Embargos Culturais

A obra Liberdade de Expressão, do Supremo Tribunal Federal

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de junho de 2023, 8h00

O Supremo Tribunal Federal tem exercido também importante papel editorial e pedagógico. Essa afirmação é facilmente constatada em visita à página web da Corte. Uma seção de publicações temáticas mostra-se substancialmente útil para o pesquisador, acadêmico ou profissional.

Refiro-me a publicação veiculada agora em junho de 2023: "Liberdade de Expressão". Esse trabalho certamente é um divisor de águas no modo de se explicar o direito no Brasil. É também um manual esclarecedor, ao mesmo tempo profundo nas informações (conteúdo) e amistoso na apresentação (forma). Mensagem e meio se complementam, o que raro na literatura jurídica.

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A publicação está anos-luz à frente do que se produz e se disponibiliza no mercado editorial jurídico brasileiro contemporâneo. Vem com o complemento "Supremo contemporâneo", o que de imediato suscita várias digressões. Dentre elas, o diálogo direto entre o Tribunal e a sociedade. Como se lê na ficha catalográfica, a obra "reúne os julgados considerados mais relevantes para os estudiosos do Direito e para a sociedade brasileira, proferidos nos anos de 2007 a 2022".

O tema: liberdade de expressão.

De fato, comprova-se o que se lê na nota introdutória da obra. Há um rompimento radical com "padrões antigos de apresentação de conteúdo, trazendo informações selecionadas e sistematizadas, inclusive visualmente, a partir da análise de precedentes qualificados proferidos pelo tribunal".

A disposição do conteúdo é muito didática. Inicia-se com um excerto do julgado paradigma, com identificação da ação e do (a) ministro (a) relator (a). Os organizadores tomaram o cuidado de não identificar diretamente a parte envolvida, o que reforça o caráter objetivo da composição de conflitos em uma Corte Constitucional.

Segue um resumo do caso. Um quadro fixa com clareza as dimensões do problema, de uma forma gráfica, como se fosse um mapa mental. Um placar indica os votos, no mérito, com vencedores e vencidos, o que explicita objetivamente como os (as) magistrados (as) votaram.

A sessão seguinte, "entenda o caso", explica com simplicidade (mas com densidade) o problema discutido e a solução alcançada. Geralmente, trata-se de um texto com adaptação de notícia publicada no portal do STF, com indicativo da fonte originária. Uma próxima aba, "Fundamentos", recolhe os excertos mais significantes da decisão. É o momento mais denso da narrativa. O problema é visto sob todos os ângulos e perspectivas do conflito constitucional.

Há em seguida a indicação da doutrina citada, a par de informações adicionais, relativas ao inteiro teor do acórdão, a podcast do STF que trate do assunto, a vídeos do julgamento e à fixação da tese, a par dos amici curiae, quando existentes. Do ponto de vista de uma exposição pedagógica o modelo deve ser exemplo de todos quantos queiramos explorar com objetividade quaisquer assuntos jurídicos. Temos que melhorar nossos livros.

A escolha dos assuntos é impecável. Inicia-se com o tema dos limites da liberdade de expressão, que foi exposto à luz das prerrogativas de parlamentares. A liberdade de culto é o tema seguinte, estudado à luz das restrições que decorreram do enfrentamento da crise da Covid-19. Explora-se o direito ao esquecimento. No passo seguinte, o espinhoso problema da recusa dos pais à vacinação compulsória de filho menor por motivo de convicção filosófica.

Há também o relato da decisão do STF no caso de críticas realizadas por meio de sátira a elementos religiosos inerentes ao cristianismo. Explica-se a posição do Tribunal em relação ao crime de desacata. Há referência ao atualíssimo tema das fake news. A obra também cuida da liberdade de expressão dos agentes políticos, da liberdade de expressão no ambiente universitário, da identidade de gênero, do direito de acesso à informação, da tolerância e respeito à diversidade, da livre organização de entidades estudantis, da propaganda eleitoral por telemarketing, do marco regulatório da televisão por assinatura, do ensino religioso confessional, da imunidade tributária cultural, entre tantos outros. A obra se encerra com o tema da liberdade de reunião e de manifestação pública.

São temas superlativamente polêmicos, que revelam as clivagens ideológicas que marcam nosso tempo. Os interessados na tentativa de compreensão de nossas angústias podem alargar a compreensão da jurisprudência com a leitura de outros textos, da ciência política, da história, da antropologia cultural e da sociologia, a exemplo de autores contemporâneos como Angela Alonso, Conrado Corsalette, Moisés Naím, Anne Applebaum, Giuliano da Empoli, Sérgio Abranches, Christian Lynch, Paulo Henrique Cassimiro,  Carlos Sávio Gomes Teixeira, Leonardo Avritzer, Cristina Serra, Fernando Limongi, Camila Rocha, Idelber Avelar, Cas Mude, David Runciman, Steven Levitsky, Daniel Ziblatt, Marina Basso Lacerca, Gustavo Maultasch, Antonio Risério, e tantos outros, que tenho tentado resenhar aqui nessa coluna de embargos culturais.

Essa publicação do STF, além de pedagógica, é um retrato dinâmico das tensões de nosso tempo. Nesse sentido, trata-se de valioso manual de história contemporânea e de ciência politica aplicada. O leitor atento pode perceber que os problemas colocados à mesa talvez sejam mais importantes do que as soluções fixadas pela Corte. Será?

Parece-me (e agora estou plagiando um famoso político dos anos 50, que começou na esquerda e terminou na direita, inimigo de Brasília) que, como na sátira de George Orwell, estamos falando em liberdade como liberdade para matar a liberdade. Nesse ponto, importam mais as soluções, porque inegável o papel da Corte.

Clique aqui para acessar "Liberdade de Expressão — 1ª Edição"

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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