Opinião

Revisão de acordos de leniência celebrados antes do acordo de cooperação técnica

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2 de maio de 2023, 13h23

Instalou-se um debate sobre a necessidade de revisão de acordos de leniência celebrados anteriormente à vigência do acordo de cooperação técnica, sob a batuta do STF (Supremo Tribunal Federal), em que foram ajustados alguns parâmetros de sistematização entre os diversos órgãos e entidades que compõem o sistema de tutela da moralidade administrativa.

Uma ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF 1.051) foi ajuizada por partidos políticos, invocando uma coação estatal como pano de fundo da tese de Estado de Coisas Inconstitucional (item 3 da petição inicial), com o objetivo de ser reconhecida a necessidade geral e irrestrita de repactuação dos acordos em questão.

De antemão, não prejulgo a possibilidade de existência de erros  abusos até  em alguns dos ajustes celebrados. Ou mesmo de aproximações e estimativas reparatórias que, excessivamente agressivas, podem levar à inviabilidade na continuidade empresarial. De forma similar, tampouco posso compreender um prejulgamento de que todos os ajustes seriam maculados, por princípio. Ainda mais quando o cerne do argumento jurídico está calcado em um vício de consentimento, na coação.

Respeito os subscritores da ADPF, muitos amigos diletos, todos profissionais sérios e competentes. Mas não consigo conceber a arguição de um vício de consentimento por terceiro estranho à relação contratual, sobretudo não se tratando de incapazes.

O artigo 177 do Código Civil disciplina que a anulabilidade, além de não poder ser pronunciada de ofício, pressupõe que os interessados são os legitimados a argui-la. Transcender essa disposição para estender a partidos políticos uma posição de interessado na relação contratual soa demasiado.

Ainda que o fenômeno lavajatismo  contra e a favor  mereça críticas contundentes e tenha significado um choque sobretudo na indústria de construção pesada, seus efeitos econômicos e no mercado de trabalho, ao meu sentir, não transcenderiam efeitos meramente econômicos para justificar a intervenção jurídica de um terceiro à relação contratual, ainda que como defensores da cidadania.

Spacca
Spacca

Não parece crível compreender que empresas do porte daquelas que se submeteram à pretensa coação sejam capazes de ser enquadradas como incapazes, aptas a justificar que um terceiro lhes tome à frente e questione as obrigações pactuadas.

A legislação criminal, regra geral, trilha pelo mesmo caminho: em se tratando de partes plenamente capazes, procede-se mediante representação da potencial vítima (p.e., artigo 147, parágrafo único, quanto ao crime de ameaça; artigo 147-A, par. 3º, quanto ao crime de perseguição; artigo 171, parágrafo 5º, quanto ao crime de estelionato; artigo 176, parágrafo único, quanto a outras fraudes).

A razão parece ser simples: tal como na legislação civil, somente a parte que sofreu um ato de coação pode identificá-la como tal. Além disso, o artigo 153 do Código Civil afasta a caracterização da ameaça quando uma das partes se encontra no exercício regular de um direito.

Ah, mas um intérprete apressado poderá dizer que, diante do Estado de Coisas Inconstitucional, não haveria espaço para exercício regular de direito, pois acusação  e, mesmo, o judiciário  estariam orientados e combinados para um resultado predeterminado, sem espaço para contraditório, ampla defesa e devido processo legal, medidas indispensáveis para um resultado justo da ação estatal. Uma das partes nos acordos, o Ministério Público Federal, portanto, estaria agindo fora de suas atribuições e limites constitucionais.

Ainda que isso possa ter acontecido, o reconhecimento judicial desse tipo de vício somente pode ser constatado caso a caso, como, aliás, ocorreu em algumas das ações judiciais conduzidas pela ex-autoridade judiciária em questão. Nunca no atacado, nunca sem que os celebrantes venham apresentar seus argumentos  e provas  de que foram vítimas da coação.

Caso contrário, seria imaginar que ainda estariam sob o pálio do vício de consentimento, severo o bastante para impedir que, pelo elevado temor das consequências, não saiam do imobilismo para questionar a pretensa  e injustificada  violência que teriam sido vítimas.

Mais um argumento, esse não escrito na inicial da ADPF, chama a atenção: se vítimas de vício capaz de macular seu consentimento, a voluntariedade, pedra de toque do regime premial de que o acordo de leniência faz parte, seria inevitavelmente negada.

E nessa hipótese, fica a indagação: qual a razão de somente os efeitos financeiros dos acordos de leniência serem atingidos pelo reconhecimento da anulabilidade — que é disso que se trata, anulabilidade? Como ficariam os outros dois elementos integrantes do chamado tripé dos acordos: as provas (ou "alavancagem investigativa") e o compromisso de aprimoramento do sistema de integridade?

Como conclusão, penso que a ADPF tem o mérito de trazer para o debate público a necessidade de uma maior sincronia entre os órgãos e entidades de controle da moralidade, sobretudo pela adoção de padrões e parâmetros claros de sancionamento e de reparação por atos ilícitos. Além, decerto, de iluminar a premência de adoção de critérios de adequação de consequências financeiras às capacidades de pagamento das empresas  similar à tese da limitação do possível, aplicada, por exemplo, na tormentosa dificuldade de lidar com a intervenção judicial para lidar com o pagamento de precatórios (p.e., IF 5114).

Contudo, não consigo divisar como proceder a um exercício de tamanha monta, que implica matéria probatória tormentosa, em caráter concentrado e abstrato, substituindo-se à vontade da parte privada dos acordos, que teria de invocar e demonstrar a existência do vício da coação.

Problemas que existam nos acordos celebrados devem ser resolvidos pontualmente, caso a caso, à luz das circunstâncias e elementos que forem apresentados às autoridades competentes.

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