Opinião

Enunciado da Súmula 231 do Superior Tribunal de Justiça não deve ser revisto

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3 de junho de 2023, 9h11

No julgamento do REsp 1.869.764-MS, de relatoria do ministro Rogério Schietti, restou determinada a realização de uma audiência pública, nos termos do artigo 185, do Regimento Interno do STJ, com a finalidade de discutir a revisão da Súmula 231, que tem o seguinte enunciado: "A incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal".

A audiência pública ocorreu no último dia 17 de maio e sua realização está em sintonia com a norma prevista no artigo 927, § 2º, do CPC, o qual estabelece que "a alteração de tese jurídica adotada em enunciado de súmula ou em julgamento de casos repetitivos poderá ser precedida de audiências públicas e da participação de pessoas, órgãos ou entidades que possam contribuir para a rediscussão da tese".

Em que pese a louvável iniciativa na realização da primeira audiência pública da história do Superior Tribunal de Justiça, com o objetivo de democratizar o processo de tomada de decisões, cremos que a manutenção da regra trazida na Súmula 231 é medida que se impõe.

Inicialmente, convém anotar que a matéria já foi objeto de discussão junto ao Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento do RE 597.270/RS, em 26/3/2009, em sede de Repercussão Geral, quando foi fixada a tese de número 158: "circunstância atenuante genérica não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal". Nesse sentido, apesar de a Súmula 231 ser datada de 1999, o órgão responsável por ser o guardião da Constituição já se manifestou (e ainda não houve alteração desse entendimento no âmbito do STF) sobre a impossibilidade de que as circunstâncias atenuantes levem a pena para aquém do mínimo legal.

Vivemos sob a égide de um regime democrático de Direito, sustentado por uma Constituição Cidadã, que em seu artigo primeiro, parágrafo único, determina que "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente".

Ao afirmar no parágrafo primeiro (e não por acaso no parágrafo primeiro) que nossa democracia é regida pelo princípio da soberania popular, o constituinte deixou claro que as decisões do povo merecem ser respeitadas. Isso significa que as decisões do povo, tomadas a partir dos representantes eleitos, deverão ser observadas até que o Supremo Tribunal Federal, em sede de controle de constitucionalidade, afaste a validade da norma, ou mesmo que isso seja feito em sede de controle a partir do caso concreto.

Nesse sentido, a partir do momento em que o legislador fixa uma sanção penal com patamares mínimo e máximo, caberá ao aplicador na norma, que é o Poder Judiciário, respeitada a discricionariedade motivada do magistrado, aplicar a lei, com a fixação de uma pena dentro dos parâmetros pré-determinados.

Não é possível, assim, na segunda fase da dosimetria, a fixação de pena abaixo do mínimo legal, assim como não é possível a fixação da pena acima do máximo estabelecido no preceito normativo.

Lembramos que o artigo 65, do Código Penal, traz as "circunstâncias que sempre atenuam a pena". De igual sorte, o artigo 61 traz as "circunstâncias que sempre agravam a pena". Seja para atenuar ou para agravar, o magistrado não poderá se afastar dos limites mínimos ou máximos, sob pena de violação ao princípio da legalidade.

Entendemos, assim, que esse "sempre" deve ser contido pelos próprios limites mínimos e máximos trazidos no preceito incriminador, em sintonia com a Súmula 231.

A jurisprudência do próprio Superior Tribunal de Justiça é no sentido de afirmar que a fixação de pena abaixo do mínimo legal viola o princípio da legalidade. Recentemente, decidiu o STJ que "A jurisprudência e a doutrina pátrias têm o entendimento que o Magistrado, na segunda fase de aplicação da pena, não pode aplicar redução abaixo do limite mínimo previsto para a terceira fase da dosimetria, qual seja, 1/6 (um sexto), a não ser que o faça fundamentadamente, indicando elementos concretos constantes dos autos, a justificar a necessidade de uma menor redução, respeitada sempre a vedação à diminuição da pena abaixo do mínimo legal, nos termos da Súmula n. 231 do STJ" (STJ; AgRg-AREsp 2.249.146; Proc. 2022/0360429-0; PA; 5ª Turma; rel. min. Ribeiro Dantas; Julg. 25/4/2023; DJE 28/4/2023).

Há no STJ diversas decisões no mesmo sentido: STJ; AgRg-HC 799.160; Proc. 2023/0023292-1; PE; 5ª Turma; rel. min. Ribeiro Dantas; DJE 24/04/2023; STJ; AgRg-REsp 2.013.585; Proc. 2022/0214629-9; SC; 6ª Turma; rel. min. Antonio Saldanha Palheiro; DJE 30/3/2023; STJ; AgRg-HC 639.536; Proc. 2021/0007901-8; PB; 6ª Turma; relª min. Laurita Vaz; DJE 29/3/2023; STJ; AgRg-AREsp 2.086.420; Proc. 2022/0071865-7; SP; 6ª Turma; rel. min. Rogério Schietti Cruz; DJE 21/9/2022; STJ; AgRg-AREsp 1.860.431; Proc. 2021/0085998-5; SP; 6ª Turma; relª Min. Laurita Vaz; julg. 2/8/2022; DJE 12/8/2022.

No Supremo Tribunal Federal o entendimento não é diferente, conforme se percebe nos julgados a seguir: STF; HC-AgR 216.800; SP; 1ª Turma; relª min. Rosa Weber; DJE 25/8/2022; Pág. 60; STF; HC-AgR 214.391; SP; 1ª Turma; relª min. Cármen Lúcia; DJE 18/5/2022; Pág. 29; STF; HC-AgR 216.844; SP; 1ª Turma; rel. min. Dias Toffoli; DJE 17/10/2022; Pág. 42; STF; HC-RO-AgR 199.333; SP; 2ª Turma; rel. min. Edson Fachin; DJE 19/11/2021; Pág. 41.

É importante anotar que a fixação de pena abaixo do mínimo ou acima do máximo previsto na lei terá o condão de igualmente ferir o princípio da segurança jurídica ao conferir poderes ilimitados ao magistrado, com a clara possibilidade de aplicação de "pena zero".

Quando alguém comete um crime precisa saber quais serão os patamares mínimo e máximo de sua sanção penal. A ideia de revogação da Súmula 231 afasta esse "sentimento de certeza", causando inegável risco de ofensa a uma das funções mais relevantes da pena, que é a prevenção geral. Noutro sentido, aquele que foi vítima desse mesmo crime (e aqui é importante salientar que a sociedade, de forma mediata, é vítima em todos os delitos) precisa ter a certeza e a segurança de que o infrator receberá uma reprimenda nos moldes e nos limites estabelecidos pelo preceito legal incriminador.

A fixação da pena abaixo do mínimo legal, além de conferir ofensa ao princípio da legalidade, é fator que se afasta do lógico. O argumento legal, a confiança nas instituições e a legitimidade dos comandos dados nas sentenças penais sofrerão um ataque frontal. O princípio da legalidade se tornará ineficaz, violando a premissa de que todo poder emana do povo, por meio dos seus representantes. Como consequência, a credibilidade do sistema de justiça será abalada.

Não há como negar que a superação da Súmula 231 fará com que o Estado ofereça à sociedade uma proteção deficiente em matéria de segurança pública.

Os defensores da revogação da Súmula 231 focam os olhares tão somente naqueles que cometem o crime, deixando de lado as vítimas e as sequelas, por vezes insuperáveis, provocadas pelas condutas delitivas. Para quem comete um roubo mediante o uso de arma de fogo, trata-se apenas de mais "um dia de trabalho". De outra sorte, quem saiu de casa para trabalhar e, no ponto de ônibus, foi vítima desse crime e teve uma pistola apontada para a sua cabeça, para que seu telefone celular (comprado em doze prestações ainda não quitadas) fosse roubado, merece receber uma proteção eficiente do Estado.

Razões de política criminal ou de eventual busca de redução de população carcerária não podem ser fundamento para a superação de um entendimento jurisprudencial que guarda sintonia com a realidade.

Há que se mencionar que o cancelamento da Súmula 231 igualmente poderá levar a um raciocínio contrário e permitir a fixação de pena acima do máximo legal, em razão do mesmo "sempre" previsto no artigo 61, do Código Penal. Assim, se o "sempre" das atenuantes poderia levar à redução da pena para abaixo do mínimo, não haveria impedimento para que o "sempre" das agravantes levasse a pena para patamar superior ao máximo, devendo ser pontuado que o princípio do in dubio pro reo ou favor rei, conforme sustentado por alguns, não teria o condão de impedir esse raciocínio lógico, que independeria de qualquer esforço interpretativo.

Outro frágil argumento utilizado em favor da revogação da Súmula 231 guarda relação com a individualização da pena, de forma que réus com condições pessoais diferentes e que cometeram delitos com diferente gravidade acabariam recebendo igual pena. O artigo 59, do Código Penal, mostra que isso não é verdade. No momento da dosimetria o magistrado deverá analisar a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e as consequências do crime para a fixação motivada da reprimenda, em claro respeito ao princípio da individualização da pena.

Novamente enaltecemos a realização da audiência pública, a primeira da história do STJ. Trata-se de medida republicana voltada a superar a verticalização que existe em nosso sistema de justiça, mediante a busca de um resultado a partir de um processo decisório horizontalizado. Contudo, cremos que a manutenção da Súmula 231 é medida necessária para resguardar a segurança jurídica e a própria credibilidade do Poder Judiciário.

Não podemos fechar os olhos para a realidade que nos cerca. E, como disse uma vez o jurista francês Georges Ripert, professor e reitor da Faculdade de Direito de Paris: "Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o direito".

Autores

  • é doutor e mestre em Estado de Derecho y Gobernanza Global (Universidad de Salamanca, Espanha) e promotor de Justiça no estado do Espírito Santo.

  • é doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global (Universidad de Salamanca, Espanha); mestre em Direitos e Garantias Fundamentais (Faculdade de Direito de Vitória – FDV); especialista em Combate ao Crime Organizado, Corrupção e Terrorismo (Universidad de Salamanca, Espanha); especialista em Direito Público (Universidade Gama Filho), instrutor do Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD), membro associado do IDASAN –Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro, autor de obras jurídicas e promotor de Justiça no Espírito Santo.

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