Contas à Vista

Baixa escala federativa contrapõe responsabilidades fiscal e social

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

2 de maio de 2023, 8h00

É preciso revisitar os avanços e as falhas históricas que acumulamos na consecução fiscalmente responsável dos direitos fundamentais desde a Constituição de 1988, para bem avaliar os desafios presentes e prospectivos nessa seara tão complexa quanto relevante. Arrisco-me a dizer que atualmente poucas são as hipóteses de controvérsia que se equiparam à aparente tensão, para alguns uma quase contraposição maniqueísta, entre financiamento e gestão de direitos sociais.

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Os extremos argumentativos titularizam vieses empobrecidos de análise, na medida em que ditam uma pretensa ordem de prioridades de ação como se fosse possível apartar uma coisa da outra. Ora, é falso o dilema de quem prega ser necessário primeiro aprimorar a gestão (no que se inclui prevenir e combater a corrupção) para depois assegurar rota progressiva de financiamento na promoção dos direitos fundamentais, ou vice-versa.

Precisamos assumir, sem peias ideológicas, que mais financiamento e melhor gestão são ambos desafios instrumentais — igualmente prementes — para cumprirmos os fins constitucionais de promoção dos direitos fundamentais e de erradicação das desigualdades sociais e regionais.

Do ponto de vista do financiamento, o socialmente almejado e constitucionalmente definido é que ele seja proporcionalmente progressivo conforme o nível de riqueza do país e conforme a arrecadação estatal. Por outro lado, a noção de melhor gestão, ademais da eficiência, economicidade e efetividade no exame dos seus custos e resultados, absorve também e necessariamente as republicanas agendas da responsabilidade fiscal e da proteção ao erário contra a corrupção.

Quem defende direitos sociais não pode clamar apenas e tão somente por mais recursos. Temos de enfrentar nossos incomensuráveis gargalos de gestão (marcada pela inépcia, que na maioria das vezes está associada ao trato fisiológico dos recursos públicos), assim como precisamos corrigir os sérios gargalos de pactuação federativa que afetam a má qualidade de todo o ciclo das políticas públicas e, por óbvio, dos gastos públicos empreendidos ali. Tampouco é racionalmente crível ser possível aprimorar a gestão sem maior e mais estável fluxo governamental de custeio, que permita avançar em rotas tão basilares como a execução aderente ao planejado, a informatização, os processos de seleção, manutenção e avaliação por desempenho de profissionais mais qualificados, além dos insumos mínimos para realização dos serviços públicos. Tudo isso, sem nos olvidarmos do controle de pessoal ocioso para que sejam evitados inchaços no quadro de pessoal e para que haja, de fato, controle qualitativo da real demanda do serviço.

Nossas carências são severamente mais complexas e não comportam a infantil polarização entre, de um lado, a prevenção e o combate à corrupção (no que se inclui o devido zelo para com a responsabilidade fiscal e o equilíbrio intertemporal nas contas públicas) e, de outro, a realização de direitos fundamentais, sobretudo os sociais, em busca da redução da nossa extrema desigualdade real.

Para retomar esse aparente impasse em outro patamar mais qualificado de reflexão, é interessante trazer à tona o exemplo do forte impulso descentralizador da nossa Constituição Cidadã. Ao longo dos 35 anos de vigência do nosso arranjo tridimensional de federalismo, consolidamos um mosaico heterogêneo que comporta nada menos que 5.570 municípios e 27 estados (incluído o DF).

As repercussões político-administrativas e fiscais do modelo federativo são extremamente preocupantes e ensejam grande parte das críticas dirigidas tanto à falta/fragilidade de gestão, quanto à insuficiência de financiamento nas políticas públicas asseguradoras de direitos fundamentais.

Na Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, chegou-se a conceber o dever de comprovar sustentabilidade financeira dos municípios de até 5.000 habitantes, segundo o parâmetro de a arrecadação própria de impostos alcançar, no mínimo, 10% da sua receita total (artigo 6º da PEC 188/2019, que buscava inserir artigo 115 do ADCT nesse sentido). O pressuposto do dispositivo era que, quando operassem abaixo de tais parâmetros mínimos conjugados de densidade demográfica e de receita própria, os municípios não deveriam existir e precisariam ser incorporados a municípios limítrofes com melhor índice de sustentabilidade financeira.

Por ocasião dos debates provocados pela PEC 188/2019 (também chamada de "PEC do Pacto Federativo"), a estimativa era que poderiam vir a ser extintos 769 municípios e eliminados até cerca de 20 mil cargos na estrutura administrativa das respectivas prefeituras e Câmaras de Vereadores.

No "Balanço do Setor Público Nacional" relativo a 2016, houve o diagnóstico de que, em quase 82% dos municípios brasileiros, as transferências federativas respondiam por 75% das suas respectivas receitas orçamentárias globais. Tamanha foi a dependência levantada que apenas cerca de 2% dos municípios possuíam receita própria superior ao saldo das transferências. Quando observamos os estados, apenas sete possuíam receitas próprias francamente superiores às transferências (ou seja, quando as transferências respondem por fração igual ou inferior a 25% de sua receita orçamentária total). Bem sabemos que aludido quadro não mudou substancialmente de 2016 até os presentes dias.

Ora, a expansão vertiginosa de entes federados sem suficiente viabilidade econômica e, por vezes, sem bases histórico-sociais e sem ganho mínimo de escala que lhes justificassem a existência, direta ou indiretamente, obriga-nos a superar o "mito da descentralização", tal como bem nos provocava Marta Arretche [1], como rota supostamente necessária de maior eficiência e democratização para a consecução das políticas públicas.

Multiplicamos os custos da máquina estatal em um arranjo federativo disfuncional e tendente a diversos tipos de compadrios e de guerras fiscais na execução de políticas públicas, cuja concepção originária dada pelo Constituinte de 1988 evidentemente reclama cooperação entre os entes.

Vale lembrar nesta semana em que se celebra o aniversário de 23 anos da Lei de Responsabilidade Fiscal o que José Roberto Afonso e eu propusemos, por ocasião do aniversário de 22 anos da LRF, para conciliar as responsabilidades fiscal e social. Há cerca de um ano atrás, sugerimos a adoção do modelo de consórcios nacionais para consecução dos serviços públicos essenciais, que fossem de responsabilidade solidária de todos os entes da federação brasileira:

"Contra a tendência de alocação pulverizada e subjetiva de recursos públicos no território brasileiro, e diante da urgência do enfrentamento dos desafios sociais, é urgente, mais que reformar, inovar e revolucionar nos arranjos institucionais que dominam a Federação brasileira. Uma alternativa seria a instituição de um consórcio nacional para integrar as ações sociais que perfizessem programas de duração continuada coincidentes nos três níveis da federação. O objetivo é formalizar o compartilhamento nacional das responsabilidades na formulação e na execução das diferentes políticas sociais no Brasil.

As competências comuns inscritas no já citado artigo 23 da CF/1988 impõem deveres aos entes políticos, cuja implementação cotidiana implica razoável grau de coincidência dos seus instrumentos de planejamento orçamentário e setorial, sem prejuízo das peculiaridades locais e regionais — sendo as principais despesas subnacionais nas áreas de saúde, educação e previdência. Eis o contexto em que a gestão consorciada nacionalmente dos programas de duração continuada relativos a tais competências comuns agregaria racionalidade alocativa, dado o ganho de escala dos serviços públicos assim organizados, bem como permitiria adotar o regime jurídico das despesas obrigatórias, na forma do artigo 9º, §2º, da LRF.

[…] A execução orçamentária do consórcio seria materialmente insuscetível de contingenciamento e estaria correlacionada com a dimensão temporal mais larga do plano plurianual. Os programas de duração continuada teriam resguardada, por conseguinte, sua consecução sob regime administrativo-financeiro de pactuação político-institucional, em consonância com os respectivos instrumentos de planejamento setorial de cada ente da federação.

A gestão associada de serviços públicos referida ao fortalecimento do planejamento setorial das políticas públicas e à vedação de contingenciamento dos repasses federativos correspondentes visa atender não só à pauta da responsabilidade social, como também permitiria qualificar substantivamente a busca da sustentabilidade da dívida pública, na forma do artigo 164-A, inserido pela Emenda 109/2021 na CF/1988.

A defesa concomitante da responsabilidade social e da responsabilidade fiscal passa pela estruturação de arranjos alocativos que promovam o ganho de escala na prestação dos serviços públicos e pela diminuição do espaço das transferências voluntárias e das emendas parlamentares balcanizadas. Assim, restariam alargadas temporal e operacionalmente a capacidade de consecução fiscal dos serviços públicos."

Diversas têm sido as mazelas da governança federativa, por exemplo, no âmbito da educação básica obrigatória, em que, por sinal, falta garantir efetiva permanência na escola para crianças e jovens de 4 a 17 anos, bem como ainda não estão asseguradas vagas em creches para cerca de três milhões de crianças de 0 a 3 anos de idade. Se somarmos a isso o fato de que considerável patamar dos estados e municípios brasileiros não paga o piso remuneratório aos professores, bem reconheceremos a profunda necessidade de recursos que o horizonte da educação pública de qualidade reclama. Infelizmente, porém, até os presentes dias a União não regulamentou o custo aluno-qualidade inicial. A inconstitucional mora legislativa do governo federal impede que a sociedade tenha uma referência de custeio mais equitativa no federalismo educacional (artigo 211, §7º da CF/1988).

Se é certo que falta dinheiro para trazer e manter milhões de brasileiros na escola (das creches ao ensino médio), assim como para remunerar melhor nossos professores e para assegurar infraestrutura adequada nas escolas, infelizmente é igualmente certo que gastamos muito e muito mal, por exemplo, com a compra de material apostilado pelas prefeituras em duplicidade de gasto em face do Programa Nacional do Livro Didático, com inchaços de pessoal na folha da educação para encobrir diversas formas de compadrio e desvios, entre outras mazelas.

Idêntica abordagem é cabível no âmbito do Sistema Único de Saúde, no qual há carências incomensuráveis em face do subfinanciamento federal no setor. Algo já reconhecido até pelo então ministro da Saúde Arthur Chioro em audiência na Câmara dos Deputados realizada em 25/08/2015.

Ao lado do nosso ínfimo padrão de gasto público per capita em saúde, vemos, por exemplo, a deveras onerosa e questionável opção política de curto prazo da maioria dos prefeitos em querer manter uma maternidade para chamar de sua, mesmo em municípios ou regiões com menos de 30 mil habitantes. Ora, é imperativo pensarmos em promover a economicidade da gestão hospitalar no SUS por meio do federalismo cooperativo que concilie regionalização e ganho de escala. Há considerável nível de irracionalidade gerencial no fato de termos milhares de hospitais de pequeno porte, a pretexto de capilaridade territorial no atendimento secundário.

A bem da verdade, é chegada a hora de falarmos no fetiche hospitalocêntrico que é cada vez mais também referido ao acesso a medicamentos e procedimentos de alto custo. Tragicamente, nosso senso comum não reconhece a extrema relevância da atenção básica e da vigilância sanitária como eixos primordiais das ações e serviços públicos em saúde em nosso país. O ideário social acerca da trajetória evolutiva do SUS é capturado por tais demandas míopes e, com isso, não conseguimos pautar a primazia do acompanhamento preventivo e resolutivo no âmbito da atenção básica de saúde e, se efetivamente necessário, pelo atendimento em hospitais regionais que absorvam a real demanda pela média e alta complexidade.

Enfim, há muitas variáveis, interesses e conflitos distributivos em jogo, mas os exemplos arrolados aqui visam ampliar o alcance da nossa luta comum em prol da máxima eficácia dos direitos sociais albergados na CF/1988.

Antes de nos deixarmos segregar ou polarizar diante de maniqueísmos ou falsos dilemas, resgatemos a perspectiva muito singela e basilar de que nosso país precisa igualmente de melhor gestão e maior financiamento para a consecução dos direitos fundamentais, sobretudo para assegurar equitativamente saúde e educação públicas, diante da nossa realidade com imensas desigualdades regionais e sociais.

Nossa Constituição é pacto social que encerra o compromisso civilizatório de todos nós para com a dignidade da pessoa humana e para com os direitos sociais. Precisamos defendê-la de quaisquer arroubos autoritários ou até mesmo de razões econômicas pretensamente fatalistas que lhe negam vigência real, a exemplo da agenda de mitigação da progressividade real dos pisos em saúde e educação.

Defender nosso pacto social hoje é conjugar e exigir democrática e simultaneamente a busca de uma melhor gestão pública com a progressividade no financiamento dos direitos fundamentais. Tudo isso somente se viabiliza em um contexto republicano de igual sujeição de todos à lei, de integridade na preservação do erário e de responsabilidade fiscal, em uma escala federativamente adequada de prestação de serviços públicos. Afinal, esses são os únicos meios de realização possível dos objetivos da nossa Constituição.

Urge, portanto, uma maior regionalização na oferta de serviços públicos aderente ao planejamento setorial, tanto quanto é preciso reconhecermos o papel central das instituições e da sua interlocução necessária com os cidadãos para avançarmos no nosso estágio de debates sobre o nível de efetividade e accountability dos direitos fundamentais. Ocorre, contudo, que essas provavelmente são algumas das nossas agendas de evolução constitucional mais sonegadas e preteridas.

Soa paradigmático, aliás, que o Projeto de Lei Complementar 93/2023, que visa fixar o "regime fiscal sustentável" para fins de revogação do teto de despesas primárias, na forma dos artigos 6º e 9º da Emenda 126/2022, não tenha pautado qualquer reflexão a respeito da adequada escala federativa dos serviços públicos.

Enquanto não questionarmos a baixa escala dos serviços públicos e o desapreço ao planejamento pactuado das políticas públicas na federação brasileira, a noção de responsabilidade social continuará a ser tratada como se fosse antípoda do regime de responsabilidade fiscal. O mais triste é que segue sem regulamentação o parágrafo único do artigo 23 da Constituição, enquanto a União insiste em propor regras fiscais aplicáveis apenas a si própria, sem maior interlocução com os demais entes políticos.

A indagação que fica é se seria, de fato, possível um "regime fiscal sustentável no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, para garantir a estabilidade macroeconômica do País e criar as condições adequadas ao crescimento socioeconômico", tal como pretende o artigo 1º do PLP 93/2023, quando não há qualquer menção ao "equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional" referido no parágrafo único do artigo 23 da CF/1988.

 


[1] ARRETCHE, Marta. Mitos da Descentralização: Mais democracia e eficiência nas políticas públicas? Revista Brasileira de Ciências Sociais. 11 (31), 1996, p. 44-66, disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_31/rbcs31_03.htm

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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