Colaboração premiada no âmbito da improbidade administrativa
27 de julho de 2023, 8h00
Objetivando pôr fim à corrupção desenfreada, a qual há vários anos vem sangrando as finanças públicas e envergonhando o país, o constituinte previu, no artigo 37, §4º, que os "atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação", nos termos da lei. Quase quatro anos mais tarde, foi editada a Lei nº 8.429/92, chamada de Lei de Improbidade Administrativa.
Dessa maneira, a Constituição Federal criou forte aparato protetor da sociedade contra a atividade administrativa ilegal e imoral. Estabeleceu não apenas os princípios básicos norteadores da Administração Pública, mas também o novo perfil do Estado brasileiro, iniludivelmente atrelado ao ideal democrático.
Em 2021, a Lei 8.429/92 sofreu quase 200 alterações no texto do diploma original. Como resultado, embora o nomen iuris permaneça o mesmo, tem-se uma Lei de Improbidade Administrativa alterada quase que por completo. Entre as principais alterações, houve a positivação e a regulamentação dos acordos consensuais merece destaque.
Acerca da consensualidade, saliente-se que esse viés de atuação resolutiva dos entes envolvidos, com a mitigação da judicialização de alguns litígios, é fruto daquilo que a doutrina convenciona chamar de justiça consensual ou negociada. Esse modelo de justiça adveio da denominada "Terceira Onda Renovatória de Acesso à Justiça".
Os chamados movimentos renovatórios de acesso à justiça, foram categorizados por Mauro Cappelletti e Bryant Garth em três ondas distintas. A "terceira onda" denota o conceito mais amplo de acesso à justiça, denominada de "o enfoque do acesso à justiça", e sua grande finalidade é a de estabelecer mecanismos processuais adequados aos operadores do direito, com técnicas processuais efetivas e meios alternativos de solução de conflitos [2]. O ponto de destaque é que a finalidade da terceira onda não se limita à facilitação do exercício da jurisdição estatal, mas principalmente o incentivo à criação de métodos alternativos de resolução de conflitos e o fomento à autocomposição, bem como maior celeridade e facilitação na resolução de litígios. É a chamada Justiça Multiportas.
Conforme assevera Wallace Paiva Martins Junior:
A consensualidade como pressuposto de resolutividade de conflitos de interesses não é apenas um diretriz assumida pelo Código de Processo Civil (artigo 3º, §2º), mas, uma tendência de agilização, racionalização, resolutividade e efetividade que não exclui a jurisdição, atuando paralelamente. Não se trata de novidade no ordenamento jurídico brasileiro. A inovação é a sua difusão a vários setores de ambiente jurídico nacional, e o grau de percolação precisa inclusive alcançar outras esferas (…) [3].
Os sistemas persecutórios ocidentais tendem a caminhar rumo à valorização das partes no processo criminal, privilegiando o consenso. O modelo de justiça consensual é histórico, com relatos de informantes sendo beneficiados por informações que levavam à identificação de possíveis criminosos, em diversos diplomas e sistemas antigos. Pode-se dizer que o instituto da colaboração premiada tem seu mais importante marco no Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, onde o acusado de heresia ou sodomia, caso delatasse outro criminoso, garantiria sua fé, seu status perante a sociedade e poderia livrar-se do castigo e até da pena de morte.
Em nosso ordenamento jurídico, desde o período colonial brasileiro, podemos notar a presença do instituto em nosso ordenamento, mais especificamente no Livro V, Título CXVI, das Ordenações Filipinas (1603-1822): "Como se perdoará os malfeitores que derem outros à prisão". Naquela disposição, o delator que conseguia não só fornecer informações, mas também provar a participação de terceiros em um ou mais delitos, receberia perdão total, mesmo que tivesse praticado outro crime que não o imputado aos terceiros, porque não há "perdão de parte".
O acordo de colaboração premiada é um negócio jurídico personalíssimo, no campo do Direito Público, que envolve o Estado (Ministério Público ou Polícia), e, portanto, a discricionariedade permitida para a celebração nunca é absoluta, pois balizada pela Constituição e pela legislação, sob pena de poder-se converter em arbitrariedade. Sendo o acordo de "colaboração premiada" um "meio de obtenção de prova" (artigo 3º da Lei nº 12.850/13) [4].
Tem-se, portanto, a colaboração premiada como instrumento persecutório, de crescente uso no processo penal do ocidente e importante meio de obtenção de prova. Foi recomendada pela Organização das Nações Unidas e incorporada por sucessivas leis no Brasil, tendo atingido seu auge normativo com a Lei 12.850/13, com a fixação de diretrizes e comandos normativos para a realização, cumprimento e efetividade de mais esse instrumento de justiça consensual/negociada em nosso país [5].
A identificação da colaboração premiada como instrumento de política criminal deve partir da análise das hipóteses legais em que ela é cabível, apto a compor um microssistema de direito premial. Desde a Lei dos Crimes Hediondos (artigo 8º, parágrafo único, Lei 8.072/1990) a legislação brasileira prevê o instituto, embora denominado como delação premiada. Também prevê o instituto o Código Penal (artigo 159, §4º), Leis 7.242/86, 8.137/90, 9.269/96, 9.613/98, 9.807/99, 11.343/2006 e 12.850/13.
Além da colaboração premiada, também são espécies do gênero "justiça negociada": a mediação e conciliação, a transação penal, a suspensão condicional do processo, o acordo de não persecução penal (ANPP), bem como, o acordo de não persecução civil (ANPC).
Malgrado os instrumentos consensuais permitidos em nosso ordenamento já estejam vigentes há alguns anos, a redação original da LIA vedava toda e qualquer espécie de transação e ou acordo. A alteração de 2021 previu expressamente tal possibilidade com a devida regulamentação, nada dispondo acerca da impossibilidade de utilização de outros instrumentos negociais além daquele previsto no codex.
Nessa mesma esteira interpretativa, o STF reconheceu que a redação original da Lei 8.429/1992 proibia hipóteses de justiça consensual, como transação e suspensão condicional do processo, mas não vedou expressamente a possibilidade de colaboração premiada. Assim hodiernamente, há possibilidade de acordo de não persecução civil no âmbito da ação civil pública por ato de improbidade administrativa e de justiça consensual no combate à corrupção, "reforçando o que já vinha sendo possível pela interpretação das demais leis: a plena possibilidade de colaboração premiada".
Resta claro, que, no âmbito da Lei de Improbidade Administrativa, além da celeridade processual, obediência ao princípio eficiência, e observância às finalidades dos instrumentos de justiça consensual ou negociada, a defesa do interesse público foi alçada a um patamar de importante destaque. "O microssistema legal de combate à corrupção, a partir de 1992, evoluiu, de forma clara, específica e objetiva, no sentido de propiciar meios facilitadores à repressão e à prevenção de ilícitos, sobretudo quando ofensivos a interesses supraindividuais e preordenados a causar dano ao patrimônio público" [6].
Seguindo esse entendimento, o STF em sede de ARE, no que tange à possibilidade da colaboração premiada no âmbito da LIA, fixou a tese de que "é constitucional a utilização da colaboração premiada, nos termos da Lei 12.850/2013, no âmbito civil, em ação civil pública por ato de improbidade administrativa movida pelo Ministério Público", observando-se as seguintes diretrizes:
1) Realizado o acordo de colaboração premiada, serão remetidos ao juiz, para análise, o respectivo termo, as declarações do colaborador e cópia da investigação, devendo o juiz ouvir sigilosamente o colaborador, acompanhado de seu defensor, oportunidade em que analisará os seguintes aspectos na homologação: regularidade, legalidade e voluntariedade da manifestação de vontade, especialmente nos casos em que o colaborador está ou esteve sob efeito de medidas cautelares, nos termos dos §§6º e 7º do artigo 4º da referida Lei 12.850/2013.
2) As declarações do agente colaborador, desacompanhadas de outros elementos de prova, são insuficientes para o início da ação civil por ato de improbidade;
3) A obrigação de ressarcimento do dano causado ao erário pelo agente colaborador deve ser integral, não podendo ser objeto de transação ou acordo, sendo válida a negociação em torno do modo e das condições para a indenização;
4) O acordo de colaboração deve ser celebrado pelo Ministério Público, com a interveniência da pessoa jurídica interessada;
5) Os acordos já firmados somente pelo Ministério Público ficam preservados até a data deste julgamento, desde que haja previsão de total ressarcimento do dano, tenham sido devidamente homologados em Juízo e regularmente cumpridos pelo beneficiado".
Vale lembrar que a Constituição Federal traz de forma expressa em seu texto a mitigação à obrigatoriedade da ação penal (artigo 98), se inclinando na importância do resgate da fraternidade e a construção de movimentos de consenso e conciliação como meio de construção de soluções para as relações humanas.
Dessa maneira, importa destacar que a justiça consensual ou negociada têm seu vetor interpretativo no ideal de fraternidade, reconhecido no preâmbulo e ratificado no artigo 3º da nossa Constituição Federal
Pode-se concluir que, numa interpretação sistemática das fontes do nosso Direito, a Lei 8.429/1992, portanto, passou a fazer parte do "microssistema legal de defesa do patrimônio público, devendo, ser interpretada de acordo com suas finalidades e pretendendo obter, nos termos do caput do artigo 37 e de seu §4º, a maior eficiência possível no combate à improbidade administrativa, com a inclusão de instrumentos de facilitação ao acesso e efetividade da justiça" [7].
[1] STF: ARE 1175650, relator: ministro Alexandre de Moraes, Plenário, Sessão Virtual de 23.6.2023 a 30.6.2023.
[2] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça – Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 71.
[3] MARTINS JÚNIOR, Wallace Paiva. Acordos de não persecução Penal e Cível. – Salvador: Editora JusPodivm, 2021, p.323.
[4] HC 144652.
[5] CORDEIRO, NEFI. Colaboração Premiada: Atualizada com a Lei Anticrime. Belo Horizonte: Letramento, 2020, p. 09.
[6] STF: ARE 1175650, relator: ministro Alexandre de Moraes, Plenário, Sessão Virtual de 23.6.2023 a 30.6.2023
[7] STF: ARE 1175650, relator: ministro Alexandre de Moraes, Plenário, Sessão Virtual de 23.6.2023 a 30.6.2023
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