Reflexões Trabalhistas

Trabalho em situação análoga à escravidão: chaga que mancha o país

Autor

  • Raimundo Simão de Melo

    é doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal-UDF/mestrado em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho consultor jurídico advogado procurador regional do Trabalho aposentado e autor de livros jurídicos entre eles Direito Ambiental do Trabalho e a Saúde do Trabalhador.

23 de junho de 2023, 8h00

É sempre oportuno refletir sobre o desenvolvimento dos direitos humanos, sociais e trabalhistas, a fim de se evitar a desconstrução, que continua ocorrendo no cenário trabalhista brasileiro, com relação às pessoas escravizadas ou que trabalham em condições análogas à escravidão, em afronta às garantias básicas e fundamentais dos trabalhadores.

Nesse contexto, também é preciso refletir sobre discursos liberais, de que se faz necessária, cada vez mais, a flexibilização das normas trabalhistas, com o intuito de fortalecer a economia e a manutenção de trabalho.

Nesse sentido, não se pode esquecer de que nosso país fez uso do trabalho escravo propriamente dito por mais de 380 anos e continua sendo uma economia em desenvolvimento, com muitas pessoas trabalhado de forma precária e desumana, ainda em condições análogas à escravidão.

O Brasil, assim como o mundo, vivenciou grande atraso moral, ao utilizar-se de pessoas com o intuito de obrigá-las a desempenhar trabalho forçado e outras condições de trabalho que afrontam a dignidade da pessoa humana. Essa cultura nunca foi apagada do cenário das relações de trabalho no Brasil.

Os escravos eram tratados como se fossem objetos, e nessa perspectiva mercantilista seus proprietários poderiam utilizar dessas pessoas conforme seu bel prazer. Os escravos não possuíam nenhum tipo de direito ou segurança e em sua grande maioria, muitos foram trazidos de outros países, perdendo suas conexões sociais e familiares, sua cultura, crença e costumes no maior desrespeito aos direitos humanos.

Ocorre que hoje, no Brasil, a situação legal sobre esse tema é diferente, uma vez que a Constituição cidadã de 1988 estabelece que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado democrático de Direito e tem como fundamentos a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (artigo 1º). Ademais disso, constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil construir uma sociedade livre, justa e solidária, erradicar a pobreza, reduzir as desigualdades sociais e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (artigo 3º).

Ainda, no capítulo da ordem econômica, reza a Carta Magna brasileira que a ordem econômica se fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa e tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os princípios da função social da propriedade, da redução das desigualdades sociais e da  busca do pleno emprego (artigo 170).

Então, não se justifica mais constatar que trabalhadores ainda vivem ou sobrevivem em condições de trabalho análogas à escravidão, quando, na tentativa de garantir a subsistência sua e de suas famílias, acabam por se submeter a esse tipo de trabalho, "abrindo" mão de seus direitos e garantias sociais e humanas. Isso destrói sua saúde, dignidade e auto-estima, pois o trabalho não se trata apenas de uma relação de obtenção de recursos, mas, também, influi na identidade social das pessoas e faz parte do que elas são ou do que querem ser.

Lamentavelmente o Brasil ainda vive um cenário triste e injustificável sobre o trabalho em condições análogas à escravidão. Assim é que em 2022 a Inspeção do Trabalho resgatou 2.575 trabalhadores de condições análogas às de escravo, num total de 462 fiscalizações realizadas no ano em todo país. O Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) realizou 32% do total das ações fiscais, encontrando trabalho análogo ao de escravo em 16 dos 20 estados, onde ocorreram ações. Apenas nos estados de AL, AM e AP, mesmo fiscalizados, não foram constatados casos de escravidão contemporânea em 2022.

Somente de janeiro a 1º de maio de 2023 já foram resgatados 1.201 trabalhadores de condições análogas à escravidão. Desde o início do ano, foram realizadas 97 ações fiscais de combate ao trabalho degradante pela Secretaria de Inspeção do Trabalho, possibilitando que R$ 4.996.742,97 em verbas salariais e rescisórias fossem pagas aos trabalhadores resgatados. No ano passado, no mesmo período, foram 61 ações, tendo sido resgatados 500 trabalhadores pela Inspeção do Trabalho.

De acordo com dados do MTE a intermediação de mão-de-obra ilegal ocorre, geralmente, por intermédio dos "gatos", agenciadores que arregimentam trabalhadores de outras regiões do país para atuarem de forma degradante e precária, sem as mínimas condições de trabalho decente.

Em 2023, somente no caso emblemático de Bento Gonçalves, na Serra gaúcha, foram 207 pessoas resgatadas. Essa ação ocorreu em 22/02/2023 (ação conjunta da Polícia Rodoviária Federal (PRF), Polícia Federal (PF) e Ministério do Trabalho e Emprego (MTE).

Nesse caso recente de Bento Gonçalves, os trabalhadores, provenientes da Bahia, em sua maioria, foram aliciados por empresa terceirizada pelas vinícolas Garibaldi, Aurora, Salton e mais 23 produtores rurais, o que mobilizou a opinião pública sobre um tema, que, infelizmente, não é novo no Brasil. A mídia falada e escrita tem registrado a existência de trabalho em situação análoga à escravidão, como teria ocorrido no Sul do país, no trabalho em vinícolas e na colheita de arroz, conforme relataram os fiscais do Ministro do Trabalho e Emprego (MTE) e outras autoridades.

Segundo os relatos registrados pelas autoridades que resgataram os trabalhadores das vinícolas gaúchas, havia até situações de agressão, inclusive física, cárcere privado e agiotagem. Disse a Polícia Federal: "Nós localizamos spray de pimenta, taser [arma de choque], cassetetes. Havia empréstimo e cobrança de juros de 50% [por dois meses]." Segundo a PF, os indícios de trabalho escravo se configuram pelo não pagamento de salários, empréstimos com juros abusivos, endividamento e pelas ameaças sofridas.

Quer dizer, é incrível imaginar que no ano de 2023 ainda se encontre essa situação de trabalho degradante no Brasil e, o que chama a atenção, na região sul do pais.

É certo que vivemos numa economia capitalista, onde há pressão contra os direitos sociais, porém, isso não retira ou diminui o papel do Estado, de traçar e executar políticas públicas na busca de equilíbrio econômico e social e da eliminação dessa chaga social.

Nessa linha, cabe ao Estado promover legislação moderna de fomento ao trabalho decente, inclusive, por conta dos compromissos internacionais assumidos pelo pais. É necessário que haja pequenas e grandes
ações de fiscalização no campo e na cidade, ações juntamente com a sociedade civil, que também deve se engajar nesta luta, por exemplo, com atividades de conscientização nas escolas, nos bairros e comunidades, esclarecimentos dos direitos dos trabalhadores, compromissos entre os muitos órgãos do Estado incumbidos da tarefa de erradicação das formas degradantes de trabalho, divulgação de listas de empregadores infratores, bem como restrições de crédito a esses infratores, punições econômicas com multas e indenizações e condenações e prisões de quem ainda comete o crime de trabalho escravo.

O que não se pode é, em nome dos interesses capitalistas, ficar inerte diante dessa profunda agressão ao ser humano, que é o trabalho análogo ao de escravo.

Por fim, é preciso que se adotem medidas e posturas realmente voltadas para a manutenção das garantias sociais fundamentais trabalhistas, ante os princípios da valorização do trabalho e da dignidade da pessoa humana, o que é um dever do Estado e da sociedade.

Em próximo artigo nesta coluna, pretendemos trazer reflexões sobre quem são os trabalhadores escravizados no Brasil, na atualidade.

Autores

  • é doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP, professor titular do Centro Universitário do Distrito Federal (UDF), mestre em Direito das Relações Sociais e Trabalhistas, membro da Academia Brasileira de Direito do Trabalho, consultor jurídico, advogado, procurador regional do Trabalho aposentado e autor de livros jurídicos, entre eles, Ação Civil Pública na Justiça do Trabalho.

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