Contas à Vista

Septuagenário federalismo de "cofre das graças" e "poder da desgraça"

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

27 de junho de 2023, 8h00

"[…] de um lado, os chefes municipais e os 'coronéis', que conduzem magotes de eleitores como quem toca tropa de burros; de outro lado, a situação política dominante no Estado, que dispõe do erário, dos empregos, dos favores e da força policial, que possui, em suma, o cofre das graças e do poder da desgraça.

[…] A maior cota de miséria tem tocado aos municípios. Sem recursos para ocorrer às despesas que lhes são próprias, não podia deixar de ser precária sua autonomia política. O auxílio financeiro é, sabidamente, o veículo natural da interferência da autoridade superior no governo autônomo das unidades políticas menores."

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto: o Município e o Regime Representativo no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Há mais de sete décadas Victor Nunes Leal denunciava o coronelismo na federação brasileira em tese referencial, cujo escopo segue profundamente contemporâneo. Ao longo do tempo, segue notavelmente persistente a estratégia do "cofre das graças" na liberação paroquial e fisiológica de benesses governamentais, haja vista a expansão célere da sua modelagem atual mediante emendas parlamentares impositivas. Todavia, é preciso lembrar que a potência dessa liberação balcanizada de recursos públicos é significativamente majorada pelo constrangimento ("poder da desgraça"), decorrente da restrição imposta pela União à arrecadação autônoma e impessoal de tributos de competência dos demais entes federados.

Spacca
Argumentos reformistas se contrapõem e, por vezes, anulam-se reciprocamente quando observados em relação aos impulsos centrípetas e centrífugas que veiculam, conforme, respectivamente, buscam alcançar as receitas ou se destinam ao regime jurídico das despesas públicas.

Paradoxalmente, não se aplica às competências tributárias o argumento da descentralização manejado para justificar a dispersão personalizada da execução da despesa. É, por sinal, deveras significativo o contraste: enquanto para a receita tem sido pautada a agenda de unificação nacional; para a despesa discricionária da União, segundo Arthur Lira, seria necessário garantir a prevalência de um "Orçamento Municipalista".

A fragmentação paroquial, que tem sido fortemente ampliada na alocação das emendas parlamentares, compromete o planejamento das políticas públicas formulado em bases universais para atender a todo o território nacional. Muito embora esse suposto "Orçamento Federal Municipalista" seja contraditório em seus próprios termos, pragmaticamente sua finalidade primordial é ampliar o "cofre das graças" dos congressistas.

Ora, a defesa da pulverização da execução orçamentária federal se funda na suposta democratização alocativa empreendida pelas emendas parlamentares, sem que lhe sejam contrapostas quaisquer indagações acerca do caos operacional e da insegurança jurídica usualmente apresentados para pretender — direta ou indiretamente — a reconcentração tributária na federação brasileira.

Ao reduzir drasticamente o raio político-decisório dos entes estaduais e municipais sobre suas receitas próprias e conduzi-los — direta ou indiretamente — à dependência de repasses do ente central, tende a restar comprometido o pilar da autonomia erigido pela Constituição de 1988 para o nosso federalismo fiscal.

Para retomar esse aparente impasse em outro patamar mais qualificado de reflexão, é interessante trazer à tona o exemplo do forte impulso descentralizador da Constituição Cidadã. Ao longo dos 35 anos de vigência do arranjo tridimensional de federalismo brasileiro, o país vivencia um mosaico heterogêneo que comporta nada menos que 5.570 municípios e 27 estados (incluído o DF).

As repercussões político-administrativas e fiscais do modelo federativo são extremamente preocupantes e ensejam grande parte das críticas dirigidas tanto à falta/fragilidade de gestão, quanto à insuficiência de financiamento nas políticas públicas asseguradoras de direitos fundamentais.

Na Proposta de Emenda à Constituição 188/2019, chegou-se a conceber o dever de comprovar sustentabilidade financeira dos municípios de até 5.000 habitantes, segundo o parâmetro de a arrecadação própria de impostos alcançar, no mínimo, 10% da sua receita total (artigo 6º da PEC 188/2019, que buscava inserir artigo 115 do ADCT nesse sentido). O pressuposto do dispositivo era que, quando operassem abaixo de tais parâmetros mínimos conjugados de densidade demográfica e de receita própria, os municípios não deveriam existir e precisariam ser incorporados a municípios limítrofes com melhor índice de sustentabilidade financeira.

Por ocasião dos debates provocados pela PEC 188/2019 (também chamada de "PEC do Pacto Federativo"), a estimativa era que poderiam vir a ser extintos 769 municípios e eliminados até cerca de 20 mil cargos na estrutura administrativa das respectivas prefeituras e Câmaras de Vereadores.

No "Balanço do Setor Público Nacional" relativo a 2016, houve o diagnóstico de que, em quase 82% dos municípios brasileiros, as transferências federativas respondiam por 75% das suas respectivas receitas orçamentárias globais. Tamanha foi a dependência levantada que apenas cerca de 2% dos municípios possuíam receita própria superior ao saldo das transferências. Quando observamos os estados, apenas sete possuíam receitas próprias francamente superiores às transferências (ou seja, quando as transferências respondem por fração igual ou inferior a 25% de sua receita orçamentária total). Bem sabemos que aludido quadro não mudou substancialmente de 2016 até os presentes dias.

A expansão vertiginosa de entes federados sem suficiente viabilidade econômica e, por vezes, sem bases histórico-sociais e sem ganho mínimo de escala que lhes justificassem a existência, direta ou indiretamente, obriga-nos a superar o "mito da descentralização", tal como bem nos provocava Marta Arretche [1], como rota supostamente necessária de maior eficiência e democratização para a consecução das políticas públicas.

Multiplicamos os custos da máquina estatal em um arranjo federativo disfuncional e tendente a diversos tipos de compadrios e de guerras fiscais na execução de políticas públicas, cuja concepção originária dada pelo Constituinte de 1988 evidentemente reclama cooperação entre os entes.

Enquanto não questionarmos a baixa escala dos serviços públicos e o desapreço ao planejamento pactuado das políticas públicas na federação brasileira, a noção de "responsabilidade social" continuará a ser tratada como se fosse antípoda da sua congênere "responsabilidade fiscal". O mais triste é que segue sem regulamentação o parágrafo único do artigo 23 da Constituição, enquanto a União insiste em propor regras fiscais aplicáveis apenas a si própria (tal como se sucede com a Emenda 95/2016 e com o PLP 93/2023), sem maior interlocução com os demais entes políticos.

Não há um esforço sistêmico de enfrentamento dos problemas que afetam as finanças públicas da nossa federação, a exemplo da baixíssima escala de operação econômico-social de 769 municípios e do alto nível de dependência de transferências de 82% dos municípios e de 74% dos estados, já que as receitas transferidas equivaliam a 3/4 ou mais do total da arrecadação desses entes. Como bem nos alertara Victor Nunes Leal, a esses tem tocado "a maior cota de miséria", na medida em que "sem recursos para ocorrer às despesas que lhes são próprias, não podia deixar de ser precária sua autonomia política".

Um desvendamento, porém, revela-se necessário: propor mais uma rodada de reconcentração tributária, em sentido diametralmente oposto à dispersão alocativa das despesas discricionárias da União (via emendas parlamentares impositivas), não é uma escolha contraditória. A bem da verdade, tal aparente incoerência trata-se de deliberada opção pelo acirramento do regime de captura a que Victor Nunes Leal se referia desde o final da década de 1940.

Eis contexto em que se revela, no mínimo, um tanto desfocada a proposta do Fundo de Desenvolvimento Regional a que se refere o art. 159-A a ser inserido na CF/1988, caso seja aprovado o substitutivo da reforma tributária (disponível aqui). O limite anual de R$ 40 bilhões para equalizar as potenciais perdas de arrecadação (artigo 12 do Substitutivo da PEC 45/2019) tem sido impugnado pelos governadores e prefeitos, desde já, como francamente insuficiente.

Sem que haja um efetivo projeto de desenvolvimento regional — aderente ao planejamento setorial das políticas públicas — e sem o debate conjugado com as necessidades de financiamento das obrigações constitucionais e legais de fazer definidas no ordenamento pátrio, qualquer resposta aos inúmeros impasses tributários na federação brasileira tende a acirrar a animosidade entre os entes.

A isso se soma o estoque considerável de renúncias fiscais já concedidas (cujo volume apenas em relação ao ICMS foi estimado pela Febrafite em cerca de R$ 228 bilhões no exercício de 2023), enquanto o artigo 11 do Substitutivo da PEC 45/2019 previu montantes deveras inferiores no período de 2025 a 2032, a pretexto de um Fundo de Compensação de Benefícios Fiscais ou Financeiros. É ingênuo crer que haja a célere e fática mitigação daquele patamar de incentivos de R$ 228 bilhões/ano para o nível de uma compensação de, no máximo, R$ 32 bilhões.

Como bem suscitado por Melina Rocha, em entrevista à Folha, "Se não tiver uma política de desenvolvimento regional, que incentivo as empresas vão ter para sair de São Paulo? Esse é o desafio da reforma tributária, ter mecanismos para atrair investimentos para essas regiões, mas que não seja pela guerra fiscal".

Enquanto não se regulamenta efetivamente o parágrafo único do artigo 23 da Constituição, o cenário que vivenciamos é tão somente o de tendência de perenização da lógica septuagenária de amplificar os efeitos do "cofre das graças" de agentes políticos do ente central, mediante a imposição de "cota de miséria" a significativo número de entes municipais e estaduais.

No limite, o "poder da desgraça" dessa reconcentração tributária pode vir acompanhado da revisão dos pisos em saúde e educação, para agradar a muitos prefeitos e governadores, espraiando ainda mais os efeitos da alocação fragmentada e paroquial dos recursos públicos. Afinal, para quem apenas se orienta pelo curto prazo eleitoral, vinculações orçamentárias e planejamento das políticas públicas são limites a serem abatidos, na medida em que constrangem sua pretensão arbitrária de pulverizar fisiologicamente as despesas públicas. Eis a face sempre renovada e resiliente do histórico coronelismo fiscal brasileiro.

 


[1] ARRETCHE, Marta. Mitos da Descentralização: Mais democracia e eficiência nas políticas públicas? Revista Brasileira de Ciências Sociais. 11 (31), 1996, p. 44-66, disponível em http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_31/rbcs31_03.htm

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  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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