Interesse Público

Gestão de riscos, autorregulação e o ciclo de aprendizagem

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

15 de junho de 2023, 8h00

A existência de riscos de graus distintos associados às atividades humanas é constatação já antiga, que tem orientado molduras normativas que respondem a este potencial efeito negativo. A resposta tradicional é a assinalação de um regime de responsabilidade civil objetiva, como se dá por exemplo, em relação à própria Administração Pública — mas também no que toda a outros segmentos como transportadoras, fornecedores de produtos ou serviços etc.

A reconfiguração do potencial humano de criação e intervenção no ambiente natural ou artificial; bem como a projeção dos resultados de suas ações presentes para o futuro incrementa o potencial de riscos, à medida em que agrega efeitos contingentes, previsíveis ou não no momento inicial de decisão.

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Não por outra razão, o tema da avaliação de riscos tem sido incorporado também em vários planos da vida, em especial da atuação da Administração Pública. Assim, desde a Lei Complementar 101 (Lei de Responsabilidade Fiscal), que determina a prevenção de riscos e a sua quantificação no respectivo Anexo de Riscos; passando ainda pela Lei 13.848/2019 (Lei das Agências Reguladoras), que determina em seu artigo 3º, § 3º a adoção de práticas de gestão de riscos; até a recente Lei 14.133/2021 que determina este mesmo tipo de prática na gestão de contratos; inclina-se o quadro normativo mais recente pelo prestígio à prevenção de ameaças potenciais.

A sinalização legislativa, todavia, é primeiro passo singelo, no sentido de uma efetiva gestão de riscos, que é de compreender numa etapa inicial, sua identificação e avaliação. Estes dois componentes do ciclo básico da gestão de riscos podem parecer os de mais fácil atendimento – mas mesmo essa compreensão será enganosa. A par do caráter contingente que é próprio ao conceito de risco, muitas vezes a falta de memória da Administração Pública, ou o tratamento segmentado de suas informações compromete o potencial de identificação e avaliação do perigo. Repetem-se iniciativas já indicadas como perigosas — quando menos no que toca à ineficiência — pela simples circunstância de que não se tem um acervo de informações que denunciasse o risco em repeti-las.

A par dos dois elementos já citados, a gestão de riscos compreende a comunicação de eventos potencialmente associados ao perigo; resposta oferecida ao perigo antes identificado, e o monitoramento e aprendizado relacionado à eventual ocorrência de evento indesejado. O ciclo se repete indefinidamente, potencializado o conhecimento empírico necessário à antecipação de riscos e à melhor avaliação de seus possíveis outcomes, adversos ou não.

Uma vez mais, a fórmula pode parecer simples — mas sua aplicação adequada pode se ver comprometida pelo crescente interesse na modelagem da autorregulação, ou ainda da autorregulação regulada como alternativa útil para áreas sujeitas a uma intensa volatilidade. Em situações que tais — essa é a nova "revelação" — a alternativa da autorregulação, ou da autorregulação regulada permitiria uma aproximação maior entre a realidade do segmento em cogitação, e os riscos a que ele esteja sujeito, do que resultaria necessariamente uma melhor gestão dos perigos pretendidos evitar.

Essa tem sido a solução apresentada, por exemplo, no PL 2.630/2022 (comumente identificado como "PL das Fake News"), ao aludir no substitutivo hoje em tramitação, à análise e atenuação de riscos sistêmicos, a ser desenvolvida pelos provedores de plataformas de comunicação digital. Na mesma linha, o PL 21/2020 alude à prevenção de riscos como "princípio para o desenvolvimento e aplicação da inteligência artificial no Brasil". Mais recentemente o PL 1.459/2022, identificado por alguns como "PL dos agrotóxicos", e por seus críticos como o "PL do veneno" igualmente alude a análise de risco, além de definir a categoria do "risco inaceitável", conceitos a serem considerados para fins de autorização, temporária ou definitiva de uso dos referidos produtos químicos.

Todas as referências formuladas em instrumentos normativos em avançado estado de processamento podem parecer positivas a uma primeira aproximação — mas elas desafiam o efeito negativo de rompimento do ciclo contínuo de aprendizado na gestão de risco. Isso porque, firmes na lógica da autorregulação regulada, as proposições confiam em expressiva porção, aos agentes operadores do segmento, a identificação e avaliação dos riscos, bem como os ajustes que essa primeira aferição deva merecer a partir das ocorrências verificadas na gestão ordinária da atividade. Há alternativas que envolvem uma comunicação à estrutura "x" ou "y" destes mesmos estudos — mas o protagonismo segue sendo do agente econômico, nesse modelo, a um só tempo regulado e regulador.

Um arranjo institucional com essas características pode gerar rompimento no ciclo de aprendizado da gestão de riscos, já na etapa da comunicação de ocorrências a ele relacionadas. Isso porque se a identificação e avaliação do risco se deu pelo agente do mercado, a transposição dessa mesma identificação para a realidade da vida, no uso do produto ou serviço, pode não ser tão simples. Enquadrar a ocorrência "x", que se dê na aplicação, por exemplo, de um agrotóxico na fazenda, como manifestação de um determinado risco identificado pelo seu fabricante pode não se dar, pela simples circunstância de que o usuário não percebe aquela mesma ocorrência como manifestação do perigo.

Evidentemente, rompido ou fragilizado o processo de comunicação de ocorrências associadas à manifestação do risco, tem-se a cristalização (equívoca) de uma identificação e avaliação iniciais que teriam sido em tese, desmentidas pela realidade. Mais ainda, se a comunicação se vê minada pela circunstância de que as etapas anteriores do clico de gestão do risco se derem em ambiente fechado ou opaco, o monitoramento se vê igualmente prejudicado, e em último grau, o aprendizado.

Quando se tem em conta modelos de autorregulação regulada, o enfraquecimento do ciclo de aprendizado reduz ainda a aptidão da Administração Pública de empreender à revisão de seus parâmetros básicos de orientação inicial à regulação pelos agentes de mercado. Num cenário de agentes econômicos múltiplos, a gestão de riscos é de ser integrada, para que se possa desenvolver uma curva efetiva de aprendizado, e uma qualificação real da regulação.

Não se pode olvidar que uma gestão adequada de riscos tem por objetivo não só prevenir o evento danoso, mas induzir aqueles que desenvolvem a atividade perigosa, a revesti-la de atributos que mitiguem a probabilidade de efeitos adversos. Essa indução, no curto prazo, normalmente significa maiores custos para o operador da atividade — que numa lógica puramente econômica, tenderá a minimizar os possíveis impactos ou consequências.

Imprescindível portanto, que nas iniciativas já citadas — e em outras tantas que tenham escapado à observação desta escriba — se tenha em conta, na construção do desenho institucional, uma modelagem em que o ciclo de aprendizado proporcionado pelo processo de gestão de riscos não se rompa, em desfavor da Administração Pública e da cidadania.

É tempo ainda de compreender que são poucas as atividades afetas à regulação da Administração Pública que não guardem conexões entre si; de modo que a gestão de riscos é de ser compreendida igualmente numa dimensão sistêmica — e não proprietária de uma única atividade. A lógica tradicional, da especialização funcional como o critério por excelência de organização administrativa não resiste à evidência das relações de matricialidade.

Regular, hoje, é muito mais do que o desafio de ordenação segundo uma lógica de expertise. Regular é compreender relações e atividade como integrantes de um todo, num contexto sujeito a riscos, onde a melhor medida de prevenção é o compartilhamento de informações, que permita o concurso de experiências e inteligências.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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