Justiça Tributária

Conselho Federativo do IBS viola Federalismo Fiscal da Constituição?

Autor

  • Marcus Livio Gomes

    é professor associado de Direito Tributário da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e pesquisador associado da Universidade de Londres.

19 de junho de 2023, 8h22

Este texto marca o início de minha participação, junto com o amigo e companheiro no Departamento de Direito do Estado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) professor Sérgio André Rocha, à coluna Justiça Tributária. Será um prazer dividir este espaço com Raul Haidar e o amigo professor Fernando Facury Scaff às segundas-feiras.

Para esta contribuição inaugural, é quase impossível não tratar do tema do momento, ou seja, a reforma tributária, cujo relatório foi publicado pelo Grupo de Trabalho (GT) da Câmara dos Deputados, criado especificamente para o exame das PECs 45 e 110, ambas de 2019.

Spacca
Arrisco dizer que estamos num dos momentos mais conflituosos do cenário tributário no Brasil, com índices de litigiosidade altíssimos. Por aqui tento indicar algumas das razões para o caos tributário e a gigantesca litigiosidade que assola não só o poder judiciário e os entes federativos, mas especialmente os contribuintes do país. Não temos a pretensão de esgotar esta vastíssima temática das reformas tributária e do processo tributário, mas sinalizar que o sistema tributário brasileiro sucumbiu, arrastando com ele as empresas, as finanças públicas e, também, a prestação jurisdicional.

Estima-se que o contencioso tributário brasileiro alcançou R$ 5,44 trilhões em 2019. Este valor torna-se ainda mais expressivo quando avaliado em termos do Produto Interno Bruto (PIB), principal medida de desempenho econômico de um país, alcançando 75% do PIB, em 2019.

Segundo dados constantes do relatório Justiça em Números, historicamente as execuções fiscais são o principal fator de morosidade do Poder Judiciário. No ano de 2022, o referido relatório[1] apontou números expressivos, a saber, 35% do total de casos pendentes corresponde a execuções fiscais, algo em torno de 30 milhões de processos, sendo também 65% das execuções pendentes, com taxa de congestionamento de 90%. Significa dizer que, em um universo de 100 processos, apenas 10 foram baixados em 2021.

O último estudo sobre o custo da execução fiscal realizado pelo TJ-DF (Tribunal de Justiça do Distrito Federal), em projeto piloto para aplicar métodos adequados para a solução de conflitos tributários, constatou que cada processo custa em média R$ 28 mil, ou seja, esse passivo processual tributário custa ao menos R$ 1 trilhão ao país.

O Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário Brasileiro, realizado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) na  Edição do Justiça Pesquisa, por mim coordenado quando então secretário especial de Programas, Pesquisas e Gestão Estratégica do CNJ na gestão do ministro Luiz Fux, através de brilhante pesquisa do Insper, traçou de forma inédita o cenário da litigiosidade tributária judicial no Brasil.

Embora o IPTU seja o tributo mais litigado, o valor dos créditos tributários é diminuto, se considerados individualmente. Contudo, os tributos onde a litigiosidade é marcante são os sobre o consumo, ICMS e PIS/Cofins, o que intuitivamente já se previa.

Os números falam por si e revelam que estamos longe da segurança jurídica e da simplicidade do nosso sistema tributário[2]. A primeira conclusão a que chegamos é que o caos tributário não interessa ao Poder Judiciário e tão pouco ao Estado, onerados em seu orçamento para manter uma gigantesca e ineficiente máquina de cobrança de tributos.

A proposta de reforma do processo tributário, que tive a honra de relatar na Comissão de Juristas, presidida pela professora, tributarista e ministra do STJ Regina Helena Costa, criada pelo Ato Conjunto Senado/STF nº 1/2022, endereça o problema pelo ângulo processual, mas não é suficiente.

Apresentamos algumas reflexões preliminares sobre um dos tópicos que foi pouco debatido até o momento, mas que guarda grandes complexidades, ainda sem respostas muito claras, pois o relatório não traz propostas concretas, mas premissas para um desenho legislativo, sendo em alguns casos simplesmente descritivo dos problemas e divergências existentes.

Conforme explicitado pelo relatório, a análise das PECs nºs 45 e 110, de 2019, resultou em um longo processo de debate conjunto das duas Casas Legislativas, podendo-se dizer que suas últimas versões — o substitutivo apresentado à Comissão Mista Temporária da Reforma Tributária em 12 de maio de 2021, e o substitutivo à PEC nº 110, de 2019, trazido à CCJ do Senado em 16 de março de 2022 — possuem mais semelhanças do que assimetrias.

Trazemos à baila o tema da Administração e Gestão do IBS. Segundo o substitutivo da Comissão Mista, a gestão e administração seriam compartilhadas entre as três esferas federativas, nos termos de lei complementar. Já o substitutivo da PEC nº 110 previa que a gestão e administração do IBS se daria a cargo do Conselho Federativo do Imposto sobre Operações com Bens e Prestações de Serviços, entidade pública de regime especial, dotada de independência técnica, administrativa, orçamentária e financeira, cuja instância máxima de deliberação e autoridade orçamentária seria composta por todos os estados, o Distrito Federal e todos os municípios, com votos distribuídos de forma paritária.

O grupo de trabalho optou por um modelo de gestão do IBS no sistema dual, o que leva a decisões relevantes quanto ao papel que as administrações tributárias subnacionais terão neste novo modelo. Sendo o IBS um tributo de âmbito nacional, que demanda a participação de todos os entes federativos para seu funcionamento, não se pode restringir a atuação das Fazendas Públicas estaduais e municipais, mas sim pensar numa nova dimensão de atuação, mais abrangente e integrada. A dúvida é se este novo formato respeita o Federalismo Fiscal desenhado pela Constituição de 1988.

Um primeiro questionamento é se seria possível, em razão de competências que precisam ser exercidas de forma uniforme em âmbito nacional, como a administração da arrecadação e a regulamentação do tributo, a criação de um órgão nacional com esta envergadura institucional.

Por outro lado, resta claro que o IBS com gestão compartilhada por estados, DF e municípios exigirá uma gestão e administração conjunta dessas esferas federativas, de forma a garantir a distribuição dos recursos conforme o princípio do destino, a unicidade da regulamentação do imposto, hoje caótica tanto a nível estadual como municipal, e a ágil devolução dos créditos aos contribuintes.

Um segundo é se seria possível a formulação de política tributária própria, nos interesses da respectiva unidade federativa. Aqui talvez esteja a maior mudança, com impactos orçamentários significativos, pois não permitiria a concessão de benefícios e incentivos fiscais.

Se por um lado tem o potencial de acabar com uma guerra fiscal fratricida, por outro tangencia o poder de tributar inaugurado pelo Federalismo Fiscal com a CRFB de 1988. Este é um tema caro num país com tantas diversidades regionais e econômicas. O que deve ser pesado é se a formulação de políticas tributárias em âmbito nacional de base sobre o consumo ampliada será capaz de dar cumprimento ao artigo 3°, III, ao dispor: "Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (…) II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;".

Terceiro, há vantagens latentes para os contribuintes numa regulamentação única para todo o território nacional, com a possibilidade de simplificação das obrigações acessórias. Segundo dados do Doing Business, do Banco Mundial, o Brasil é o campeão em horas demandadas para a apuração de tributos, consumindo, em média, 2.038 horas por ano das empresas nacionais.

Existe algum parâmetro institucional para o Conselho Federativo do IBS? A competência normativa nacional centralizada guarda precedentes com a criação do CNJ, pela Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, no bojo da reforma do Poder Judiciário. Com as suas competências elencadas no artigo 103-B da Constituição e complementadas pelo Regimento Interno do órgão (Resolução nº 67, de 3 de março de 2009), tem entre as suas principais atribuições os controles administrativo, financeiro e disciplinar do Poder Judiciário, com a exceção do STF (ADI nº 3.367/DF). Além do mais, tem as funções de planejar, auxiliar e acompanhar políticas públicas voltadas à melhoria dos serviços disponibilizados pelo Judiciário. E mais, as resoluções do CNJ são atos normativos primários segundo a Suprema Corte (Ação Declaratória de Constitucionalidade 12-6/Distrito Federal).

Portanto, já existe parâmetro constitucional para a criação de um órgão nacional, tal qual o Conselho Federativo do IBS. Destarte, optando-se por um IBS Dual, não restará outra alternativa à legislação unificada. Assim, a questão prévia é que se torna mais relevante, ou seja, se admitido que a criação do IBS Dual não viola o Federalismo Fiscal, a conclusão lógica é que será necessária a criação de um órgão nacional para gerenciar e administrar o novo imposto.

Por fim, seguimos o tortuoso caminho de uma reforma tributária de vital relevância desacompanhada do texto base para debates. O pior, se efetivamente for votada na primeira semana de julho, tal qual anunciada pela imprensa, a sociedade não terá tempo para avaliar, criticar e propor alterações ao texto.

 

 


[1] CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números. Brasília, DF: CNJ, 2022. Disponível aqui:. Acesso em: .4.set.2022, p. 170-171.  

[2] Faria, Luiz Aberto Gurgel de. Sistema tributário nacional: a segurança jurídica e a contribuição que o PLS nº 298/2011 pode emprestar na busca pela simplicidade. In: Segurança jurídica para o desenvolvimento econômico: análises de impacto legislativo. Coord. Kassio Nunes Marques, Paulo Moura Ribeiro. Rio de Janeiro: ed. J&C: Justiça & Cidadania, 2022, p. 114.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!