e "Atos de concentração nos mercados de planos de saúde, hospitais e medicina diagnóstica" [2], feitas em dezembro de 2021 e dezembro de 2022, respectivamente. Destacamos também a publicação, pelo Departamento de Estudos Econômicos (DEE), do estudo denominado "Ensaios sobre o mercado de saúde suplementar" [3], ocorrida no final de 2021.

Já com relação à atuação preventiva da autarquia, além do aumento do número de análises de atos de concentração nos segmentos de planos de saúde, hospitais e medicina diagnóstica nos últimos anos, que ocorre como consequência natural da elevação da concentração e verticalização no setor, nota-se que o conselho tem empenhado cada vez mais esforços na realização dessas análises, seja por meio do aprofundamento da etapa de testes de mercado, seja pela atenção dada a tópicos que há poucos anos pareciam estar fora do radar da autoridade, como os possíveis riscos relacionados à troca de informações sensíveis em razão da criação de estruturas verticalizadas entre operadoras de planos de saúde e estabelecimentos de cuidados à saúde.

Quanto aos eventuais riscos concorrenciais advindos da troca de informações entre agentes do setor de saúde, importa destacar que a preocupação com o tema não tem sido verificada apenas no Brasil. No início de fevereiro de 2023, a Divisão Antitruste do US Departament of Justice (DoJ), autoridade responsável, juntamente com a Federal Trade Commission (FTC), pela defesa da concorrência nos Estados Unidos, invalidou três de seus guias antitruste, todos relacionados ao mercado de saúde, quais sejam, 1) Departament of Justice and FTC Antitrust Enforcement Policy Statements in the Health Care Area, de 1993; 2) Statements of Antitrust Enforcement Policy in Health Care, de 1996 e iii) Statement of Antitrust Enforcement Policy Regarding Accountable Care Organizations Participating in the Medicare Shared Savings Program.

De acordo com o release publicado pelo DoJ [4], o conteúdo de tais guias seria "excessivamente permissivo" em relação a diversos assuntos, especialmente quanto a trocas de informações entre concorrentes. Ainda de acordo com o referido comunicado, os guias também criavam "safe harbors" para condutas que contavam com cooperação entre agentes dos mercados de saúde.

Durante décadas, os "safe harbors" contidos nos mencionados guias garantiram às empresas do setor que certos tipos de condutas conjuntas entre concorrentes seriam classificados pelas autoridades antitruste como legítimas e pró-competitivas, exceto em circunstâncias excepcionais. As autoridades e os tribunais americanos também se baseavam nas orientações desses guias para analisar a legalidade das atividades de compartilhamento de informações entre concorrentes.

De acordo com membros do DoJ, as "zonas de segurança" contidas nesses documentos estariam desatualizadas e teriam se tornado incapazes de refletir a realidade atual dos mercados de cuidados à saúde, que passaram por intensas modificações ao longo dos últimos anos.

Com relação às trocas de informações entre concorrentes, os mencionados guias consideravam o compartilhamento como "seguro" se 1) um terceiro independente agregasse as informações/dados; 2) se as informações/dados tivessem sido extraídas há pelo menos três meses e 3) se fossem agregadas de uma forma que impedisse a identificação de dados sensíveis à concorrência de uma única empresa.

Ocorre que, atualmente, há diversos autores que defendem que o aumento da agregação de dados e o uso algoritmos de precificação aumentaram o valor competitivo dos dados históricos, permitindo que os concorrentes desagreguem os dados e os usem para fins anticompetitivos, o que tornaria as orientações citadas acima pouco eficientes ou até mesmo danosas à competição.

Em que pese os mencionados guias fossem documentos com fins de orientação ao mercado, incapazes, portanto, de criar direitos ou obrigações legais  de modo idêntico aos guias orientativos publicados pelo Cade , oDoJ concluiu que a sua "revogação" seria a melhor ação para promover a concorrência e a transparência no setor de healthcare.

Embora a invalidação dos guias e a falta de qualquer substituição imediata possam criar incertezas para as empresas americanas de assistência médica, as orientações sobre o compartilhamento de informações fornecida pela jurisprudência (como o caso Todd v. Exxon Corp [5]), as quais não se baseiam expressamente nas declarações dos guias em questão, podem permanecer aptas a orientá-las.

Vale mencionar que o DoJ, ao menos por ora, não invalidou seu guia sobre colaboração entre concorrentes, que emitiu em conjunto com a FTC em 2000 [6]. A proposta desse documento é explicar como as agências analisam determinadas colaborações entre concorrentes, porém, à luz dos desenvolvimentos descritos acima, não está claro se as abordagens descritas no mencionado guia permanecem  ou permanecerão  instrutivas.

Esse movimento de revogação dos guias pelo DoJ pode levar as empresas americanas de cuidados à saúde a reavaliar os riscos antitruste associados aos programas existentes de compartilhamento de informações envolvendo concorrentes, bem como pode impactar a condução de outras atividades realizadas em cooperação. Ademais, essa medida pode ser entendida como uma importante sinalização do aumento da preocupação das autoridades norte-americanas com a competição nos mercados de saúde.

Ainda, nos parece provável que passemos a observar, por parte das autoridades antitruste dos Estados Unidos, análises mais aguerridas em fusões e aquisições nesses mercados e até mesmo um aumento no número de investigações de condutas anticompetitivas, o que, em regra, costuma repercutir em outras partes do mundo, como no Brasil, uma vez que o Cade tem como um dos pilares da excelência no desempenho de suas competências o fato de estar sempre atento às mudanças e evoluções da doutrina e da jurisprudência internacionais, incorporando essas tendências às suas práticas.

Assim, enquanto o Cade não atualizar ou lançar novos guias que tratem do tema de troca de informações concorrencialmente sensíveis nos mercados de saúde suplementar, caberá às empresas do setor, de modo semelhante ao caso americano, se atentarem especialmente às orientações extraídas da jurisprudência recente do Conselho sobre o tema.


[5] De acordo com o entendimento firmado nesse caso, a troca de informações não seria ilegal per se (a menos que seja baseada em um acordo de fixação de preços ou outras atividades ilegais per se), mas poderia ser considerada ilegal sob a análise da regra da razão, que envolve a ponderação dos benefícios pró-competitivos e efeitos anticoncorrenciais da troca de informações.

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