Território Aduaneiro

Se o futuro é digital, Aduana e aduaneiristas também precisam ser

Autor

  • Fernanda Kotzias

    é sócia do Veirano Advogados advogada aduaneira doutora em Direito do Comércio Internacional professora de pós-graduação e ex-conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).

2 de maio de 2023, 9h28

Transformação digital, comércio digital, e-commerce. Difícil quem não se depare com esses termos cotidianamente ao navegar pelo ambiente empresarial. Da mesma forma, difícil tratar do futuro do comércio exterior sem adentrar nos efeitos do mundo digital.

Todas estas expressões convergem  para a noção de digitalização da economia, em que a tecnologia da informação e os avanços tecnológicos são utilizados para conectar pessoas e negócios.

Apesar disso, cada termo se aplica a um contexto específico. Por exemplo, por transformação digital se entende a mudança ou o desenvolvimento de novos processos de negócio e/ou produto a partir de novas tecnologias (digitais).

No mundo do comércio exterior, a maior parte da discussão se concentra no conteúdo das expressões comércio digital e e-commerce. Sendo a segunda uma subespécie da primeira.

O comércio digital engloba transações comerciais de bens e serviços que são habilitadas digitalmente — independente da entrega ser física ou digital — e que envolvem consumidores, empresas e governos. Em outras palavras, embora todas as formas de comércio digital sejam possibilitadas por tecnologias digitais, nem todo comércio digital é entregue eletronicamente.

Diante disso, verifica-se que o comércio digital se dá por meio de três principais dimensões: (i) das transações que são feitas mediante encomendas digitais e que comumente tratamos como e-commerce; (ii) das transações facilitadas por meio de tecnologias digitais, em que, embora sejam realizadas por meio de negociações e entregas tradicionais, pautam-se em processos de controle automatizados e digitais (digital trade flows) — seja na esfera pública, quanto privada; e (iii) das transações digitalmente entregues e cujo conteúdo se refere a serviços e/ou a dados.

Considerando que esta coluna já se debruçou, em mais de uma oportunidade, sobre aspectos relevantes do e-commerce e suas relação com o universo aduaneiro[1], e que as transações digitalmente entregues, justamente por serem realizadas sem passagem física pelas fronteiras nacionais, não são objeto direto do controle aduaneiro, propõem-se tratar aqui apenas das implicações do comércio digital enquanto facilitador das operações comerciais internacionais que ainda se dão de forma física.

Spacca
Em uma primeira análise, esta pode parecer ser a mais simples e menos afetada pela digitalização da economia dentre as citadas. Todavia, não se pode subestimar seu conteúdo.

O comércio digital, enquanto facilitador das transações comerciais por meio do uso da tecnologia aplicada a controles e processos, desempenha um papel relevante em termos de redução dos custos de transação, efetivação de medidas de facilitação de comércio e, principalmente, na modernização das Aduanas.

Tal qual tratamos em nosso último artigo, a gestão de riscos aplicada ao controle aduaneiro é ferramenta essencial às atividades da Aduana nos dias de hoje, sem a qual não se pode atingir os níveis de eficiência e agilidade esperados das autoridades de fronteira. E que, apesar dos bons resultados e avanços alcançados, ainda existem aspectos tecnológicos de como a mesma é gerida que demandam maiores debates e atenção dos envolvidos.

Do governo, precisa-se de maior transparência e garantia de que os parâmetros utilizados estão em linha com as missões e interesses realmente tutelados pelo controle aduaneiro, ao passo que é esperado um maior envolvimento do setor privado para questionar, acompanhar e contribuir com o que vem sendo criado.

A despeito disso, quando tratamos de comércio digital e, principalmente, na forma como a tecnologia e a digitalização de processos pode solucionar gargalos afeitos ao controle aduaneiro, faz-se necessário alargar a discussão para abarcar outras ferramentas igualmente relevantes e que vão além da gestão de risco.

Um primeiro ponto é o próprio Portal Único de Comércio Exterior, cuja implementação total é esperada para 2026. O projeto, que pauta-se em compromissos assumidos pelo Brasil por meio do Acordo sobre Facilitação do Comércio (AFC) da OMC e da Convenção de Quioto Revisada (CQR) da OMA, visa reformular os processos de importação e exportação e centralizar todas as prestações de informação e atividades de controle estatais sobre comércio exterior em um só lugar, o que é definido como modelo janela única.

É fato que a mera eliminação de tarefas repetidas e a centralização de todas as atividades em um único sistema — a despeito do modelo anterior de utilização de múltiplos sistemas, um para cada órgão estatal envolvido no processo, e com requisição das mesmas informações repetidamente — já implica a redução de tempo de desembaraço e custos aos operadores. Não obstante, para que as promessas realizadas com o lançamento do programa se concretizem, a digitalização precisa ir muito mais além.

De forma resumida, para que haja a transformação prometida e os ganhos de eficiência esperados, muito mais do que a utilização de um único sistema, faz-se necessário que todas as autoridades envolvidas falem uma mesma língua e atuem de forma coordenada — tarefa aparentemente muito mais desafiadora do que a elaboração do sistema eletrônico em si.

Isto porque, enquanto Receita Federal e Secex (Secretaria de Comércio Exterior) já se encontram bastante avançadas no mundo digital, seja em termos de controle e exigências, os demais órgãos ainda realizam parte do controle e da administração de processos de forma física, seja pela requisição de documentos em papel, seja pela necessidade de envolvimento pessoal das agentes para rotinas de seleção e avaliação de informações a serem fiscalizadas.

Soma-se a isso o fato de que, segundo a análise da OCDE sobre facilitação do comércio no Brasil por meio do Trade Facilitation Indicator[2], o principal gargalo existente é a falta de cooperação entre órgãos de fronteira, tanto em termos de coordenação e harmonização das atividades de controle das diversas autoridades governamentais, seja entre autoridades brasileiras e suas contrapartes estrangeiras.

Do ponto de vista nacional, existem duas principais saídas para o problema existente: uma de mera coordenação e outra tecnológica. A primeira se consubstancia na coordenação de atividades para que a fiscalização física da carga ocorra em um único momento e envolva todos interessados ou que os mesmos deleguem para um único agente a tarefa de fiscalização.

A segunda parte da premissa que a tecnologia pode ser utilizada para que a fiscalização seja realizada de forma os dados e informações obtidas possam ser disponibilizados a todas as autoridades para que realizem os respectivos controles em momento que julgarem oportuno, sem que haja necessidade de nova manipulação da carga.

Ainda que a primeira alternativa conste nos Guidelines da OMA enquanto forma de implementação das obrigações da CQR e que já tenha sido endereçada pela própria OCDE como possível solução para os gargalos de fiscalização em zona primária no Brasil, existe grande resistência à ideia, muito em função das dificuldades em delegar atividades técnicas e que se pautam em competências específicas (ex: Mapa, Anvisa, Inmetro, Ibama, etc.) e de conseguir coordenar agendas e disponibilidade das diferentes autoridades em campo.

Diante disso, a melhor saída ainda parece ser a digitalização dos procedimentos por meio de ferramentas eletrônicas, como a inspeção não invasiva, por meio da qual as cargas são escaneadas ou verificadas com o uso de câmeras que evitam a necessidade de desunitização da mercadoria. Apesar dessas técnicas e equipamentos já serem uma realidade na atuação da Receita[3], o mesmo não se verifica no modus operandi das demais autoridades envolvidas.

Nestes termos, o ganho de eficiência e agilidade do despacho como um todo depende não apenas da existência da tecnologia e de sua utilização pela Aduana, mas no compartilhamento das informações e dos dados digitalmente coletados e analisados com as demais autoridades, possibilitando ganhos de escala e, efetivamente, eliminando a intervenção humana desnecessária.

Outro ponto relevante diz respeito aos documentos digitais. Diferente dos documentos digitalizados, que nada mais são do que a transferência de documentos físicos para um meio eletrônico — e que, portanto, continuam dependendo do papel —, os documentos digitais nascem diretamente em formato digital e, por possuírem padrão internacionalmente reconhecido, permitem o intercâmbio de informações entre diversas autoridades, sejam elas nacionais ou estrangeiras, motivo pelo qual vêm se tornando tema cada vez mais frequentes em negociações comerciais bilaterais e multilaterais.

Exemplo disso é o próprio Protocolo sobre Facilitação do Comércio assinado por Brasil e Estados Unidos no âmbito do Acordo de Comércio e Cooperação Econômica (Atec), que determina a adoção de documentos eletrônicos pelas partes como forma de facilitação do comércio, em especial: o certificado eletrônico fitossanitário (e-Phyto) conforme definido pela Convenção Internacional de Proteção das Plantas; o conhecimento eletrônico de transporte aéreo (e-AWB) da Associação Internacional de Transporte Aéreo (Iata); e o padrão cargo XML de transmissão de mensagens eletrônicas sobre a cadeia logística.[4]

Outro ponto relevante e que depende do comércio digital é a operacionalização dos acordos de reconhecimento mútuo firmados no âmbito do Programa Operador Econômico Autorizado (OEA). Embora o Brasil seja um dos países com maior número de acordos firmados e que os benefícios esperados sejam proeminentes, com a extensão dos benefícios do programa para além das fronteiras nacionais, a implementação dos acordos assinados é um caminho longo e que depende de cooperação em níveis bastante sofisticados.

Isso porque, sem que haja um grau de digitalização avançado por parte das Aduanas envolvidas e que os dados sejam processados e compartilhados em um formato compatível e que permita a correta leitura e interpretação pelas partes, esses acordos não possuem eficácia prática alguma. Assim, tem-se aqui mais um exemplo sobre a importância da tecnologia como ferramenta para a facilitação e do extenso caminho que ainda precisamos percorrer.

Todos os pontos acima mencionados, apesar de complexos e imersos em discussões sobre tecnologias — o que, em certa medida, acabam por intimidar os operadores do comércio exterior — representam tópicos indispensáveis na discussão sobre a aduana do século 21 e as medidas de facilitação do comércio necessárias para que os prometidos indicadores de agilidade, eficiência e competitividade possam ser atingidos. Portanto, se o futuro é digital, a Aduana e os aduaneiristas também precisam ser.


[1] A exemplo do artigo de nossa autoria publicado em 31/01/2022, intitulado “Faz sentido tributar pequenas compras de plataformas internacionais?” e do brilhante artigo publicado na semana passada, Cross-border e-commerce, descaminho digital e algumas reflexões, pelo colega Fernando Pieri.

[2] OCDE. Trade Facilitation Indicator. 2022. Disponível em <https://www.oecd.org/trade/topics/trade-facilitation/>. Acesso 01 mai 2023.

[3] Vide Portaria Coana nº 75/2022

[4] Decreto nº 11.092/2022

Autores

  • é doutora em Direito do Comércio Internacional, advogada, consultora especializada em Comércio Internacional e Direito Aduaneiro, professora de pós-graduação e conselheira titular no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) do Ministério da Economia.

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