Processo Tributário

Ação de consignação em pagamento tributária e depósito

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4 de junho de 2023, 8h00

A instrumentalidade do processo tributário, ponto de partida de todos os textos que compõem esta coluna do Processo Tributário Analítico, é especialmente constatada quando estamos diante da ação de consignação em pagamento, por se tratar de instrumento processual colocado à disposição do contribuinte para viabilizar a quitação do crédito tributário.

A necessidade de provocação judicial por essa específica ação, que consagra atitude corriqueira do dia a dia de um contribuinte — o pagamento — pode decorrer da recusa no recebimento do crédito tributário pela administração fazendária ou da dúvida para qual entre tributante pagar. Classificação essa construída a partir do disposto no artigo 164 [1] do Código Tributário Nacional, no qual são listados três incisos com as hipóteses de cabimento desse tipo de ação, resumíveis às duas classes referidas.

Situações muito peculiares dão ensejo ao manejo desse tipo de ação, ficando de fora a mera discussão acerca da exigibilidade do crédito tributário, ainda que a ação decorra do fato de mais de um ente tributante reputar-se competente para promover a exigência tributária, como ocorreu, por exemplo, na discussão acerca da exigência de ISS e/ou de ICMS sobre software, cuja questão foi recentemente solucionada pelo Supremo Tribunal Federal nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 5.659 e 1.945 [2].

Em muitos casos a fronteira entre uma situação que dá ensejo ao ajuizamento de uma ação consignatória ou uma ação declaratória/anulatória é muito tênue, em especial quando estamos diante de caso cuja demanda é motivada pela dúvida para qual ente tributante se deve pagar. Aspecto esse que não pode colocá-la como um instrumento processual de menor importância para a defesa dos interesses dos contribuintes.

Todavia, não pode ser perdido de vista que, independentemente da hipótese de cabimento consignatória, o seu uso se dá para a realização do pagamento, e não para discutir se o tributo é devido ou não.

Pode haver resistência ao recebimento do crédito tributário pelo ente tributante ou dúvida para quem pagar, mas não pode haver objeção sobre o dever de pagar, que, de fato, é pressuposto desse tipo de ação.

Não por outra razão que o artigo 164 do CTN determina que o crédito tributário objeto de discussão seja consignado, o que, em outras palavras, significa "depositado" no processo. Tal aspecto (o da necessidade do depósito) é confirmado ante o disposto no artigo 539 [3] do Código de Processo Civil de 2015 que outorga à quantia a ser consignada (depositada) nos autos o efeito de pagamento.

Duas conclusões podem ser obtidas da análise conjunta desses dispositivos legais do CTN e do CPC: (1) o depósito é condição para processamento da ação de consignação; e (2) sua finalidade é a de pagamento e não de suspensão da exigibilidade, ainda que esse efeito seja obtido imediatamente com a sua realização. Expliquemos.

Como se observa da redação do caput dos artigos 164 do CTN e 539 do CPC, aquele que ingressa com a ação de consignação deve consignar a quantia em discussão, o que se concretiza por meio do "depósito" judicial.

Embora os dispositivos utilizem o verbo "poder", em ambos os artigos a expressão não se refere à providência do depósito em si, mas às causas geradoras do direito de acionar o Judiciário para pagar, portanto, o verbo "poder" aponta para as hipóteses que justificam o cabimento da consignação por meio desse tipo de ação.

O que se está a afirmar é que, diante da necessidade de o contribuinte socorrer-se desse tipo de ação e sendo dela feito o uso, o depósito do valor controvertido é necessário. Neste sentido explicita Rodrigo Dalla Pria que "o depósito, portanto, perfaz, a um só tempo, pressuposto de procedimentalidade da demanda consignatória e fato jurídico extintivo da obrigação tributária" [4].

E essa obrigatoriedade do depósito em consignação é compreensível diante da pretensão do contribuinte quando utiliza esse instrumento processual, que é o pagamento.

No ambiente da processualidade tributária, a dúvida que surge é se o depósito efetuado nos autos da consignação em pagamento somente produzirá o sobredito efeito extintivo ou se, durante sua tramitação, ele (depósito) de alguma forma impacta a exigibilidade do crédito tributário. Pensamos que sim.

Embora o depósito tenha o objetivo de extinção do crédito tributário, não podemos nos desviar do fato de que a extinção não se dá de forma imediata, pois a instauração da ação enseja a observância de todo o iter processual até que haja sua procedência e o trânsito em julgado.

Desta forma, há que se reconhecer que, nesse ínterim, o depósito tem o condão de manter suspensa a exigibilidade do crédito tributário, nos termos do artigo 151, II do CTN, pois impede a cobrança do crédito tributário depositado — neste sentido já há inclusive orientação do Superior Tribunal de Justiça [5].

O artigo 540[6] do CPC também confirma esse efeito imediato suspensivo da exigibilidade ao dispor que a realização do depósito purga os feitos da mora, o que, em âmbito tributário, ainda que por outras palavras, equivale à suspensão da exigibilidade fundada no inciso II do artigo 151 do CTN.

Corrobora o entendimento aqui manifestado, Rodrigo Dalla Pria para quem "os efeitos da suspensão da exigibilidade do crédito tributário previstos no artigo 151, inciso II, do CTN também são ínsitos ao depósito do montante integral do débito realizado sob o pretexto do pagamento em consignação, efeitos estes que se converterão em extintivos quando do acolhimento da pretensão principal" [7].

Por essa razão, não podemos olvidar que, realizado o depósito do montante integral, suspensa restará a exigibilidade do crédito tributário e, em se tratando de consignação de crédito tributário relacionado a tributo de trato sucessivo, o depósito deverá se realizar de forma periódica, até que cesse a causa que motivou o ajuizamento da ação, ou transite em julgado a demanda.

Enfim, por tudo quanto aduzido, uma coisa é certa: sendo essa ação instrumento voltado ao pagamento, sem o depósito do valor do crédito tributário não há interesse para ação de consignação em matéria tributária, cujo destino, à ausência do depósito, será sua extinção sem julgamento de mérito.

 


[1] Art. 164. A importância de crédito tributário pode ser consignada judicialmente pelo sujeito passivo, nos casos:

I – de recusa de recebimento, ou subordinação deste ao pagamento de outro tributo ou de penalidade, ou ao cumprimento de obrigação acessória;

II – de subordinação do recebimento ao cumprimento de exigências administrativas sem fundamento legal;

III – de exigência, por mais de uma pessoa jurídica de direito público, de tributo idêntico sobre um mesmo fato gerador.

[2] Apenas para conhecimento do leitor e da leitora, nesses julgados do STF a conclusão sobre a tributação do software foi a seguinte: "(…) 6. Ação direta julgada parcialmente prejudicada, nos termos da fundamentação, e, quanto à parte subsistente, julgada procedente, dando-se ao art. 5º da Lei nº 6.763/75 e ao art. 1º, I e II, do Decreto nº 43.080/02, ambos do Estado de Minas Gerais, bem como ao art. 2º da Lei Complementar Federal nº 87/96, interpretação conforme à Constituição Federal, excluindo-se das hipóteses de incidência do ICMS o licenciamento ou a cessão de direito de uso de programas de computador, tal como previsto no subitem 1.05 da lista de serviços anexa à Lei Complementar nº 116/03". (ADI 5.659, relator(a): DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-096 DIVULG 19-05-2021 PUBLIC 20-05-2021)

"(…) 7. Ação direta não conhecida no tocante aos arts. 2º, § 3º; 16, § 2º; e 22, parágrafo único, da Lei nº 7.098/98 do Estado de Mato Grosso; julgada prejudicada em relação ao art. 3º, § 3º, da mesma lei; e, no mérito, julgada parcialmente procedente, declarando-se a inconstitucionalidade (i) das expressões “adesão, acesso, disponibilização, ativação, habilitação, assinatura” e “ainda que preparatórios”, constantes do art. 2º, § 2º, I, da Lei nº 7.098/98, com a redação dada pela Lei nº 9.226/09; (ii) da expressão “observados os demais critérios determinados pelo regulamento”, presente no art. 13, § 4º, da Lei nº 7.098/98; (iii) dos arts. 2º, § 1º, VI; e 6º, § 6º, da mesma lei." (ADI 1945, relator(a): CÁRMEN LÚCIA, Relator(a) p/ Acórdão: DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 24/02/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-096 DIVULG 19-05-2021 PUBLIC 20-05-2021)

[3] Art. 539. Nos casos previstos em lei, poderá o devedor ou terceiro requerer, com efeito de pagamento, a consignação da quantia ou da coisa devida.

[4] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Civil. 1ª Ed. São Paulo: Noeses, 2020, p. 304.

[5] A referência é ao recurso especial 1.040.603/MG, de relatoria do ministro Mauro Campbell Marques, julgado pela 2ª Turma em 9/6/2009 (DJe de 23/6/2009).

[6] Art. 540. Requerer-se-á a consignação no lugar do pagamento, cessando para o devedor, à data do depósito, os juros e os riscos, salvo se a demanda for julgada improcedente.

[7] DALLA PRIA, Rodrigo. Direito Processual Civil. 1ª Ed. São Paulo: Noeses, 2020, p. 304.

Autores

  • é advogada, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, mestranda em Direito Tributário pela FGV, professora do curso de extensão de Processo Tributário Analítico do Ibet e pesquisadora do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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