Opinião

BNMP, CNJ e o direito a certidões

Autores

  • Pedro Machado de Almeida Castro

    é advogado em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).

  • Thainá Rodrigues Leite

    é advogada criminalista em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados pós-graduanda em Penal e Processo Penal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional e membra das comissões de Direitos Humanos e de Ciências Criminais da OAB-DF.

2 de junho de 2023, 18h27

Uma pessoa é presa preventivamente sob o fundamento genérico de estar foragida, fundamento esse desacompanhado de qualquer prova concreta. Não se diz as questões mais básicas de "como", "quando", "por ordem de quem" ou mesmo "em qual processo" ela teria sido considerada foragida. Sem dúvida, os mais garantistas podem achar o exemplo completamente extraordinário, porém a lida cotidiana nos mostra que isso não está nada longe da realidade.

Caso adicionemos no contexto acusações por tráfico de drogas e organização criminosa, não é demais imaginar que as tintas do Ministério Público, mesmo sem maiores especificações, têm um peso diferenciado para a autoridade judicial. Desta feita, só resta ao preso e a sua defesa uma única forma de contrapor a prisão para, assim, comprovar não ser um fugitivo: recorrer ao Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP) do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Considerações iniciais sobre o dever de emissão de certidões
Segundo o Conselho Nacional de Justiça, a emissão de certidões para realizar a defesa de direitos, nos termos do artigo 5º, inciso XXXIV, alínea "b", da CRFB/1988, é dever único e exclusivo do Judiciário, uma vez que a competência desse Órgão estaria restrita ao âmbito administrativo do Poder Judiciário.

Nesse cenário, o CNJ entende que quaisquer esclarecimentos constantes no BNMP devem ser solicitados ao órgão judiciário responsável pela inserção das informações no sistema, nos termos do artigo 3º, §2º, da Resolução nº 417/2021. Contudo, algumas elucidações precisam ser feitas sobre esse ponto. 

A Resolução nº 417/2021, em seu artigo 1º, instituiu "o Banco Nacional de Medidas Penais e Prisões (BNMP 3.0) como banco de dados mantido pelo Conselho Nacional de Justiça, com o fim de geração, tramitação, cumprimento e armazenamento de documentos e informações relativas a ordens judiciais referentes à imposição de medidas cautelares, medidas protetivas, alternativas penais, condenações e restrições de liberdade de locomoção das pessoas naturais". De fato, o BNMP 3.0 depende do lançamento de dados em seu sistema, o que deve ser feito pelo Judiciário e suas respectivas secretarias, em todas as instâncias e tribunais (artigo 1º, §1º, da Resolução nº 417/2021).

No momento em que as varas e os tribunais inserem informações sobre determinada pessoa no sistema, cabe ao supramencionado Órgão registrar e armazenar todo o material recebido (informações e documentos), de modo a facilitar o amplo acesso àqueles dados, não só por instituições públicas como também por particulares, especialmente pela pessoa que teve o seu nome cadastrado no BNMP.

 Embora seja dever do Judiciário alimentar o BNMP com todas as informações necessárias, desde o nome da pessoa até a data de expedição do mandado e respectivo cumprimento, o armazenamento não é obrigação das autoridades judiciárias, mas, sim, do CNJ. Isso porque, quando o banco recebe todos os documentos encaminhados pelas varas e tribunais, ele passa a ser responsável por resguardá-los, administrá-los e mantê-los em seu sistema.

Como se sabe, o CNJ é uma instituição pública que busca aprimorar o funcionamento do Judiciário brasileiro, sobretudo no que diz respeito ao controle e à transparência administrativa e processual [1]. Assim, todos os órgãos que o compõem compactuam com o mesmo objetivo. Se a Lei nº 12.403/2011 determinou a criação de um banco de dados para registro dos mandados de prisão pelo CNJ, então, certamente, a instituição tem acesso a todas as datas e horários de expedição dos mandados, dias em que foram cumpridos, bem como se há algum em aberto, pendente de cumprimento, ou se a pessoa procurada já esteve em algum momento foragida.

Ademais, a possibilidade de compartilhamento de dados entre as instituições públicas facilita o trânsito de informações para a melhoria do sistema e, consequentemente, o seu enriquecimento. Se tais elementos transitam entre as instituições, não há por que impedir o particular, alvo das medidas, de acessá-los. Nessa interpretação adotada pelo CNJ, se o Ministério Público utiliza como argumento de acusação  para manter eventual cautelar  que a pessoa investigada já foi considerada foragida no passado, sem apontar, no entanto, qual autoridade judiciária teria chegado a essa conclusão, o exercício do contraditório é, por óbvio, prejudicado.

Isso porque se não se sabe de onde partiu eventual mandado pendente de cumprimento, então não há como identificar qual seria a vara estadual ou federal responsável por emitir a certidão almejada. Para tanto, a única possibilidade seria peticionar em todas as primeiras instâncias do país, o que é completamente inviável quando se tem um órgão específico para registrar e armazenar as informações pretendidas.

A título de exemplo, as certidões criminais de "nada consta" emitidas pelos tribunais não possuem essa informação, pois são genéricas e somente apontam a existência ou não de processos criminais contra o solicitante. Nesse sentido, o artigo 7º da Resolução n.º 121/2010 do CNJ dispõe sobre quais dados devem estar descritos nas referidas Certidões:

"Artigo 7º. A certidão judicial deverá conter, em relação à pessoa a respeito da qual se certifica:
I – nome completo;
II – o número do cadastro de contribuinte no Ministério da Fazenda;
III – se pessoa natural:
a) nacionalidade;
b) estado civil;
c) números dos documentos de identidade e dos respectivos órgãos expedidores;
d) filiação; e
d) o endereço residencial ou domiciliar.
IV – se pessoa jurídica ou assemelhada, endereço da sede; e
V – a relação dos feitos distribuídos em tramitação contendo os números, suas classes e os juízos da tramitação originária."

Desse modo, tendo em vista que a Resolução nº 417/2021 foi editada com base na necessidade de sistematizar, consolidar e integrar as informações sobre as pessoas presas no território nacional, não há como alegar que o CNJ não possuiria dados suficientes para apontar se determinada pessoa já foi declarada foragida por alguma autoridade judicial. Para estes autores, o entendimento firmado por esse órgão viola expressamente o direito fundamental de acesso à informação previsto no artigo 5º, inciso XXXIII, da CRFB/1988.

Direito fundamental de acesso a certidões
Além do acesso à informação, obter certidões em repartições públicas para a defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal também é um direito fundamental previsto na Constituição (artigo 5º, inciso XXXIV, alínea "b").

A expedição de certidão é garantia constitucional de natureza individual, quando destinada à proteção de direitos e elucidação de questões pessoais do requerente. O Estado tem o dever de apresentar as informações solicitadas, sob pena de ofender direito líquido e certo do solicitante, por ilegalidade ou abuso de poder, sanável apenas pela via do mandado de segurança [2].

No momento em que o solicitante requer aos órgãos da administração centralizada ou autárquica, às empresas públicas, às sociedades de economia mista e/ou às fundações públicas da União, estados, Distrito Federal e municípios a emissão de certidão para evidenciar um direito que está a seu favor, pois não há outra forma de comprová-lo, exceto por meio de documento apresentado por essas instituições, então passa a ser uma obrigação constitucional o seu fornecimento.

Para o CNJ, emitir certidões para particulares não seria sua competência, tendo em vista que não há essa previsão no rol do artigo 103-B, §4º, da CRFB/1988. Todavia, conforme apontado, trata-se de um direito fundamental obter determinada certidão para se defender de falsas acusações, então mesmo que essa competência não esteja expressa no artigo 103-B está no artigo 5º da Constituição.

De acordo com a jurisprudência do STF (Supremo Tribunal Federal), a possibilidade de obter certidões em repartições públicas é uma garantia trazida pela Constituição a todos os cidadãos brasileiros, de modo que possam defender os seus direitos ou esclarecer determinadas situações, independentemente de regulamentação legal:

"EMENTA Ação direta de inconstitucionalidade. Lei Federal nº 9.289/96. Tabela IV. Cobrança de custas pela expedição de certidões pela Justiça Federal de primeiro e segundo graus. Direito de gratuidade de certidões (artigo 5º, inciso XXXIV, alínea b, da CF/88). Imunidade tributária. Garantia fundamental dotada de eficácia plena e aplicabilidade imediata. Interpretação conforme à Constituição.
1. A Constituição da República garante aos cidadãos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a gratuidade na obtenção de certidões nas repartições públicas, desde que 'para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal' (art. 5º, XXXIV, CF/88). Nas palavras do eminente Ministro Celso de Mello, 'o direito à certidão traduz prerrogativa jurídica, de extração constitucional, destinada a viabilizar, em favor do indivíduo ou de uma determinada coletividade (como a dos segurados do sistema de previdência social), a defesa (individual ou coletiva) de direitos ou o esclarecimento de situações' (RE 472.489-AgR, Segunda Turma, DJe de 29/8/08). Essa garantia fundamental não depende de concretização ou regulamentação legal, uma vez que se trata de garantia fundamental dotada de eficácia plena e aplicabilidade imediata.
2. O direito à gratuidade das certidões, contido no artigo 5º, XXXIV, b, da Carta Magna, também inclui as certidões emitidas pelo Poder Judiciário, inclusive aquelas de natureza forense. A Constituição Federal não fez qualquer ressalva com relação às certidões judiciais, ou àquelas oriundas do Poder Judiciário. Todavia, a gratuidade não é irrestrita, nem se mostra absoluta, pois está condicionada à demonstração, pelo interessado, de que a certidão é solicitada para a defesa de direitos ou o esclarecimento de situações de interesse pessoal. Essas finalidades são presumidas quando a certidão pleiteada for concernente ao próprio requerente, sendo desnecessária, nessa hipótese, expressa e fundamentada demonstração dos fins e das razões do pedido. Quando o pedido tiver como objeto interesse indireto ou de terceiros, mostra-se imprescindível a explicitação das finalidades do requerimento.
3. Ação direta julgada parcialmente procedente, de modo que, conferindo interpretação conforme à Constituição à Tabela IV da Lei 9.289, de 4 de julho de 1996, fique afastada sua incidência quando as certidões forem voltadas para a defesa de direitos ou o esclarecimento de situação de interesse pessoal, consoante a garantia de gratuidade contida no artigo 5º, XXXIV, b, da Carta Magna, finalidades essas presumidas quando a certidão pleiteada for concernente ao próprio requerente, sendo desnecessária, nessa hipótese, expressa e fundamentada demonstração dos fins e das razões do pedido." [3]

Com efeito, é manifesto o dever do CNJ em fornecer certidões para a pessoa que quer realizar a defesa de seus direitos, sendo dispensável a regulamentação legal justamente por se tratar de um direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea "b", da CRFB/1988.

 


[1] Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sobre-o-cnj/quem-somos/. Acesso em: 24/5/2023.

[2] PAULO, Vicente; ALEXANDRINO, Marcelo. Direito constitucional descomplicado. 10. ed. São Paulo: MÉTODO, 2013, p. 160.

[3] STF: ADI nº 2.259/DF, relator ministro Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em 14/2/2020, DJe 25/3/2020.

Autores

  • é advogado em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados e mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP).

  • é advogada criminalista em Machado de Almeida Castro & Orzari Advogados, pós-graduanda em Penal e Processo Penal pela Associação Brasileira de Direito Constitucional e membra das comissões de Direitos Humanos e de Ciências Criminais da OAB-DF.

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