Reintegração de posse

Justiça Federal determina remoção de invasores de quilombo em Goiás

Autor

5 de junho de 2023, 18h37

Termina no dia 15 de junho o prazo que a Justiça Federal de Goiás deu para que o governo de Goiás, a União, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e a Fundação Cultural Palmares façam a reintegração de posse de todas as áreas invadidas no Território Quilombola Kalunga, no Parque Nacional da Chapada dos Veadeiros, em Goiás.

Fernando Stankuns/Flickr
A reintegração de posse pode ser feita com uso de força policial caso os invasores não desocupem o local voluntariamente, segundo a decisão. 

A decisão é do juiz Thadeu José Piragibe Afonso, da Subseção Judiciária de Formosa (GO). Ele deu dez dias para que os invasores saíssem voluntariamente da área composta por aproximadamente 260 mil hectares entre os municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre de Goiás. Em toda sua extensão, apenas cerca de 34 mil hectares já foram definitivamente titulados.

"Após o prazo acima fixado, não havendo desocupação voluntária, o cumprimento da reintegração de posse deverá ocorrer com a participação da União, do Estado de Goiás, do Incra e da Fundação Cultural Palmares, por meio de ações concertadas e coordenadas, no prazo de até 30 dias, sob pena de multa de R$ 10.000,00 (dez mil reais) por dia de descumprimento. Desde já, autorizo o uso de força policial, devendo ser oficiadas a Polícia Federal e a Polícia Militar do Estado de Goiás para que auxiliem no cumprimento da reintegração de posse", deferiu o juiz federal.

Há evidente risco na demora em toda a situação, descreve a ação judicial. "Como visto, no perigo de dano à subsistência da comunidade, seja pela inação do Poder Público, seja pela conduta dos invasores de terras quilombolas. Deveras, o cenário reflete invasão de particulares e mora e desinteresse generalizados do Poder Público, que reclamam a atuação do Poder Judiciário, sob pena de irrevogável condenação da Comunidade Kalunga ao desaparecimento gradual cada vez mais acelerado."

Aguardar o final do processo, segundo o magistrado, significaria injustificável adesão do Poder Judiciário "ao já robusto aparato de descaso com relação a uma população historicamente excluída e vulnerável, que, por si só, não possui condições de proteger, sozinha, a posse secular que detém sobre suas terras".

Também foi determinada a imediata realização de perícia de georreferenciamento para identificação e mapeamento dos esbulhos/invasões, bem como de seus autores, atualmente existentes dentro do Território Quilombola Kalunga, "quer aqueles praticados por não quilombolas estranhos ao Território, quer aqueles perpetrados por não quilombolas proprietários ou detentores de terras particulares não desapropriadas situadas no interior do Território".

Ação Civil Pública
A reintegração de posse é proveniente de uma ação civil pública com pedido de tutela provisória de urgência ajuizada pelo Ministério Público Federal em desfavor da União, governo de Goiás, Incra e Fundação Palmares e "pessoas incertas e ainda não identificadas". O objetivo é garantir à comunidade Kalunga a titulação definitiva de todas as terras que compõem o território, a integridade territorial e o direito dos integrantes de permanecerem na posse do território, além da preservação da dignidade, identidade e cultura dos integrantes da comunidade.

De acordo com a petição inicial, a Comunidade Quilombola Kalunga é reconhecida como sítio histórico e patrimônio cultural e certificada como remanescente de quilombo. Desde 20 de janeiro de 2009, a área teve os imóveis na área declarados de interesse social para fins de desapropriação.

A Justiça Federal chama a atenção para o fato de que "o Incra tem sido omisso na demarcação e titulação dos territórios quilombolas, justificando de modo irrazoável tal conduta, que viabiliza ocupações no TQK por indivíduos que não integram a comunidade, os quais, inclusive, ameaçam os Kalungas. Não bastasse, haveria indícios de que os esbulhadores provocam danos ambientais na região".

Há notícias da existência de ao menos 14 conflitos possessórios instalados e em andamento pertinentes a pessoas não quilombolas pretendendo fixar posse em glebas inseridas no TQK.

Essa ausência de titulação definitiva tem ocasionado o crescimento exponencial de conflitos fundiários envolvendo terras devolutas e particulares localizadas no perímetro do Sítio Kalunga, ainda que supostamente privadas, em decorrência do processo de grilagem que sabidamente impera na região.

Dada a extensão do TQK e à peculiar vulnerabilidade da população Kalunga, descreve o juiz federal em sua decisão, é "justificável a impossibilidade atual de se individualizar os invasores previamente à provocação do Poder Judiciário. Afinal, impor ao MPF, extrajudicialmente, a identificação de todos os esbulhadores seria como criar obstáculos desarrazoados à efetivação de direitos fundamentais, notadamente quando o Poder Judiciário está munido de mecanismos para viabilizar a medida. Inclusive, é o que admite o art. 319, § 1º, do CPC, fundamentado no princípio da cooperação".

História
O surgimento do Quilombo Kalunga está ligado à história da província de Goyazes, que foi explorada por bandeirantes que desbravaram a região e deram início à atividade aurífera, que tiveram o negro como principal fonte de mão de obra escrava. Os quilombos eram constituídos, inicialmente, por escravos fugidos e, posteriormente, por ex-escravos que procuravam terras para se abrigar após a decadência do ciclo do ouro e do advento da abolição da escravatura.

Teve início com a ocupação do local denominado Vão do Moleque. O termo "Vão" traduz a existência de um vale, um vão entre os morros e serras, onde correm os rios da região, constituindo lugar propício para se esconder de capitães do mato e manter uma agricultura de subsistência, além de favorecer a utilização de várias rotas de fuga, seja pelos cursos d'água ou pelos morros.

Com o passar do tempo, aponta a ação civil, as famílias — formadas basicamente por ex-escravos — foram se distribuindo pelas encostas e vales do Rio Paranã. Hoje, a comunidade Kalunga pode ser dividida em quatro agrupamentos principais: Vão do Moleque a noroeste, Vão de Almas, ao sul, Vão da Contenda a nordeste e Ribeirão dos Bois ao sudeste, nos municípios de Cavalcante, Teresinha de Goiás e Monte Alegre. Todos são formados por pequenos povoados como Contenda, Barra, Riachão, Sucuriú, Boa Sorte, Bom Jardim, Areia, São Pedro, Jataroba, Tarumã, Tinguizal, Caiçara, Lagoa, Terra Vermelha, Congonha, Altamira, Vargem, Ema, Taboca, Fazendinha, Maiadinha, Morro, Choco, Buriti Comprido, Córrego fundo, Vargem Grande, Borrachudo, Limoeiro, Sicuri, Ouro Fino, Brejão, Funil, Porcos, Prata, Alma, Diadema, Ribeirão dos Bois, Capela, Engenho II.

Segundo diversas pesquisas antropológicas, as comunidades quilombolas são circunscritas e estabelecem íntima relação territorial com a terra em que habitam. Dentro dessa perspectiva territorial, a posse da terra passa pelas várias gerações sem a adoção do procedimento formal de partilha, e sem que haja posse individualizada ou a propriedade como é reconhecida pela lei civil.

ACP 1002560-50.2021.4.01.3506

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!