Ambiente Jurídico

Autolicenciamento ambiental

Autor

  • Talden Farias

    é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

19 de junho de 2023, 8h00

Talvez a maior discussão em relação ao licenciamento ambiental de obras públicas, ou de interesse público, seja o autolicenciamento, que ocorre quando determinado ente federativo licencia, por meio de seu órgão ambiental, as suas próprias atividades. Hamilton Alonso Júnior[1] informa que tem sido prática comum o licenciamento de atividades por parte do mesmo ente federativo responsável pela concepção, instalação e operação do empreendimento.

Nesses casos, o Poder Público atua a um só tempo como empreendedor, ao propor um projeto e cumprir as medidas mitigadoras ou compensatórias que forem determinadas no caso de aprovação, e como ente administrativo responsável pela aprovação ou não do projeto e pela imposição ou não das medidas mitigadoras ou compensatórias, bem como pela fiscalização destas.

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O problema do autolicenciamento é a maior probabilidade de ocorrência de falta de isenção para exercer o controle ambiental da forma mais adequada e efetiva possível, sendo mais uma discussão prática do que exatamente teórica.

É claro que isso pode diminuir o controle social do licenciamento, especialmente porque é na minoria dos casos em que é realizado o estudo e o relatório de impacto ambiental, e a audiência pública só está prevista nesses casos. Hamilton Alonso Júnior[2] afirma que a transparência que existe nos licenciamentos em que a audiência pública pode ser requisitada deveria ser estendida a todo e qualquer tipo de licenciamento ambiental, ou que integrantes da sociedade civil e técnicos de órgãos ambientais pertencentes a outros entes federativos possam participar do processo, inclusive acompanhando a atividade e monitorando as condições e exigências impostas. Cumpre lembrar que o artigo 5º, LV da Constituição estende ao processo administrativo as mesmas garantias e recursos do processo judicial.

Com efeito, a solução para tal discussão talvez possa ocorrer com a ampliação do direito à informação e da participação da sociedade civil como parte interessada nos processos de licenciamento ambiental. O citado autor entende que, no âmbito do processo jurisdicional, o autolicenciamento ambiental se confrontaria com as regras do artigo 144 do novo Código de Processo Civil que preveem o impedimento do julgador respectivamente nos processos em que for parte ou em que tiver interesse em relação a uma das partes.

Isso é particularmente relevante em se considerando que o licenciamento ambiental é um processo administrativo, estando, assim, submetido constitucionalmente ao princípio da ampla defesa e do contraditório haja vista o interesse difuso e os eventuais interesses de terceiros envolvidos. Sendo assim, além de a ingerência política pode ocorrer com mais facilidade, o autolicenciamento não deixaria de constituir um desrespeito aos citados princípios processuais constitucionais.

Hamilton Alonso Júnior[3] pondera que mesmo que a Constituição não proíba os entes federativos de licenciarem por meio de suas agências ambientais as suas próprias atividades, em vista do princípio da autonomia dos entes federativos, sob o aspecto ético esse licenciamento pode estar comprometido.

O autor destaca que no caso de um candidato a prefeito que tem como plataforma de campanha a construção de determinada obra pelo próprio município, se eleito, o projeto desse empreendimento terá grandes chances de ser imposto pelo prefeito, que poderá pressionará os técnicos por uma excessiva celeridade ou ainda desconsiderar eventuais impedimentos legais.

A tese é que ao desempenhar tal dúplice função administrativa, a Administração Pública pode contaminar o licenciamento ambiental atentando contra os princípios da impessoalidade e da moralidade previstos no artigo 37 da Constituição. Entretanto, o fato é que não existe embasamento na Constituição ou na legislação infraconstitucional para que o licenciamento ambiental não seja feito pelo ente federativo responsável ou interessado pela atividade, desde que a atuação ocorra dentro da sua competência administrativa.

É evidente que mesmo com o embasamento legal necessário, não se pode admitir que o licenciamento desrespeite os princípios da Administração Pública e coloque em risco o direito ao meio ambiente, que é um direito fundamental da pessoa humana. Em vista disso, é recomendável que no licenciamento de atividades públicas ou de atividades de interesse público haja um acompanhamento que garanta uma pouco mais de cautela e transparência.

Isso deve ser aplicado ao menos aos casos de maior porte ou repercussão, que são as atividades consideradas significativamente poluidoras e, portanto, sujeitas ao EIA/Rima. Às vezes o Poder Público não cumpre as condicionantes como deveria, ou não efetiva de forma correta o pagamento da compensação ambiental consoante dispõe a Lei 9.985/2000 (Lei do Snuc).

Essa possibilidade de obrigar o acompanhamento do autolicenciamento ambiental por outro nível federativo tem sido cogitada por parte da doutrina, só que não existe nenhuma determinação legal nesse sentido. Ao contrário, isso vai de encontro ao caput do artigo 13 da Lei Complementar 140/2011, segundo o qual "os empreendimentos e atividades são licenciados ou autorizados, ambientalmente, por um único ente federativo, em conformidade com as atribuições estabelecidas nos termos desta Lei Complementar".

Isso implica dizer que não existe nenhuma restrição ou mesmo qualquer distinção legal quanto ao procedimento do autolicenciamento ambiental, que não encontra nenhum óbice da legislação vigente. A despeito disso, sugere-se o máximo de espaço possível para que os demais entes federativos, por meio de seus órgãos ambientais, o Ministério Público, o terceiro setor de uma forma geral e aqueles que forem diretamente atingidos pelos impactos ambientais da atividade possam participar do licenciamento na condição de parte, com direito a todas as garantias do processo administrativo. O Direito Ambiental é pautado pela participação e pela informação, e é interessante que no caso do autolicenciamento esse controle social seja ainda mais forte.

 


[1] ALONSO JÚNIOR, Hamilton. O autolicenciamento ambiental. In: FINK, Daniel Roberto; ALONSO JÚNIOR, Hamilton; DAWALIBI, Marcelo (orgs). Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002, p. 52.

[2] ALONSO JÚNIOR. O autolicenciamento ambiental. In: FINK; ALONSO JÚNIOR; DAWALIBI (org). Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental, p. 56-59.

[3] ALONSO JÚNIOR. O autolicenciamento ambiental. In: FINK; ALONSO JÚNIOR; DAWALIBI (Org.). Aspectos jurídicos do licenciamento ambiental, p. 52.

Autores

  • é advogado e professor de Direito Ambiental da UFPB e da UFPE, pós-doutor e doutor em Direito da Cidade pela Uerj com doutorado sanduíche junto à Universidade de Paris 1 — Pantheón-Sorbonne, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) e vice-presidente da União Brasileira da Advocacia Ambiental.

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