Fábrica de Leis

Comissão de Comunicação e Direito Digital: publicidade e inteligibilidade das leis

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13 de junho de 2023, 9h23

No último dia 6 o Senado aprovou o PRS (projeto de resolução) nº 63 que promoveu alterações no regimento interno e criou a Comissão de Comunicação e Direito Digital (CCDD). No dia seguinte, o presidente da Casa, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG) promulgou a então Resolução nº 14, que no seu artigo 104-G dispõe sobre as competências da nova comissão permanente: inovação e desenvolvimento científico e tecnológico das comunicações; política nacional de comunicação; regime jurídico das comunicações; direito digital; meios de comunicação social e redes sociais; serviços postais e de comunicação, imprensa, radiodifusão, televisão, internet, outorga e renovação de concessão, permissão e autorização para serviços de radiodifusão sonora e de sons e imagens; regulamentação, controle e questões éticas referentes a comunicação; outros assuntos correlatos. Sua instalação terá lugar amanhã, 14 de junho.[1]

Como já dizia Fernando Pessoa, ao bem vocalizar um tipo de conhecimento que se apresenta no mundo das palavras, do qual, as leis e suas mensagens estranhamente cifradas também fazem parte: "Todo este universo é um livro em que cada um de nós é uma frase. Nenhum de nós, por si mesmo, faz mais que um pequeno sentido, ou uma parte de sentido; só no conjunto do que se diz se percebe o que cada um verdadeiramente quer dizer".

Spacca
Quando ele escreveu essas bem traçadas linhas, as promessas do big data não faziam parte do imaginário, todavia, conseguiu demonstrar como o contexto traz a compreensão de qual tipo de comunicação precisamos para as leis e os direitos, deveres, competências, faculdades, contidos em sua forma, por vezes não natural, de escrita.

A lei e suas manifestações ( e.g legislação infralegal e um conjunto quase infinito de nomes frutos de uma arbitrária criatividade das entidades que possuem o incrível poder da caneta) são veículos de comunicação de uma potente categoria de informações: aquelas que pretendem conformar a nossa conduta e que caso não sejam levadas à sério podem nos trazer consequências, na sua maior parte, ruins.

Mas não vamos nos esquecer do outro lado da moeda representado pelas sanções premiais, pelos nudges da economia comportamental, exemplos dos estranhos modos que o direito tem de nos persuadir para nos comportarmos de uma certa maneira.

A CCDD surge com status de comissão permanente a pretender regular, principalmente, o que se compreende como meio de comunicação, suas políticas, as consequências das inovações tecnológicas, questões de natureza ética e claro, o direito digital e toda a amplitude que comporta conceitos em formação e co-dependentes dos contexto e das aplicações da ciência. A comissão nasce no ambiente onde a publicidade das palavras possui um sentido obrigatório, sobretudo quando se dirige à toda a sociedade brasileira, às funções do estado, à aplicação do direito.

Em 1976, em artigo, lamentavelmente pouco conhecido, apesar de traduzido para o português, o magnífico Giovanni Tarello desfia, didaticamente, as doutrinas por detrás do movimento de codificação do direito no século 18 ( cujas estruturas permanecem vivas entre nós em tempos de Whatsapp, telegrama, discord e tantos outros com a criação continuada de gifs, emojis e emoticons a exibir a intrínseca necessidade humana em se fazer ouvido, entendido além de falar).

Tarello ao invocar as ideias de Puffendorf, Leibniz Wolff (que hoje dá nome a dezenas de institutos de pesquisa, inclusive na intercessão do Direito e da inteligência artificial) decifra o DNA do modo como o direito se expressou na codificação, por meio de proposições, com a escrita típica da filosofia dominante no século 16.

Sim, o direito hoje é ainda escrito como se fosse lido por pessoas versadas em filosofia com caracteres que só existem na linguagem escrita, tais como divisões em artigos, em números cardinais, romanos, e alíneas e parágrafos, além dos estragos provocados por vetos que deixam artigos sem cabeça, quer dizer, sem "caput".

Ao mesmo tempo em que os códigos permitiram, tal qual as leis, hoje, o a sistematização do conhecimento do estado contemporâneo da cultura jurídica, eles também se enredaram em concepções de publicidade que ainda são arcaicas entre nós. Hoje, assumidamente procuramos a versão eletrônica de leis e outros atos normativos, e sobretudo um maior entendimento sobre o que de fato está vigente.

Infelizmente nem toda a legislação divulgada, em rede, nos sites de governo possuem o mesmo nível de inteligibilidade na pesquisa, ninguém está em busca de "normas repristinadas", com "revogação tácita", por mais que essas categorias soem lindamente nos ouvidos dos seres jurídicos, porém elas nada dizem às pessoas que são por elas afetadas e que buscam compreender como podem, devem ou precisam agir.

Algumas iniciativas consagradas pelo uso reiterado, na busca por atos normativos merecem aplausos e poderiam inspirar outras iniciativas, como a pesquisa por atos normativos do Planalto (Casa Civil) e no Norma.Leg. Ambas permitem a busca eficiente por assunto e também a história das alterações dos atos normativos, para deleite dos seres jurídicos.

A CCDD no exercício das suas competências necessita densificar e/ou reforçar entendimentos legais pré existentes sobre o sentido contemporâneo da publicidade das leis em tempos de site oficiais e documentos nato-digitais. Curiosamente, uma lei complementar de 1998 já traz um sentido ainda pouco explorado a ser explorado pelas políticas de comunicação oficial de informações provenientes do estado, do tipo legislação.

A Lei Complementar 95/98 ( anterior, vigente face à alteração do Regimento do Senado objeto desse texto) traz uma mudança substantiva no modo como a publicidade costuma ainda ser referenciada como critério meramente formal: "Artigo 8o  A vigência da lei será indicada de forma expressa e de modo a contemplar prazo razoável para que dela se tenha amplo conhecimento, reservada a cláusula "entra em vigor na data de sua publicação" para as leis de pequena repercussão. Esse dispositivo traz o receptor/ouvinte da norma para o primeiro plano. Não basta somente publicar a data de  quando o ato normativo começa a produzir efeitos, mas que a categoria do efeito deva ser determinada, previamente".

Assim, um dever da maior relevância foi criado para o legislador, o gestor de projetos de legislação infralegal: orientar e definir o tempo para implementação de novas normas jurídicas, sobretudo quando as leis, tenham um elevado grau de mudança na realidade presente é uma questão de política de comunicação legislativa, mas também uma perspectiva ética a ser levada em conta pelo legislador.

A imensa discricionariedade da lei é assim equilibrada por meio de estratégias que favoreçam a capacidade dos indivíduos em fazerem escolhas, devidamente, informados. O nome disso é exercício da liberdade, protegida pelo artigo 5º da nossa Constituição.

Outra norma jurídica pré-existente ao nascimento da CCDD e que guarda uma íntima conexão com seus fins encontra-se na Lei de Acesso a Informação no seu artigo 5º. Se a legislação veicula informações sobre o como o estado brasileiro conforma realidades e comportamentos e as disponibiliza nos seus sites oficiais por meio de abas "Legislação", o sentido da normas é explícito: "é dever do Estado garantir o direito de acesso à informação, que será franqueada, mediante procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente, clara e em linguagem de fácil compreensão".

A Lei nº 13.460, de 26 de junho de 2017 ou "Código do Usuário do Serviço Público" fez remissão expressa à LAI e também no seu artigo 5º, nos incisos XIII e XIV dispõem sobre as diretrizes para a boa prestação do serviço público: aplicação de soluções tecnológicas que visem a simplificar processos e procedimentos de atendimento ao usuário e a propiciar melhores condições para o compartilhamento das informações, utilização de linguagem simples e compreensível, evitando o uso de siglas, jargões e estrangeirismos.

As informações produzidas e custodiadas pelo estado, em todas as suas manifestações e em todos os níveis da federação devem levar em conta, a facilitação do acesso e o compromisso com a sua inteligibilidade. Assim a política da linguagem simples chega para as leis que trazem informações que prescrevem e não somente descrevem fatos, atos, situações.

Os legislativos necessitam levar em conta esse conjunto de atos normativos que condicionam o modo como o processo legislativo deve considerar a comunicação oficial e inovar na linguagem da lei.

Curiosamente, o judiciário vem discutindo as questões relativas á linguagem simples enquanto o legislativo, apesar da linguística aplicada à linguagem do direito, à Legística formal ainda parece negar que as ações institucionais passariam por propostas de melhoria, inclusive tecnológica, das redações e seus instrumentos (incluindo manuais). As boas práticas em Plain Language[2] apontam diretrizes precisas para a linguagem cidadã que incrementam a inteligibilidade. A França teve como uma das suas ações na sua Política de Linguagem Simples, o lançamento de um tipo de Glossário[3].

Em 16/12/2022, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução A/77/L. 37 [1] pela linguagem/comunicação simples para a acessibilidade de pessoas com dificuldade de leitura. Em outubro de 2022 é publicada Portaria Conjunto nº 1391/PR/2022 que regulamentou o uso de linguagem simples e de direito visual no âmbito do Poder Judiciário de Minas Gerais. Na Bahia, o Decreto Judiciário nº 738,  25 de outubro de 2022, disciplinou o uso de Linguagem Simples. Por sua vez, a Prefeitura de São Paulo criou uma articulada política para a Linguagem Simples[4]

Finalmente, a iniciativa da Assembléia Legislativa de Minas Gerais  expressa na Resolução nº 5589, de 05/11/2021, que dispôs sobre o direcionamento estratégico da AL-MG para o período de 2021 a 2030. O documento que sinaliza o compromisso com a melhoria institucional sinaliza algumas ações dignas de nota. No anexo à resolução, as metas e ações são delineadas:  II – Objetivo: aperfeiçoar o processo de elaboração legislativa, de modo a promover o aprimoramento das leis estaduais, produzidas em sintonia com os interesses da sociedade. Uma das linhas de ação da meta é bastante clara:  "incrementar esforços para a utilização de linguagem que facilite a comunicação e a compreensão do processo e da produção legislativa pela sociedade". (Deliberação nº 2816, de 29/05/2023).

Assim, salientamos como diferentes órgãos, com perspectivas diversas projetam essa dimensão do parlamento do futuro por meio da promoção da inovação nos procedimentos inerentes ao processo de elaboração legislativa, imprimindo-lhes agilidade, coordenação e transparência; incrementar esforços para a utilização de linguagem que facilite a comunicação e a compreensão do processo e da produção legislativa pela sociedade.

Por fim, a nova CCDD deve levar em conta que qualquer mudança tecnológica deve perquirir sobre a ética das relações entre sociedade e seus legislativos. Afinal, todo regime autocrático não hesita em distorcer a informação e dirigir, sem princípios, o debate público. Bem vinda.

Autores

  • é professora do curso de graduação e do programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutora e mestre em Direito pela UFMG e coordenadora do Observatório para qualidade da Lei e do Legislab.

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