Novo capítulo no Tema nº 801 do STF: natureza jurídica da contribuição ao Senar
14 de junho de 2023, 8h00
Perquirir a natureza jurídica de determinado instituto pode, para alguns, parecer tarefa exclusivamente de viés acadêmico, a ser desempenhada por juristas encastelados em suas torres de marfim. Contudo, um olhar mais aguçado, como o do jusfilósofo estadunidense Ronald Dworkin, não deixa de notar inexistir a impossibilidade de dissociar a teoria da prática, porquanto ambas caminham lado-a-lado.[1] Prova disso é o imbróglio gerado quando instada a Corte Constitucional a se manifestar no Tema de nº 801.
A criação do Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), prevista no artigo 62 do ADCT, estabeleceu que sua instituição se daria nos moldes do Senai e do Senac. E, a Lei nº 8.315/91, ao tratar da questão, logo dispõe em seu artigo 1º qual o objetivo a ser perseguido: "organizar, administrar e executar em todo o território nacional o ensino da formação profissional rural e a promoção social do trabalhador rural, em centros instalados e mantidos pela instituição ou sob forma de cooperação, dirigida aos trabalhadores rurais".
O artigo 3º da Lei nº 8.315/91 dispõe que, dentre outras, constituem rendas do Senar contribuição mensal compulsória, a ser recolhida à Previdência Social, de 2,5% sobre o montante da remuneração paga a todos os empregados pelas pessoas jurídicas de direito privado, ou a elas equiparadas, que exerçam atividades agroindustriais, agropecuárias, extrativistas vegetais e animais, cooperativistas rurais e sindicais patronais rurais — ex vi do inciso I do artigo 3º.
Com as alterações promovidas pela Lei nº 10.256/2001, houve a determinação de que a contribuição ao Senar recolhida pelo empregador pessoa jurídica que se dedique à atividade rural e pelas agroindústrias se daria pelo adicional de 0,25% da receita bruta proveniente da venda de mercadorias de produção própria, e não pelo recolhimento mensal de 2,5% sobre o montante da remuneração paga aos empregados. E, nos termos do artigo 2º da Lei nº 8.540/1992, "a contribuição da pessoa física de que trata a alínea a do inciso V do artigo 12 da Lei n° 8.212, de 24 de julho de 1991, para o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), criado pela Lei n° 8.315, de 23 de dezembro de 1991, é de um décimo por cento incidente sobre a receita bruta proveniente da comercialização da sua produção".
Em sessão de dezembro de 2022, com acórdão publicado apenas em 24 de abril p.p, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu ser "constitucional a contribuição destinada ao Senar incidente sobre a receita bruta da comercialização da produção rural, na forma do artigo 2º da Lei nº 8.540/92, com as alterações do artigo 6º da Lei 9.528/97 e do artigo 3º da Lei nº 10.256/01".[2] Da ementa colhe-se ainda que "[a] contribuição ao Senar, embora tenha pontos de conexão com os interesses da categoria econômica respectiva e com a seguridade social, em especial com a assistência social, está intrinsecamente voltada para uma contribuição social geral".[3]
O Guardião da Constituição ao, em tese, definir que a contribuição ao Senar teria o cariz de "contribuição social geral", impingiu efeitos tributários que extrapolam um mero rótulo doutrinário. Isso porque, o inciso I do §2º do art. 149 da CRFB/88 determina que as contribuições sociais e as de intervenção no domínio econômico não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação. Caso ostente a contribuição destinada ao Senar natureza de contribuição social geral, as receitas de exportação não sofrerão sua incidência, eis que albergadas pela imunidade tributária.
Embora o escrutínio da natureza jurídica da contribuição ao Senar não parecesse ser o objeto do tema de nº 810 do STF, dúvidas inexistem sobre o fato de o tema ser palpitante naquela Corte. Já no Carf, embora possamos identificar a existência de três correntes, há muito ali pacificada a controvérsia.
A contribuição ao Senar, cujos objetivos seriam a valorização do trabalho e a busca do pleno emprego, ambos previstos no art. 170 da CRFB/88 no caput e no inciso VIII, respectivamente, não se prestaria custear atividades desenvolvidas por órgãos de classe ou representativos de categoria. Diferentemente de outras entidades representativas de categorias profissionais ou econômicas, o Senar não representaria nenhuma categoria profissional e/ou econômica, visando tão-somente o atendimento aos princípios norteadores da ordem econômica, insculpidos nos artigos 170-ss. As contribuições intervenção no domínio econômico, por força do disposto no inciso I do §2º do artigo 149 da CRFB/88 não incidirão sobre as receitas decorrentes de exportação.
Na esteira do que consta na ementa do acórdão do Tema de nº 810 do Supremo está a segunda corrente, que assinala ser a contribuição ao Senar uma "contribuição social geral", igualmente albergada pela norma imunizante.[5] Para os filiados à linha, teria a contribuição do Senar a finalidade de financiar a educação e a promoção social do trabalhador rural, com arrimo no disposto no Título VIII da CRFB/88, que trata "Da Ordem Social". Tal constatação seria, por si só, suficiente para afastar a alegação de que a contribuição visaria tão-somente subsidiar os interesses de determinada categoria profissional.[6] Pontuando a ausência de classificação expressa pelo Supremo acerca do cariz da contribuição ao Senar afirmam que, de forma análoga, haveriam se ser rotuladas como as contribuições do Sistema S (Sesi, Senai, Sesc, Senac, etc.) — isto é, exibem a natureza jurídica de "contribuições sociais gerais".[7]
Ao asseverar que a "contribuição ao Senar tem por finalidade financiar a atuação em prol da Ordem Social, especificamente, em prol da Educação (Capítulo III da Ordem Social na CF) e da Família (Capítulo VII da Ordem Social na CF)" [8], enaltecido o fim precípio da contribuição: o de angariar recursos especificamente para o ensino profissional e o serviço social direcionados aos trabalhadores rurais. Tal fato distanciaria a exação de uma contribuição corporativa, na medida em que os recursos não se voltariam à proteção dos interesses da categoria dos empregadores rurais.
Por derradeiro, a terceira vertente,[9] que se firmou vencedora no âmbito do Carf, [10] é a que "[a] contribuição ao Senar, destinada ao atendimento de interesses de um grupo de pessoas; formação profissional e promoção social do trabalhador rural; inclusive financiada pela mesma categoria, possui natureza de contribuição de interesse das categorias profissionais ou econômicas, em sua essência jurídica, destinada a proporcionar maior desenvolvimento à atuação de categoria específica, portanto inaplicável a imunidade das receitas decorrentes da exportação".[11]
O que sói ser replicado nos acórdãos que apresentam o entendimento já pacificado no âmbito do Carf é que "embora reflexamente as contribuições ao Senar beneficiem a sociedade, no âmbito da educação e assistência aos trabalhadores rurais, bem como causem efeitos na economia, tendo em vista que a educação é pilar relevante no desenvolvimento de um país; em sua essência jurídica tal contribuição se presta, precipuamente, a atender uma categoria econômica específica, qual seja a dos trabalhadores rurais".[12]
Um outro argumento lançado para defender a natureza jurídica de contribuição corporativa diz respeito à base de cálculo da contribuição ao Senar — receita bruta, desde 2001, e não folha de salários. Mister ressaltar que, "nos termos do artigo 195, I, da CF/88, o pagamento de salários e demais espécies de remuneração pelo trabalho somente pode sofrer a incidência de contribuição para a seguridade social". "Algumas contribuições corporativas, porém, incidem sobre a folha de salários, mas isso porque existe expressa ressalva da Constituição nesse sentido (CF/88, art. 240)."[13] De mais a mais, de bom alvitre pontuar que "alteração da base de cálculo da contribuição não tem o poder de alterar sua natureza jurídica".[14]
Seja qual for o posicionamento das ministras e dos ninistros que compõem o STF, premente venha tão logo ser externado. Caso seja sagrada vencedora a tese de que a contribuição destinada ao Senartem a natureza jurídica de contribuição social geral, devem as conselheiras e os conselheiros do Carf se curvar ao entendimento firmado em sede de repercussão geral, como determina a alínea "b" do inciso II do §1º do artigo 62 do Ricarf. Sentirá o Carf abrupta guinada em sua remansosa jurisprudência, mas ganhará a sociedade com a segurança trazida pela "palavra final" do "último intérprete".
*Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.
[1] “A Virtude Soberana: a Teoria e a Prática da Igualdade” é coletânea de artigos escritos por Ronald Dworkin, publicada no ano de 2000 pela Harvard University Press, dando início ao processo de elaboração e maturação de sua própria teoria de justiça — de cunho liberal-igualitário, sem desconsiderar laços comunitários, vínculos associativos, obrigações comunais, cultura, tradição.
[2] STF. RE nº 816830, Min. Rel. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2022, publicado em 24/04/2023.
[3] Malgrado tenha sido registrada a afirmação de que a contribuição devida ao SENAR estaria “voltada para uma contribuição social geral”, em outros excertos do acórdão fica evidenciado ser a questão controvertida. A Fazenda Nacional interpôs aclaratórios afirmando padecer o acórdão de contradição e obscuridade. Ao sentir da embargante a mácula teria como gênese a inserção na ementa de mero obter dictum acerca da natureza jurídica da contribuição destinada ao SENAR, objeto alheio ao apreciado no tema de nº 801 do STF.
[4] CARF. Acórdão nº 2301-003.242, Cons. Rel. LEONARDO HENRIQUE PIRES LOPES, Redator Designado Cons. WILSON ANTONIO DE SOUZA CORREA, sessão de 22 jan. 2013 [por maioria].
[5] O Min. EDSON FACHIN, na esteira do que consignado pelo Min. Rel. DIAS TOFFOLI, afirmou que “[a] propósito da natureza jurídica da contribuição ao SENAR entendo não tratar-se do que denominado de contribuição neo-corporativa, nem mesmo de Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE), mas, sim, de contribuição social geral, o que implica na observância necessária do disposto no artigo 149, § 2º, I, da Constituição Federal.” Cf. voto de declaração do Min. EDSON FACHIN em STF. RE nº 816830, Min. Rel. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2022, publicado em 24/04/2023.
[6] CARF. Acórdão nº 2301-003.242, Consª Rel.ª BERNADETE DE OLIVEIRA BARROS, Redator Designado Cons. MAURO JOSÉ SILVA, sessão de 23 jan. 2013 [por maioria].
[7] CARF. Acórdão nº 2301-004.198, Consª Rel.ª NATANAEL VIEIRA DOS SANTOS, sessão de 04 nov. 2014 [por maioria].
[8] CARF. Acórdão nº 2301-003.242, Consª Rel.ª BERNADETE DE OLIVEIRA BARROS, Redator Designado Cons. MAURO JOSÉ SILVA, sessão de 23 jan. 2013 [por maioria].
[9] Divergiram da natureza jurídica da contribuição ao SENAR atribuída pelo Min. Rel. DIAS TOFFOLI os Ministros ALEXANDRE DE MORAIS e GILMAR MENDES. Para ambos, a contribuição ao SENAR está inserida nas chamadas “contribuições corporativas” – isto é, contribuições criadas no interesse de categorias profissionais ou econômicas.
[10] Cf. os mais recentes acórdãos disponibilizados no repositório de jurisprudência da Corte Administrativa, todos em idêntico sentido: CARF. Acórdão nº 2201-10.532, Cons. Rel. DOUGLAS KAKAZU KUSHIYAMA, sessão de 6 abr. 2023 [unanimidade]; CARF. Acórdão nº 2402-010.858, Cons. Rel. GREGÓRIO RECHMANN JUNIOR, sessão de 8 nov. 2022 [unanimidade]; CARF. Acórdão nº 2402-010.002, Cons.ª Rel.ª ANA CLAUDIA BORGES DE OLIVEIRA, sessão de 7 jun. 2021 [unanimidade]; CARF. Acórdão nº 9202-009.529, Cons. Rel. MARCELO MILTON DA SILVA RISSO, sessão de 25 maio 2021 [unanimidade]
[11] CARF. Acórdão nº 9202-006.595, Cons.ª Rel.ª ANA CECÍLIA LUSTOSA DA CRUZ, sessão de 20 março 2018 [unanimidade].
[12] Idem.
[13] MACHADO SEGUNDO, Hugo de Brito. Manual de Direito Tributário. São Paulo: Atlas, 2019, p. 468.
[14] Cf. a declaração de voto vencido da Cons.ª ANA PAULA FERNANDES em CARF. Acórdão nº 9202-004.321, Cons. Rel. HEITOR DE SOUZA LIMA JUNIOR, sessão de 23 ago. 2016 [por maioria].
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!