Controvérsias Jurídicas

Quebra da cadeia de custódia e a admissão da prova no processo penal

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

8 de junho de 2023, 8h00

Com o advento da Lei nº 13.964/19, algumas regras foram inseridas ao processo penal, no que tange à captação, conservação e descarte de vestígios materiais do crime. Conforme mostra o artigo 158-A, "caput", a, do CPP, a cadeia de custódia consiste "no conjunto de todos os procedimentos utilizados para manter e documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes, para rastrear sua posse e manuseio a partir de seu reconhecimento até o descarte".

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) a define como o "caminho que deve ser percorrido pela prova até sua análise pelo magistrado, sendo certo que qualquer interferência indevida durante esse trâmite processual pode resultar na sua imprestabilidade".

Obrigação inerente à atividade policial, a cadeia de custódia tem início com a preservação do local do crime. No momento em que tomar conhecimento de elemento essencial para a averiguação do ato delituoso, ficará o policial responsável pela preservação do local para que todos os elementos de prova sejam coletados.

Spacca
O artigo 158-B do CPP é explícito ao apontar as modalidades de cadeia de custódia, dentre as quais destacam-se: reconhecimento (ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção de prova pericial) — inciso I; isolamento (ato de evitar que se altere o estado das coisas, devendo isolar e preservar o ambiente imediato, mediato e relacionado aos vestígios e local do crime) — inciso II; fixação (descrição pormenorizada dos elementos encontrados no local ou no corpo de delito, consubstanciado em fotos, filmagens, desenhos ou mapas, sendo imprescindível sua descrição no laudo pericial realizado pelo perito) — inciso III; coleta (recolhimento do vestígio que será submetido à análise pericial, desde que respeitadas suas características e natureza) — inciso IV; acondicionamento (meio pelo qual cada vestígio coletado será embalado e individualizado, de acordo com suas características físicas, químicas e biológicas, com apontamento da data, hora, nome e local de seu recolhimento) — inciso V; transporte (meio de transferência dos vestígios coletados de um local para outro de forma adequada, respeitando-se as condições de temperatura, ventilação, embalagem e veículo, garantindo as características originais do objeto) — inciso VI; recebimento (ato de transferência documentada da posse do vestígio, com informações referentes ao número de procedimento e departamento policial a qual está relacionada, local de origem, nome do agente transportador, código de rastreamento, natureza do exame, tipo de vestígio, protocolo, assinatura e identificação de quem o recebeu) — inciso VII; processamento (exame pericial em si, manipulação do vestígio conforme a metodologia adequada às suas características biológicas , físicas e químicas, a fim de se obter o resultado desejado, que deverá ser formalizado em laudo produzido por perito) — inciso VIII; armazenamento (guarda adequada do material a ser processado, guardado para contraperícia, descarte ou transporte, vinculado ao número do laudo correspondente) — inciso IX e descarte (liberação do vestígio, desde que respeitada a legislação vigente, quando pertinente, depois de autorizado pelo juiz) — inciso X.

Demonstrando a relevância dos novos regramentos, em especial aos crimes previstos na Lei nº 11.343/06, Marcio André Lopes Cavalcante propõe a situação hipotética na qual um indivíduo foi preso em flagrante pelos crimes de tráfico de entorpecentes e associação para o tráfico (arts. 33 e 35 da Lei nº 11.343/06), tendo sido com ele apreendida determinada quantidade de cocaína e maconha. No decorrer da fase inquisitorial, foi apontado pelo perito no laudo prévio de constatação de entorpecentes, que o material analisado fora recebido em desacordo com sua embalagem, acondicionado em saco plástico para alimentos, fechado por um simples nó e sem nenhum tipo de lacre. Diante de tais fatos, a defesa do cidadão preso argumentou pela imprestabilidade da prova que constatava a ilicitude das substâncias apreendidas, uma vez que foram desrespeitados os preceitos constantes no artigo 158-D, caput, do CPP: O recipiente para acondicionamento do vestígio será determinado pela natureza do material.

§ 1º Todos os recipientes deverão ser selados com lacres, com numeração individualizada, de forma a garantir a inviolabilidade e a idoneidade do vestígio durante o transporte.
§ 2º O recipiente deverá individualizar o vestígio, preservar suas características, impedir contaminação e vazamento, ter grau de resistência adequado e espaço para registro de informações sobre seu conteúdo.
§ 3º O recipiente só poderá ser aberto pelo perito que vai proceder à análise e, motivadamente, por pessoa autorizada.
§ 4º Após cada rompimento de lacre, deve se fazer constar na ficha de acompanhamento de vestígio o nome e a matrícula do responsável, a data, o local, a finalidade, bem como as informações referentes ao novo lacre utilizado.
§ 5º O lacre rompido deverá ser acondicionado no interior do novo recipiente.

Diante da situação, há de se refletir acerca das consequências jurídicas, no âmbito processual penal, da quebra da cadeia de custódia (break on the chain of custody) ou do descumprimento formal dos regramentos constantes no Capítulo II, do Título VII, do Código de Processo Penal.

Parte da doutrina e da jurisprudência afirma que a consequência da quebra da cadeia de custódia é a ilicitude da prova, com sua exclusão dos autos, bem como das provas decorrentes. Por seu turno, entende o STJ que a quebra da cadeia de custódia, não necessariamente, leva à ilicitude da prova, devendo ser analisada a questão de acordo com o caso concreto.

Se por um lado o legislador ordinário foi extremamente detalhista ao descrever o modus operandi das etapas da cadeia de custódia, foi omisso no que tange às formas de descumprimento e suas consequências jurídicas para o processo. Na esteira do entendimento do STJ, Lopes Cavalcante argumenta que "respeitando aqueles que defendem a tese de que a violação da cadeia de custódia implica, de plano e por si só, a inadmissibilidade ou nulidade da prova, de modo a atrair as regras de exclusão da prova ilícita, parece ser mais adequada aquela posição que sustenta que as irregularidades constantes da cadeia de custódia devem ser sopesadas pelo magistrado com todos os elementos produzidos na instrução, assim de aferir se a prova é confiável".

Caso a prova pericial seja a única a sustentar a acusação, não havendo outros elementos de prova que demonstrem a culpa do indivíduo, o rompimento da cadeia de custódia poderá influir decisivamente em toda a higidez processual, situação que no entendimento de Leonardo Barreto Moreira Alves, deveria levar à improcedência da ação e absolvição do réu:

"É dizer, a quebra da cadeia de custódia não resulta, necessariamente, em prova ilícita ou ilegítima, interferindo apenas na valoração dessa prova pelo julgador. A irregularidade na cadeia de custódia reduzirá a credibilidade da prova, diminuirá o seu valor, passando-se a ser exigido do juiz um esforço justificativo caso entenda ser possível confiar na integridade e autenticidade da prova e resolva utilizá-la na formação de seu convencimento. Enfim, a quebra da cadeia de custódia não significa, de forma absoluta, a inutilidade da prova colhida. É preciso não se esquecer que a cadeia de custódia existe não para provar algo, mas para garantir uma maior segurança — dentro do possível — à colheita, ao armazenamento e à análise pericial da prova (…). Desta forma, a análise do elemento coletado e periciado, se houver quebra dos procedimentos de cadeia de custódia, interferirá apenas e tão somente na valoração dessa prova pelo julgador."

Por fim, corroborando com a tese encampada pelo STJ, o artigo 563 do CPP determina que não se proclamará nulidade caso não haja prejuízo concreto. Referência direta à máxima "pas de nulitté sans grief", o rompimento de cadeia de custódia acarreta em nulidade relativa dos vestígios coletados, devendo sua ilicitude ser arguida pela parte, que terá o ônus de demonstrar o prejuízo sofrido pelo não cumprimento da formalidade legal.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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