Ambiente Jurídico

Salvaguarda penal do patrimônio cultural imaterial brasileiro

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

3 de junho de 2023, 8h00

A Constituição de 1988 assentou os fundamentos primários para a proteção do patrimônio cultural imaterial brasileiro ao prever, no artigo 216, que constituem patrimônio cultural os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem, entre outros, as formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver (que também são chamados bens culturais incorpóreos ou intangíveis).

Em âmbito internacional, a Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em sua 32ª sessão, realizada em Paris do dia 29 de setembro ao dia 17 de outubro de 2003, aprovou a Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial, conceituando-o como as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas  junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados — que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.

Ainda segundo a Convenção, o patrimônio cultural imaterial  se manifesta de forma particular nos seguintes campos: a) tradições e expressões orais, incluindo o idioma como veículo do patrimônio cultural imaterial; b) expressões artísticas; c) práticas sociais, rituais e atos festivos; d) conhecimentos e práticas relacionados à natureza e ao universo; e) técnicas artesanais tradicionais.

O documento internacional acima referido, que foi internalizado ao ordenamento jurídico brasileiro por meio do Decreto nº 5.753/2006, prevê que cada Estado Parte fica obrigado a adotar as medidas necessárias para garantir a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial presente em seu território, incluindo a identificação e a definição dos diversos elementos que o integram, com a participação das comunidades, grupos e organizações não-governamentais pertinentes (artigo  2, III e artigo 11).

No que tange à identificação e proteção dos bens culturais imateriais, o Brasil instituiu, de forma pioneira, por meio do  Decreto 3.551/2000,  o registro de bens culturais de natureza imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, que pode ser efetivado mediante inscrição em um dos quatro livros, quais sejam: I – Livro de Registro dos Saberes, onde serão inscritos conhecimentos e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades; II – Livro de Registro das Celebrações, onde serão inscritos rituais e festas que marcam a vivência coletiva do trabalho, da religiosidade, do entretenimento e de outras práticas da vida social; III – Livro de Registro das Formas de Expressão, onde serão inscritas manifestações literárias, musicais, plásticas, cênicas e lúdicas; IV – Livro de Registro dos Lugares, onde serão inscritos mercados, feiras, santuários, praças e demais espaços onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas.

Entretanto, segundo pensamos, as medidas de salvaguarda passíveis de serem utilizadas em benefício do patrimônio cultural imaterial em nosso país não se resumem ao instrumento do registro, de natureza administrativa. Com efeito, temos ainda a possibilidade da proteção a  ser efetivada  por meio de lei ou judicialmente, em âmbito cível, por ação popular ou ação civil pública. Não bastasse,  o direito penal também pode contribuir para prevenir e sancionar condutas que atentem contra o patrimônio  cultural imaterial brasileiro, enquanto bem jurídico constitucionalmente protegido.

Conquanto não tenhamos tipos penais específicos acautelando o patrimônio cultural imaterial no âmbito da Seção IV da chamada Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98), que trata dos crimes contra o patrimônio cultural e o ordenamento urbanístico, há previsões incriminadoras dispersas no ordenamento jurídico brasileiro que podem ser utilizadas como instrumentos de reforço à tutela dos bens culturais imateriais, seja sob a ótica da prevenção de condutas lesivas a tal bem jurídico, seja pelo sancionamento daqueles que violam referidas normas penais.

No que diz respeito à cultura indígena, por exemplo, o Estatuto do Índio (Lei nº 6.001/73)  traz um tipo penal pouco conhecido, mas que protege de forma específica o patrimônio cultural imaterial dos povos originários.

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Com efeito, depois de estabelecer que cumpre  à União, aos Estados e aos Municípios, a proteção das comunidades indígenas e a preservação dos seus direitos, incluindo o respeito à coesão das comunidades indígenas e os seus valores culturais, tradições, usos, costumes e meios de expressão (artigo 2º, VI e 47), o Estatuto do Índio tipifica:

"Artigo 58. Constituem crimes contra os índios e a cultura indígena:
I – escarnecer de cerimônia, rito, uso, costume ou tradição culturais indígenas, vilipendiá-los ou perturbar, de qualquer modo, a sua prática.

Pena – detenção de um a três meses;
Parágrafo único. As penas estatuídas neste artigo são agravadas de um terço, quando o crime for praticado por funcionário ou empregado do órgão de assistência ao índio.
Artigo 59. No caso de crime contra a pessoa, o patrimônio ou os costumes, em que o ofendido seja índio não integrado ou comunidade indígena, a pena será agravada de um terço."

Encontraria adequação típica ao dispositivo acima transcrito, por exemplo, a conduta daquele que escarnecesse (troçasse, zombasse em público), vilipendiasse (tratasse com desprezo, desdém, de modo ultrajante) ou perturbasse (embaraçasse, dificultasse) a atividade de pintura corporal desenvolvida pelos índios Wajapi, no Amapá,  registrada como patrimônio cultural imaterial pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2002, e reconhecida como obra-prima do Patrimônio Mundial Cultural Imaterial da Humanidade, pela Unesco, em 2003, consistente na feitura, sobre a pele, de composições de padrões Kusiwa nas costas, face e braços, mediante uso da tinta vermelha do urucum, do suco do jenipapo verde e de resinas perfumadas.

Apesar da sanção penal  prevista no artigo 58 do Estatuto do Índio ser, a nosso sentir, demasiadamente baixa, é de se reconhecer que se trata de tipo penal específico sobre a tutela do patrimônio cultural imaterial em nosso país, afastando a tradicional e infundada retórica segundo a qual  não há qualquer proteção penal aos bens culturais imateriais no Brasil.

No âmbito do Código Penal também encontramos tipos penais que podem contribuir para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial brasileiro.

Um deles é o crime de ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo, assim previsto no artigo 208:

"Artigo 208 – Escarnecer de alguém publicamente, por motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso:
Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência."

O tipo penal tutela diretamente a liberdade do exercício dos cultos religiosos e a proteção aos locais de culto e a suas liturgias, complementando o artigo 5º, VI, da Constituição da República.  Ocorre que, não raras vezes, as manifestações religiosas também constituem patrimônio cultural imaterial do povo brasileiro, a exemplo de tradicionais procissões, cortejos, celebrações, cerimônias, cultos e rituais, açambarcando não somente os cristãos ou católicos, mas também os de outras matrizes, a exemplo da africana [1].

Se a prática delitiva descrita acima ocorrer em detrimento de cerimônias ou cultos indígenas, pelo princípio da especialidade aplica-se o artigo 58 do Estatuto do Índio, com pena mais reduzida, registre-se.

Em tese, encontraria adequação típica ao crime do artigo 208 do Código Penal Brasileiro, por exemplo,  a conduta daquele que impedisse o  processo de colorir e enfeitar ruas na festa sagrada do Corpus Christi, perturbando o desenrolar tradicional e multissecular das procissões religiosas  realizadas em tal data nas cidades coloniais de Minas Gerais, eventos marcados pela troca de saberes sobre o processo da feitura tapetes, gestualidades próprias para execução dos desenhos das diferentes simbologias, com efeitos estéticos decorrentes da combinação de cores, materiais e formas [2].

No campo da  aplicação prática do tipo penal acima, encontramos registro na jurisprudência da condenação de um homem que, em cidade do interior do Paraná, proferiu ofensas verbais contra os participantes e atirou pedras na "Casa de Umbanda Guerreiros do Oxalá",  perturbando o culto de matriz africana que ali se realizava [3].

Outro tipo previsto no Código Penal diz respeito ao impedimento ou perturbação de cerimônia funerária, assim previsto no artigo 209:

"Artigo 209 – Impedir ou perturbar enterro ou cerimônia funerária:
Pena – detenção, de um mês a um ano, ou multa.
Parágrafo único – Se há emprego de violência, a pena é aumentada de um terço, sem prejuízo da correspondente à violência."

O crime tutela o respeito aos mortos e abrange não somente o sepultamento, mas qualquer tipo de cerimônia funerária, a exemplo de velório, encomendação de alma, cremação etc. Não havendo disposição símile no Estatuto do Índio, entendemos que se aplica o artigo 209 do Código Penal inclusive em relação a enterros e cerimônias funerárias próprias da cultura indígena.

Um último tipo previsto no Código Penal e que pode auxiliar na salvaguarda de bens culturais imateriais protegidos é o previsto no art. 197, que trata do atentado contra a liberdade de trabalho nos seguintes termos:

"Artigo 197 – Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça:
I – a exercer ou não exercer arte, ofício, profissão ou indústria, ou a trabalhar ou não trabalhar durante certo período ou em determinados dias:
Pena – detenção, de um mês a um ano, e multa, além da pena correspondente à violência;".

A conduta daquele que, com violência ou grave ameaça, obrigasse um mestre tradicional de capoeira a se abster de exercer livremente a sua arte e ofício de professor de tal manifestação artística e desportiva, protegida pelos artigos 20 a 22 da Lei 12.288/2010 e registrada como patrimônio cultural em âmbito nacional e internacional, em tese encontraria adequação típica no preceito acima [4].

Por derradeiro,  abordagem que nos parece interessante diz respeito à proteção penal conferida ao hino nacional brasileiro, composto no século XIX por Francisco Manuel da Silva, considerado pela Constituição Federal, em seu artigo 13, §1º, como símbolo da República Federativa do Brasil.

O hino nacional seria um patrimônio cultural imaterial brasileiro ?

Levando em consideração a sua trajetória histórica (a sociedade brasileira repudiou a sua substituição quando do advento da República), bem como o fato dele exaltar fatos e particularidades de nossa Nação, representando-a como símbolo há quase dois séculos,  entendemos que sim, ele integra o patrimônio cultural imaterial do país.

A fim de proteger o respeito à execução do hino e a manutenção de sua originalidade musical, a Lei 7.700, de 1º de setembro de 1971, estabelece:

"Artigo 6º O Hino Nacional é composto da música de Francisco Manoel da Silva e do poema de Joaquim Osório Duque Estrada, de acordo com o que dispõem os Decretos nº 171, de 20 de janeiro de 1890, e nº 15.671, de 6 de setembro de 1922, conforme consta dos Anexos números 3, 4, 5, 6, e 7.
Parágrafo único. A marcha batida, de autoria do mestre de música Antão Fernandes, integrará as instrumentações de orquestra e banda, nos casos de execução do Hino Nacional, mencionados no inciso I do artigo 25 desta lei, devendo ser mantida e adotada a adaptação vocal, em fá maior, do maestro Alberto Nepomuceno.

Artigo 30. Nas cerimônias de hasteamento ou arriamento, nas ocasiões em que a Bandeira se apresentar em marcha ou cortejo, assim como durante a execução do Hino Nacional, todos devem tomar atitude de respeito, de pé e em silêncio, o civis do sexo masculino com a cabeça descoberta e os militares em continência, segundo os regulamentos das respectivas corporações.

Artigo 34. É vedada a execução de quaisquer arranjos vocais do Hino Nacional, a não ser o de Alberto Nepomuceno; igualmente não será permitida a execução de arranjos artísticos instrumentais do Hino Nacional que não sejam autorizados pelo presidente da República, ouvido o Ministério da Educação e Cultura."

Como instrumento de penalização àqueles que descumprirem a lei, é previsto no artigo 35 que a violação aos seus comandos é considerada contravenção penal, sujeitando o infrator à pena de multa de uma a quatro vezes o maior valor de referência vigente no País, elevada ao dobro nos casos de reincidência.

Enfim, apesar das evidentes limitações, temos no ordenamento jurídico brasileiro dispositivos penais que podem ser utilizados como instrumentos de salvaguarda (em seu sentido lato) do instigante e desafiador patrimônio cultural imaterial. Conhecê-los, estuda-los e aplicá-los é medida de reforço à proteção dos bens culturais brasileiros, em especial porque nossa Carta Magna estatui em seu artigo 216, §4º que os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.

Eventuais avanços e aperfeiçoamentos em tal seara podem  ser feitos a partir da análise criteriosa dos tipos penais ora vigentes e acima sucintamente analisados.

 


[1] O artigo 24 da Lei  12.288/2010 assegura o direito à liberdade de consciência e de crença e ao livre exercício dos cultos religiosos de matriz africana, incluindo  a celebração de festividades e cerimônias de acordo com preceitos das respectivas religiões.

[2] MOREIRA, Frederico Luiz. SIMAN, Lana Mara de Castro. Festa, patrimônio vivo: reflexões sobre educação na feitura de tapetes do Corpus Christi.  Revista Memória em Rede, Pelotas, v. 12, nº 22, Jan/Jun.2020 (ISSN)  2177-4129. periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/Memoria.

[3] TJPR; ACr 0001139-07.2018.8.16.0043; Antonina; Segunda Câmara Criminal; relator desembargador José Maurício Pinto de Almeida; Julg. 23/08/2021; DJPR 27/08/2021.

[4] Sobre o tema: ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE EDUCAÇÃO FÍSICA. EXIGÊNCIA DE REGISTRO DE INSTRUTOR DE CAPOEIRA, MACULELE, FREVO E DEMAIS DANÇAS TÍPICAS BRASILEIRAS. NÃO OBRIGATORIEDADE. 1- O E. Tribunal Regional Federal da Terceira Região assentou entendimento no sentido de não ser obrigatório a Inscrição dos profissionais de dança e artes marciais no Conselho Regional de Educação Física. 2. Apelação a que se nega provimento. (TRF 3ª R.; AC 0021777-50.2003.4.03.6100; SP; Sexta Turma; relator juiz federal Conv. Ricardo China; Julg. 17/02/2011; DEJF 04/03/2011; Pág. 1592).

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