Repensando as Drogas

Enxergando o outro lado: impactos da economia ilícita na economia formal

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30 de junho de 2023, 8h00

Um caicoense radicado em Natal certa vez me disse que a economia da cidade, conhecida por artesanato e culinária, girava mesmo em razão do dinheiro do crime organizado. O comentário despertou-me atenção, vindo à mente a metáfora utilizada pelo professor Celso Campilongo, ao descrever contextos em que, imersos em um plano de observação, não conseguimos enxergar adiante. O observador "não vê que não vê aquilo que não vê". Essa fórmula aparentemente tautológica indica que a observação parte de um ponto de vista relacional e, como tal, tem sempre um ponto cego, um lado oculto, não declarado porque sequer visto.

Esse parece ser o caso do impacto que mercados ilícitos geram sobre a economia formal. Trata-se, talvez, de um dos aspectos menos compreendidos e estudados no âmbito da segurança pública.

ConJur
Sobre os impactos negativos dos mercados ilícitos na economia há abundante literatura, como mostram os relatórios da United Nations Office on Drugs and Crime (Unodc) e, no âmbito nacional, da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo).

O Anuário da Fiesp sobre mercados ilícitos transnacionais estima que setores ilícitos ligados a alimentação, automotivos, brinquedos, eletrônicos, higiene, medicamentos, químicos, tabaco e vestuário movimentaram, entre 2017 e o primeiro semestre de 2022 a impressionante cifra de R$ 113,62 bilhões, somente no estado de São Paulo, do que se extrai uma perda igualmente significativa em supressão de tributos (R$ 28,55 bilhões de impostos federais e R$ 23,36 bilhões de impostos estaduais), com reflexos em perdas salariais, falta de geração de empregos, sem falar no impacto concorrencial sobre a indústria nacional.

Um estudo mais antigo da National Drug Intelligence Center (NDIC), do Departamento de Justiça norte-americano, estimou que em 2007 houve perda decorrente do mercado ilícito de entorpecentes da ordem de US$ 192 bilhões, apenas naquele país. Desse montante, estimou-se um prejuízo de US$ 61,37 bilhões ao sistema de justiça criminal. Por outro lado, a Unodc sempre estabeleceu como meta o combate aos mercados ilícitos, que geram, segundo tais estudos, para além da supressão de ativos no mercado formal, subemprego, corrupção e expansão de formas laterais de criminalidade.

Paralelamente à expansão, no mundo, de protocolos voltados para o incremento de mecanismos de controle das formas de lavagem de dinheiro, com colaboração de entidades privadas e organismos multilaterais, observa-se, também, o crescimento sem precedentes do mercado consumidor de entorpecentes, em volume que denota a ineficácia global das ações que ordinariamente conhecemos como próprias da "guerra às drogas". Segundo a Unodc, por exemplo, o volume de manufatura de cocaína praticamente dobrou entre 2014 e 2022.

Em meio ao consenso de que o combate à lavagem de dinheiro é necessário para minar o êxito econômico do crime organizado transnacional, foi publicado seminal estudo de pesquisadores das Universidades de Maryland e Washington, em cooperação com o Banco Central da Colômbia, com surpreendente achado sobre o impacto negativo da legislação antilavagem sobre a economia.

O estudo procurou medir o impacto das políticas de combate à lavagem de dinheiro naquele país, a partir da implementação do chamado "Sarlaft" (algo como Sistema de Administração de Risco de Lavagem de Ativos e Financiamento ao Terrorismo), que, em resumo, consiste em uma normativa que estimula financeiras a promoverem programas de autorregulação e administração do risco de lavagem de dinheiro. Com isso, entidades privadas passaram a identificar o risco; a criar mecanismos de avaliação e controle desse risco e de monitoramento do fluxo de ativos. A ideia do programa é evitar que o sistema financeiro seja utilizado para lavagem de dinheiro do crime organizado.

Slutzky, Willians e Villamizar-Villegas observaram o impacto desse programa na economia real, a partir de três planos de análise: primeiro, deslocaram seus olhares para o impacto da legislação sobre municípios que tinham índices maiores de criminalidade relacionada a tráfico de entorpecentes (obtiveram essa classificação a partir dos registros oficiais de apreensão de cocaína). Nessa primeira etapa, identificaram que, meses depois da vigência do programa, quando surgiram as primeiras ações promovidas pelo Ministério Público, com investigações divulgadas em mídia, houve um decréscimo da ordem de 12,4% sobre os depósitos bancários naquelas localidades.

A partir desse achado, os pesquisadores passaram a examinar os empréstimos realizados pelos bancos afetados por essa política. Constatou-se, então, que a perda de liquidez afetou empréstimos originariamente aplicados em áreas diversas daquelas em que o tráfico de entorpecentes era elevado. Noutras palavras, esse processo levou a uma retração da oferta de crédito para outras áreas, que não eram diretamente afetadas pela política antilavagem de dinheiro.

Finalmente, procurou-se relacionar o impacto da restrição de crédito sobre o crescimento econômico. Os pesquisadores chegaram, então, a uma conclusão importante, no sentido de que especialmente as pequenas empresas sofreram significativamente com a perda de crédito, obtendo redução de vendas (9,3%); propriedade (10%); ativos (3,4%) e lucros (2,5%) e incremento do endividamento em importantes 24,3%. Houve incremento do desemprego. A economia de municípios com baixa incidência de tráfico de drogas também foi abalada, o que levou os pesquisadores a sugerir que políticas de combate à lavagem de dinheiro devam ser acompanhadas de medidas fiscais destinadas a incrementar a liquidez do sistema financeiro, para minimizar os impactos negativos apontados pela pesquisa.

Para nós, interessa não só a constatação da eficácia da legislação antilavagem, a ponto de afetar a liquidez do crédito naquele país, como também a observação contraintuitiva, conhecida por quem vive nas periferias dominadas pelo tráfico de entorpecentes, de que essa circulação de riquezas é absorvida por setores próprios da economia formal. Não são somente traficantes, receptadores e corruptos a se beneficiar dos recursos que correm às margens da economia formal: a própria liquidez do sistema financeiro se aproveita do fluxo decorrente de mercados ilícitos, com repercussão na vida econômica da comunidade.

Essa observação demanda reflexão, pois se: a) a motivação para o crime, como demonstram os teóricos da Análise Econômica do Crime, é preponderantemente econômica (estudos da plataforma Dixim sugerem que 85% dos crimes são economicamente motivados); b) o volume economicamente mensurável do impacto da economia ilícita sobre a economia formal pode ser positivo, de alguma forma; c) a principal externalidade negativa dos mercados ilícitos em geral, como consta do Anuário da Fiesp, é precisamente a violência criminal (e não, propriamente, a saúde pública); e d) à expansão e constatação da eficácia da legislação antilavagem de dinheiro contrasta-se o crescimento do mercado ilícito de drogas e da violência urbana, pode-se afirmar, com alguma segurança, que o modelo de enfrentamento tradicionalmente conhecido como "guerra às drogas" não produz resultados racionalmente satisfatórios em relação à sua finalidade declarada. Em contrapartida, ele permanece estruturalmente hígido nas formulações propostas para enfrentamento da criminalidade violenta.

É preciso observar o paradoxo com coragem.

Como não é razoável supor que agentes políticos orientem suas políticas a partir de prospectivas irracionais, inclusive do ponto de vista econômico, devemos perguntar quais razões políticas e econômicas sustentam esse modelo ou, noutros termos, qual o sentido e para quem faz sentido a "guerra às drogas".

Uma das explicações sociológicas recai sobre a análise da estrutura de legitimação do Estado, que se valeria da necropolítica para definir quem é descartável ou não, na expressão de sua soberania, como sugere Achile Mbembe, em seu ensaio Necropolítica. Outra hipótese  que pode coexistir com a primeira  envolve identificar quais mercados se beneficiam da guerra, mais do que da droga em si. Ambas carecem de análise.

Em resumo, a observação do impacto da economia ilegal na economia formal, embora seja contraintuitiva, revela um aspecto a ser explorado por estudiosos. O volume de interesses e a sub-reptícia conveniência, para determinados setores da economia, do aporte de recursos independentemente de sua origem dificulta o trabalho investigativo e estimula canais de escoamento dos recursos ou, noutras palavras, estimula a lavagem de dinheiro e a corrupção, externalidades negativas do tráfico ilícito de entorpecentes.

Por outro lado, o impacto negativo da legislação antilavagem na liquidez do sistema financeiro colombiano sugere que convivemos com esses recursos mais do que possamos imaginar. Para além da pergunta sobre por que não regularizar esse mercado, incorporando seus benefícios à economia formal e direcionando recursos para investimentos em áreas como saúde e educação pública, impõe-se saber quais setores da economia formal se beneficiam da manutenção da atual política de confronto. Também é igualmente relevante analisar como a legitimação do Estado se relaciona com a seleção específica do tráfico de entorpecentes como inimigo, obscurecendo outros atores que também se beneficiam dessa situação.

Essas questões merecem um debate aprofundado para uma compreensão mais abrangente das complexas relações entre a economia ilícita, a economia formal e o Estado. Ao explorar o outro lado do paradoxo, podemos identificar o mercado oculto que se alimenta da chamada "guerra às drogas" e, dessa forma, podemos avançar em direção a abordagens mais eficazes no combate à violência ilícita organizada, das facções e do próprio Estado.

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Referências
CAMPILONGO, Celso. Interpretação do direito e movimento sociais. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

FIESP. Mercados ilícitos transacionais em São Paulo: a economia criminal transnacional. São Paulo: Fiesp, 2022.

MBEMBE, Achile. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte. Artes e ensaios (periódico). Revista do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da UFRJ: Rio de Janeiro, 2016, pp. 123-151;

NATIONAL DRUG INTELLIGENCE CENTER (NDIC). The Economic Impact of Illicit Drug Use on American Society. Washington D.C.: United States Department of Justice, 2011.

SLUTZKY, Pablo. VILLAMIZAR-VILLEGAS, Mauricio; WILLIAMS, Tomas. Drug Money and Bank Lending: The Unintended Consequences of Anti-Money Laundering Policies. On-line. 30 de maio de 2020. Disponível em SSRN: https://ssrn.com/abstract=3280294 ou xhttp://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3280294, acesso em 07/06/2023

UNODC. World Drug Report 2022 (United Nations publication, 2022), disponível em https://www.unodc.org/res/wdr2022/MS/WDR22_Booklet_1.pdf, acesso em 07/06/2023.

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