Observatório Constitucional

Doutrina brasileira do Habeas Corpus e origem do mandado de segurança

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

29 de julho de 2023, 8h00

A origem do mandado de segurança tem direta relação com a chamada doutrina brasileira do Habeas Corpus, desenvolvida a partir de julgados do Supremo Tribunal Federal. Na ausência normativa de remédios constitucionais mais específicos, a corte procurou moldar o writ de modo a conceder proteção judicial efetiva a hipóteses que não estavam abarcadas em sua tradicional formatação, pautada na liberdade de locomoção [1].

A Constituição de 1891, primeiro texto constitucional a prever o Habeas Corpus entre nós, indicava que este seria concedido sempre que o indivíduo sofresse ou se achasse em iminente perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder (artigo 72, § 22). A redação do dispositivo não fazia menção expressa ao direito de ir e vir, já a indicar a influência de Rui Barbosa, que defendia uma maior abrangência do seu escopo [2].

Esse entendimento, aliado ao conturbado contexto histórico do país, bem como à crescente atuação do STF, que se firmava, então, como importante instituição republicana, foi a base para a consolidação da doutrina brasileira do Habeas Corpus. Especialmente nos primeiros anos da República, marcada por eventos como a Revolta da Armada e a Revolução Federalista, e o estado de sítio consequentemente decretado, a Suprema Corte foi o berço da impetração de uma série de pedidos de Rui Barbosa, que se utilizava do instrumento para a tutela de diversas espécies de direitos.

Mencione-se, nesse sentido, a utilização do Habeas Corpus para garantia da liberdade de profissão, em demanda proposta por motorista profissional cuja carteira de habilitação fora apreendida por autoridade policial incompetente [3]. Ainda, para assegurar liberdade de manifestação, em writ impetrado por Rui Barbosa em 1914, na qualidade de senador e de paciente, contra decisão do jornal que recusara publicar discurso por ele proferido contra o governo federal [4]; e, também, para defesa do direito de reunião e da livre manifestação de pensamento, em seu formato preventivo, para que Rui Barbosa e seus correligionários pudessem se reunir em comícios [5].

A compreensão de que seria possível recorrer ao Habeas Corpus para proteger uma série de direitos outros que não apenas a liberdade de locomoção não era amplamente aceita no cenário jurídico nacional. A doutrina encontrava resistência inclusive dentro do próprio Supremo Tribunal Federal, a exemplo de interpretação restritiva realizada pelo ministro Godofredo Cunha. Mesmo assim, acabou por prevalecer na jurisprudência a visão do ministro Pedro Lessa [6], que tinha entendimento semelhante ao de Rui Barbosa, em votos que igualmente semearam as bases do que viria a ser o mandado de segurança.

Em 1926, entretanto, reforma constitucional restringiu o âmbito de proteção do Habeas Corpus, enfraquecendo diretamente a doutrina até então praticada e deixando diversos direitos sem remédio constitucional cabível, na hipótese de sua eventual violação [7]. Essa limitação foi resultado de ampla movimentação política — já na campanha eleitoral, Arthur Bernardes indicava que um de seus objetivos era a contenção do instituto a suas origens clássicas. Eleito presidente da República, dirigiu-se ao Congresso Nacional para enfatizar a importância de sua proposta, ao criticar que a apreciação do writ era motivo de excesso de trabalho da corte [8].

Na verdade, a mudança tinha como principal objetivo frear a atuação do Supremo Tribunal Federal que, por meio da doutrina brasileira do Habeas Corpus, acabou por ampliar sua competência em julgados considerados polêmicos. Os próprios congressistas admitiam que o retorno a sua concepção história deveria se dar em razão de supostos abusos. A corte estaria se desviando de sua função precípua ao resolver, por procedimento sumário, matérias que deveriam ser tratadas por ação regular.

Esse contexto conduziu necessariamente à discussão acerca da criação de novos remédios constitucionais que focassem na preservação de outras liberdades e direitos, que não apenas o de locomoção.

As primeiras luzes sobre a matéria haviam sido lançadas pelos ministros do Supremo Tribunal Federal, Alberto Tôrres e Edmundo Muniz Barreto. Aquele, em 1914 sugerira um "mandado de garantia" para a tutela de direitos "lesados por atos do Poder Público, ou de particulares, para os quais não haja outro remédio especial" [9]. Muniz Barreto, por sua vez, defendera a adoção de remédio que complementasse o writ do Habeas Corpus, propondo algo parecido ao recurso de amparo mexicano. Enfatizava que o Poder Judiciário deveria possuir meios coercitivos prontos para dar resposta a quem estivesse na "iminência ou efetividade de ato agressivo ao direito", mas que assegurasse, ao mesmo tempo, o direito de defesa contra quem é impetrada a ação [10].

Oito anos se passaram entre a reforma de 1926 até a inserção do mandado de segurança na Constituição de 1934, pondo fim a verdadeiro vácuo protetivo. Assim, nos termos do artigo 113, 33, da Constituição de 1934, restou consagrado, ao lado do Habeas Corpus e com o mesmo processo deste, a previsão do mandado de segurança para proteção de "direito certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade".

A exigência de "direito certo e incontestável" já era mencionada em decisões do STF [11]. Em seus votos, ministro Pedro Lessa indicava a necessidade de comprovação da liquidez do direito para a concessão de Habeas Corpus, anotando que ao juiz "incumbe verificar se o direito que o paciente quer exercer, é incontestável, líquido, não é objeto de controvérsia, não está sujeito a um litígio" [12] Além disso, da doutrina brasileira do habeas corpus também adveio outro aspecto procedimental do mandado de segurança, que é a impossibilidade de ser impetrado contra lei em tese. Dois anos depois da promulgação da Constituição de 1934, o mandado de segurança foi regulamentado pela Lei 191, de 16 de janeiro de 1936.

Já a Carta de 1937 não trouxe, em sua redação, a previsão do mandado de segurança. Por meio do Decreto-lei 6, de 16 de novembro de 1937, porém, restou determinado que o mandado de segurança continuava em vigor, nos termos da Lei 191/36 — exceto a partir de 10 de novembro de 1937, em relação aos atos do presidente da República e dos ministros de Estado, governadores e interventores.

O Código de Processo Civil promulgado em 1939 previu o mandado de segurança em moldes semelhantes ao estabelecido na Lei 191/36, em dispositivos que acabaram sofrendo alterações pela Lei 1.533, de 31 de dezembro de 1951.

A Lei 1.533/51, por sua vez, foi reformada com objetivo de restringir a concessão de liminares. Nesse período, Aliomar Baleeiro relatou que os abusos dos tribunais ao conceder mandados de segurança acabaram por gerar a limitação do instituto. O ministro narrou, então, situação em que um juiz da Fazenda Pública chegou a conceder cerca de 700 mandados de segurança para liberação de veículos importados que dependiam de licença prévia, todos concedidos em decisões idênticas e previamente preparadas.

Outrossim, enfatizou a quantidade de ações em que o impetrante nitidamente objetivava apenas a concessão de medida cautelar, em processos que, após apreciada a liminar, ficavam anos a espera de julgamento. Assim, advertiu: "Num país, como o nosso, em que de ânimo leve, se passa vertiginosamente de zero ao infinito, esquece-se a lição da História: o exagero, às vezes, pode fazer o retrocesso do infinito a zero. O golpe de morte vibrado pelo presidente Bernardes, em tempos relativamente normais e por emenda constitucional, à doutrina brasileira do habeas corpus deve servir de advertência a quantos, sobretudo os juízes, possam concorrer para a desvirtuação do instrumento judicial magnífico, que é o nosso mandado de segurança" [13].

Com isso, Baleeiro lançou alerta sobre a banalização de remédio constitucional essencial, de modo a desvirtuar sua importância e a minar sua credibilidade. Em resposta ao quadro de aparentes abusos na concessão de mandados de segurança, defendeu sua limitação às hipóteses de violação da Constituição ou de lei federal [14].

Ainda sobre a importância do estudo da evolução histórica desses institutos, Gilmar Ferreira Mendes ressalta que a doutrina brasileira do Habeas Corpus e o mandado de segurança tiveram influência direta no rito da representação interventiva. Isso porque a Constituição de 1934 também criou a "declaração de inconstitucionalidade para evitar a intervenção federal", que nada mais seria do que a antecessora da representação interventiva, a ser confiada ao procurador­‑geral da República, nas hipóteses de ofensa aos princípios consagrados no artigo 7º, I, a a h, deste texto constitucional [15].

Após curta duração do diploma de 1934 e do texto de 1937, a Constituição de 1946 previu a representação interventiva em seu artigo 8º, parágrafo único. Essa restou regulamentado pela Lei 2.271, de 1954, na qual foi estabelecido: "Aplica-se ao Supremo Tribunal Federal o rito do processo do mandado de segurança, de cuja decisão caberão embargos caso não haja unanimidade" (artigo 4º). Isso permitiu que o Supremo Tribunal Federal pudesse dar maior amplitude à representação interventiva, utilizando-se, inclusive, por exemplo, da possibilidade de concessão de medida cautelar para suspensão de ato impugnado — o que geraria novas reações congressistas [16].

Atualmente, a Constituição Federal dispõe que será concedido "mandado de segurança para proteger direito líquido e certo, não amparado por 'habeas-corpus' ou 'habeas-data', quando o responsável pela ilegalidade ou abuso de poder for autoridade pública ou agente de pessoa jurídica no exercício de atribuições do Poder Público" (artigo 5º, LXIX), sendo admitido, ainda, o mandado de segurança coletivo (artigo 5º, LXX).

Em produção acadêmica sobre a relevância do Habeas Corpus ao desenvolvimento do processo constitucional brasileiro, Gilmar Mendes aponta que a atual jurisprudência do STF permite certas flexibilizações dos critérios de cabimento do writ, em prol da efetiva proteção dos direitos previstos na Constituição [17]. Nesse aspecto, indica Habeas Corpus coletivo em favor de mães de crianças e grávidas que estivessem preventivamente presas no país, concedido pela 2ª Turma do STF em 20 de fevereiro de 2018 para que a prisão preventiva dessas mulheres fosse convertida em prisão domiciliar [18]. Acatou-se, aí, o uso do Habeas Corpus — uma ação usualmente individual —, para a tutela de direitos coletivos, em aproximação ao já previsto para o mandado de segurança.

De fato, a configuração de remédios constitucionais que temos hoje em dia à disposição, notadamente do mandado de segurança, evidenciam o valor da influência da doutrina brasileira do Habeas Corpus, bem como o constante caráter evolutivo de meios para melhor tutelar direitos e garantias fundamentais. O estudo de suas origens é essencial para efetiva compreensão do nosso atual quadro jurídico, e o que dele é possível extrair ou aprimorar.

 


[1] Sobre evolução histórica do mandado de segurança, conferir: MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; MENDES, Gilmar Ferreira. Mandado de segurança e ações constitucionais. São Paulo: Malheiros, 2019. WALD, Arnoldo. A evolução legislativa do mandado de segurança. Revista de direito da Procuradoria Geral. Governo do Estado da Guanabara, n. 14, p. 85-101, 1965.

[4] STF. HC 3.536, Pleno, rel. min. Oliveira Ribeiro, j. 5.6.1914.

[5] STF. HC 4.781, Pleno, rel. min. Evandro Lins, j. 5.4.1919.

[6] Leda Boechat, por sua vez, atribui ao ministro Enéas Galvão a base jurisprudencial da doutrina brasileira do habeas corpus. (RODRIGUES, Lêda Boechat. História do Supremo Tribunal Federal. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, v. 3, p. 33).

[7] Cf. art. 72, § 22, em redação conferida pela Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926: "Dar-se-há o habeas-corpus sempre que alguem soffrer ou se achar em imminente perido de soffer violencia por meio de prisão ou constrangimento illegal em sua liberdade de locomoção".

[8] Mensagem apresentada pelo Presidente Arthur Bernardes ao Congresso Nacional na abertura da Primeira Sessão da Décima Segunda Legislatura. Rio de Janeiro, 1924. Disponível em: http://www.biblioteca.presidencia.gov.br/presidencia/ex-presidentes/arthur-bernardes/mensagens-ao-congresso/mensagem-ao-congresso-nacional-na-abertura-da-primeira-sessao-da-decima-segunda-legislatura-1924.

[10] BARRETO, Edmundo Muniz. Mandado de segurança. Archivo Judiciario, suplemento, v. 31, p. 35-40, jul./set., 1934.

[11] HORBACH, Carlos Bastide. Memória jurisprudencial. Ministro Pedro Lessa. Supremo Tribunal Federal: Brasília, 2007.

[12] LESSA, Pedro. Do Poder Judiciário. Livraria Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1915, p. 285.

[13] BALEEIRO, Alionar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 82.

[14] BALEEIRO, Alionar. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 82.

[15] MENDES, Gilmar Ferreira. Ações constitucionais: O habeas corpus como pedra fundamental do processo constitucional brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019

[16] Daí foi iniciada uma série de discussões sobre a pertinência de concessão de medida cautelar, com base no rito do mandado de segurança, em sede de representação interventiva. Acabou sendo adotada, apesar de alguma resistência, a possibilidade de concessão de medida liminar em representação interventiva para suspensão da eficácia do ato normativo impugnado, em consonância com a orientação consagrada na lei do mandado de segurança. Após muitas polêmicas e discussões políticas, a Lei 4.337/64, que regulou a declaração de inconstitucionalidade, não fez menção à aplicação subsidiária do rito da lei de mandado de segurança, muito menos previu a concessão de medida cautelar. (Cf. MENDES, Gilmar Ferreira. Ações constitucionais: O habeas corpus como pedra fundamental do processo constitucional brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019).

[17] MENDES, Gilmar Ferreira. Ações constitucionais: O habeas corpus como pedra fundamental do processo constitucional brasileiro. In: MARINONI, Luiz Guilherme; SARLET, Ingo Wolfgang. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

[18] STF. HC 143.641, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, julg. em 20.2.2018.

Autores

  • é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela Eberhard- Karls Universität Tübingen (Alemanha), assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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