Opinião

Da deferência ao ato administrativo e das capacidades institucionais

Autores

  • José Gutembergue de Sousa Rodrigues Júnior

    é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande doutorando em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba especialista em Direito Público membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • Clara Skarlleth Lopes de Araújo

    é advogada juíza leiga do TJ-PB mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

31 de julho de 2023, 18h27

Atualmente, e especialmente após as alterações promovidas pela Lei 13.655/2018 à Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, começou a haver um "novo vocabulário", que acompanha os mais recentes debates acerca da nova interpretação dada ao Direito Público.

Entre esses termos, cita-se o princípio da "deferência". Nas palavras de Fabrício Motta, tal princípio:

"Implica em ter um respeito em relação à decisão do gestor, sobretudo quando ela foi tomada diante da discricionariedade existente no caso concreto, evitando-se que o controlador ou juiz troquem decisões legítimas e ponderadas por aquelas que sejam de sua preferência pessoal e subjetiva, gerando invalidações que adentrem ao juízo de conveniência e oportunidade enfrentado pela Administração Pública." [1]

Percebe-se, pois, que mais recentemente o eixo de preocupação do ponto de vista da interpretação do Direito Público se deslocou da restrição da discricionariedade para o respeito ao self-restraint da administração pública, a fim de que os órgãos de controle não exagerem no seu múnus fiscalizatórios.

Neste sentido, inclusive, vem manifestando-se a jurisprudência pátria:

"EMENTA: AGRAVO DE INSTRUMENTO – AÇÃO ANULATÓRIA DE ATO ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – EXONERAÇÃO – PRINCÍPIO DA DEFERENCIA – ANTIVIDADE JURISDICIONAL – REPARAÇA~DE ILEGALIDADE. – O princípio da INAFASTABILIDADE DE JURISDIÇÃO visa a reparação de lesão ou ameaça a direito, e, em função do PRINCÍPIO DA DEFERÊNCIA aos órgãos de regulação o caráter substitutivo da jurisdição não se presta para rever ato administrativo regular, destinando-se a reparar ilegalidade – A discricionariedade tem seus limites estabelecidos na razoabilidade, na proporcionalidade, na lealdade, na boa-fé e na igualdade como critérios que devem ser avaliados dentro do aspecto da legalidade e do abuso de poder; – Em relação ao ato administrativo, em razão do princípio da separação dos poderes, não compete ao Poder Judiciário avaliar o mérito, limitando-se a atividade jurisdicional a repara ilegalidade." (TJ-MG – AI: 04907530320208130000, relator: des.(a) Renato Dresch, Data de julgamento: 17/09/2020, 4ª Câmara Cível, data de publicação: 18/9/2020)

Assim, em razão do princípio da separação dos poderes, não compete ao Poder Judiciário, em um primeiro momento, avaliar o mérito do ato administrativo. A competência, portanto, para dizer qual é a melhor decisão administrativa é do gestor, não do controlador.

Caberia ao Judiciário, tão somente, a análise da legalidade do ato, atento ao princípio da deferência aos atos da administração, pois, até prova em contrário, dos atos da administração emana a presunção de validade.

Nos Estados Unidos, por exemplo, há a adoção da Doutrina Chenery, como limite à invalidação judicial das escolhas políticas da administração pública. A doutrina consagrada de Chevron é um dos casos mais famosos julgados no âmbito do Direito Administrativo, de modo que a apreciação da decisão resultou em um modelo de tese legal com vistas a determinar se deve conferir deferência à interpretação dada por uma agência governamental de um estatuto legal que rege a atividade desta.

Segundo o posicionamento dado pela Suprema Corte norte-americana, caberia ao juiz inicialmente verificar se a lei é clara quanto ao assunto em discussão. Se a lei é clara, é dever do juiz aplicar a lei e não será dada deferência; e existindo ambiguidade, não cabe aos tribunais interpretar diretamente a suposta vagueza da lei, cabendo apenas verificar se a solução posta pela agência regulamentadora é razoável.

Os principais fundamentos da decisão do caso Chevron foram a expertise das agências reguladoras em tratar de temas específicos, para os quais possuem vocação institucional, e a accountability política, de modo a permitir que novas orientações políticas sejam absorvidas pelas Agências, em compasso com as sucessões presidenciais. O fundamento complementar que se consolidou posteriormente foi o da consistência das interpretações, notadamente, o tempo que elas resistem e a assimilação delas pelos regulados. A consistência do comportamento das agências, à luz de uma implícita moralidade do Direito que remonta ao pensamento de Lon L. Fuller, de modo que se pautem também pelas suas próprias interpretações, passa a ser vista como uma relevante necessidade de segurança jurídica [2].

Aqui, um ponto a ser destacado quanto à aplicabilidade da ideia de deferência, desenvolvida em um sistema jurídico de common law, no sistema jurídico civilista brasileiro é a necessidade, ainda que mínima, de esteio legislativo [3].

Ressaltamos, ademais, que tal doutrina já foi utilizada em decisão do STJ (AgInt no AgInt na SLS 2.240/SP). No caso paradigma, enfatizou-se o argumento de que as cortes judiciais estariam impedidas de adotarem fundamentos diversos daqueles que o Poder Executivo abraçaria, principalmente em questões técnicas e complexas, em que os tribunais não têm a expertise para concluir, com precisão, se os critérios adotados pela Administração estão ou não corretos.

Assim, escolhas políticas e técnicas dos órgãos governamentais, desde que não sejam revestidas de reconhecida ilegalidade, não podem ser invalidadas pelo Poder Judiciário.

Não obstante, na visão de Vermeule [4], a Suprema Corte norte-americana não tomou como norte somente a deferência para estabelecer a delegação do Legislativo, mas sim, tiveram também a consciência das "capacidades institucionais" limitadas que o Judiciário tem em comparação com o Executivo, ainda que não tenha usado essas palavras. Os juízes reconheceram as virtudes de accountability da administração, ao mesmo tempo em que admitiram as limitações institucionais dos magistrados.

Cass Sunstein e Adrian Vermeule cunharam o termo "capacidades institucionais" em Interpretation and Institutions [5] e observaram que as questões de interpretação jurídica não podem ser adequadamente resolvidas sem a atenção à legitimidade das autoridades responsáveis pela construção da decisão judicial, e, neste sentido, a partir das capacidades institucionais destas autoridades, é possível entender como determinados agentes públicos devem interpretar certos dispositivos legais.

Em outras palavras, a capacidade institucional envolve a determinação de qual Poder estaria mais habilitado a produzir a melhor decisão em determinada matéria.

De modo panorâmico, a tese das capacidades institucionais formulada pelos autores detém as seguintes características: a busca por uma releitura do formalismo, a defesa do consequencialismo e do textualismo, sua ancoragem em uma visão empírica e o resgate da deferência do Poder Judiciário. Os diferenciais da teoria das capacidades institucionais estão na preocupação institucional, na promoção da teoria dos acordos incompletamente teorizados, na opção por decisões de segunda ordem e na elevação das agências como as entidades decisórias mais adequadas para a solução de casos controvertidos.

Sunstein e Vermeule se utilizam dos conceitos originalmente econômicos de first e second-best option para sustentar a tese de que, caso não seja possível se pôr em prática a teoria interpretativa tida como ideal (first-best option), seria mais benéfico partir para uma alternativa inteiramente distinta — second-best option — do que simplesmente fazer ajustes muitas vezes irreconciliáveis na teoria tida como ideal.

Para os autores da teoria, a saída para resolver questões concretas seria recorrer à "second-best option" disponível. Essa conteria uma solução não necessariamente compatível com o estado de coisas ideal do intérprete, mas, ao menos, partiria de dados e concepções derivados exclusivamente da realidade. Na resolução de um embate concreto, ao invés de discutir qual é esse estado de coisas ideal, o intérprete deve reconhecer a ausência de ligação causal direta entre seu método interpretativo e o terreno institucional subjacente, contextualizando e adaptando seus métodos de acordo.

Nesse momento, é de suma importância levantar um ponto trazido por Adrian Vermeule [6]: a esfera mais reduzida de desenho institucional se apresenta como uma saída democrática mais estratégica e eficaz do que a alcançada com alterações em arranjos de maior escala, como por exemplo, rupturas institucionais ou profundas reformas.

Assim, ao realizarmos uma comparação, é possível constatar que em alguns casos determinada instituição — como o Congresso Nacional, a Presidência da República, o prefeito municipal e as agências reguladoras — pode oferecer uma melhor resposta a determinado problema do que o Poder Judiciário, possuindo, portanto, "maior capacidade institucional" para resolver a questão, em virtude de sua expertise técnica e de sua habilidade para lidar com o elemento político envolvido.

No âmbito da teoria do direito e da teoria constitucional, como escrevem Carlos Bolonha e Rafael Bezerra de Souza, "o Poder Judiciário, sem dúvidas, apresenta-se como um ator destacado da defesa e garantia de direitos fundamentais. Todavia, em sociedades complexas e pluralistas não se pode atribuir estaticamente a apenas um Poder Constitucional a definição do sentido da constituição, bem como desconsiderar a dimensão prática do funcionamento e do comportamento das instituições políticas, seus processos decisórios e seus rebatimentos em outras esferas de interesse" [7].

Conforme reconhecido pelo próprio STF, temas envolvendo aspectos técnicos, científicos ou políticos de grande complexidade podem não ter no juiz de direito o decisor mais qualificado, por falta de legitimidade, informação ou conhecimento específico [8].

Neste sentido, decisões sobre a implementação de políticas públicas também devem sempre levar em consideração o impacto no quadro de gestão como um todo. Efeitos sistêmicos, assim chamados por Vermeule e Sunstein, podem ser indesejados e imprevisíveis, o que exige uma postura cautelosa e deferente por parte do Poder Judiciário [9]. A capacidade de fazer uma análise holística das consequências de implementar determinadas práticas no âmbito de políticas públicas só é possível a um gestor central que avalie a totalidade do quadro afetado.

Os juízes de direito não só se mostram incapazes de avaliar os efeitos sistêmicos, como não há mecanismos de responsabilização de decisões desastradas. O gestor público, por outro lado, é eleito justamente sob essa lupa, tendo o exercício de suas funções condicionado ao bom funcionamento das políticas públicas. Juízes podem decidir sem nem mesmo levar tais efeitos em consideração e não sofrer qualquer tipo de consequência, até porque são protegidos pelos mecanismos que garantem sua independência e imparcialidade.

Neste sentido, ressalta-se que um aspecto central da boa governança em políticas públicas é a responsabilização dos entes encarregados de formulá-las e implementá-las. A chamada accountability impõe o dever de instituições encarregadas de determinadas práticas justificarem e prestarem contas sobre estas, sujeitando-se a sanções políticas, sociais, institucionais ou jurídicas no processo.

A accountability pode se dar em sentido vertical, quando a sociedade sanciona os agentes estatais, ou horizontal, por meio do controle institucional entre órgãos do Estado. Ocorre que os agentes estatais do Poder Judiciário são brindados com extensas garantias de independência. Trata-se do principal braço de poder responsável por aplicar sanções no controle horizontal, razão pela qual seus membros não são sujeitos ao controle político, com garantias como vitaliciedade e inamovibilidade. Essa configuração institucional impõe um desafio para se desenhar mecanismos de controle sobre o próprio Judiciário. Esse é um fator determinante pelo qual decidir sobre políticas públicas, pelo menos a priori, não deveria ser matéria judicial.

Por fim, ressalta-se que a proposta não é tornar a decisão administrativa imune a críticas, pois qualquer decisão ilegal pode e deve ser anulada pelo judiciário. Conforme mencionado, a doutrina Chevron não procura a melhor interpretação da norma, apenas uma razoável, por parte de uma autoridade competente, com capacidade institucional e passível de accountability.

Com a virada institucional descrita por Sunstein e Vermeule, já passou do momento de fantasiarmos sobre o decisor ideal e a opção pela first-best option, para nos voltarmos para as instituições existentes, suas capacidades comparativas reais e os efeitos sistêmicos que suas decisões causam não apenas sobre o planejamento da administração pública, mas sobre toda a sociedade, não podendo o gestor público operar permanentemente sob a espada de Dâmocles, em um constante Direito Administrativo do Medo.

 


[1] Motta, Fabrício. LINDB no Direito Público: Lei 13.655/2018. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.

[2] SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Lei e leviatã: resgatando o estado administrativo. São Paulo: Contracorrente, 2021, p. 108.

[3] NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. O controle jurisdicional da função normativa das agências reguladoras. São Paulo: Contracorrente, 2021

[4] VERMEULE, Adrian. Mechanisms of Democracy: Institutional Design Writ Small. Cambridge, MA: Oxford University Press, 2007, p. 155.

[5] SUNSTEIN, Cass R. e VERMEULE, Adrian. Interpretation and Institutions. Michigan Law Review, vol. 101, pp. 885-951, fev. 2003.

[6] VERMEULE, Adrian. Mechanisms of Democracy: Institutional Design Writ Small. Cambridge, MA: Oxford University Press, 2007.

[7] BOLONHA, Carlos; SOUZA, Rafael Bezerra de. Teorias jurídicas contemporâneas: uma análise crítica sob a perspectiva institucional. Revista Direito, Estado e Sociedade, n. 43, jul.-dez. 2013, pp. 162-183. Disponível em: . Acesso em 16 jun. 2018

[8] STF, ADPF nº 309, referendo da liminar, em 25 set. 2014

[9] BARROSO, Luís Roberto. Judicialização, ativismo judicial e legitimidade democrática, Revista (Syn)Thesis, vol. 5, nº 1, 2012, p. 30.

Autores

  • é advogado associado do escritório Gonçalves Santos Advogados, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, especialista em Direito Público, membro do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP e pesquisador do Núcleo de Pesquisa de Interpretação e Decisão Judicial (Nupid).

  • é advogada, juíza leiga do TJ-PB, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal de Campina Grande, pós-graduada em Direito Constitucional pela Universidade Regional do Cariri, ex-professora de Direito e Processo Penal da Universidade Regional do Cariri e membra do Grupo de Pesquisa Sistema de Justiça e Estado de Exceção da PUC-SP.

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