Contas à vista

PPA é ficção se não for retroalimentado pelos dados do Censo e do controle

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

25 de julho de 2023, 8h00

O ciclo orçamentário da política pública é dinâmico e, grosso modo, é composto pelas etapas interconexas de planejar, executar e controlar. Caso operasse segundo pressupostos constitucionalmente adequados, tal circularidade deveria nos permitir sobrepujar a força pedagógica do controle, para extrair a máxima aprendizagem dos erros diagnosticados nos exercícios anteriores e, com isso, seria possível tanto aprimorar a gestão durante a execução orçamentária em curso, quanto formular melhores peças de planejamento para os anos vindouros.

Se controle bom é o que retroalimenta o planejamento, esse, por sua vez, precisa necessariamente buscar rastrear e incorporar todos os diagnósticos disponíveis, bem como todos os apontamentos feitos pelas mais diversas instâncias de controle, para fins de detecção, no mínimo, dos vazios assistenciais.

Spacca
A recomendações e ressalvas apresentadas pelos conselhos sociais de acompanhamento e monitoramento de políticas públicas não podem ser ignoradas, tampouco podem ser preteridos seus congêneres instrumentos de notificação e alerta acerca das irregularidades emitidos pelos Tribunais de Contas. A própria série histórica de demandas judiciais revela, na mais discreta das hipóteses, um diagnóstico de déficit de cobertura das políticas públicas ordinariamente executadas pela Administração Pública.

Para além da dimensão reativa e quase sempre punitivista, os controles social, externo e judicial deveriam ter consciência de que a eficácia e a resolutividade das suas ações são diretamente proporcionais à capacidade de introjetar no âmbito do controle interno a aprendizagem institucional a que se referem os incisos I e II do artigo 74 da Constituição de 1988.

Todavia tal perspectiva ainda não é usualmente pautada, a despeito de ser — a rigor — óbvia. Ora, às vésperas do envio do projeto de plano plurianual relativo ao quadriênio 2024/2027 pelos Estados e pela União, se o ciclo orçamentário fosse reflexivo e comprometido intertemporalmente com a ampliação progressiva da qualidade do planejamento, estaríamos agora precisamente a debater como incorporar os dados do Censo 2022. Em igual medida, estaríamos a refletir amplamente sobre como internalizar, no diálogo dos poderes políticos em torno da elaboração das leis orçamentárias, o acúmulo hermenêutico produzido pelas instâncias de controle em torno da etapa de planejamento anterior e da sua respectiva execução.

A circularidade orçamentária das políticas públicas é um convite à aprendizagem intertemporal, mas — na complexa realidade social brasileira — não a temos aproveitado, na medida em que nos deixamos aprisionar por uma espiral ignorante de repetição dos erros do passado, enquanto resta pragmaticamente interditada a construção dos projetos de futuro comum por força da primazia do curto prazo eleitoral que domina a execução orçamentária em curso.

Vale lembrar que, em um mesmo exercício financeiro cada ente político deve prestar contas do quanto realizado no ano anterior, enquanto é executada a lei orçamentária vigente e é projetado o próximo ciclo, com suas respectivas diretrizes orçamentárias e orçamento anual.

Se planejar é antecipar racionalmente o futuro, necessariamente deveríamos buscar superar os problemas acumulados ao longo do tempo. Para conceber rotas aprimoradas de futuro, é preciso conhecer exaustivamente a realidade antecedente e diagnosticar a existência dos problemas, mesmo sabendo que o Estado não vai conseguir resolvê-los em sua totalidade, de uma só vez e em de uma vez por todas.

Todo bom planejamento tem como ponto de partida o diagnóstico, ou seja, o levantamento ostensivo dos vários desafios que a realidade traz, respeitadas as competências federativas de cada ente político.

Não sabemos o que fazer, porque não conhecemos consistentemente nossos problemas e, por conseguinte, não elegemos aqueles conflitos que serão enfrentados em qual sequência temporal, nem somos capazes de precisar quais insumos/meios são considerados faticamente necessários para tentar resolvê-los. Nós não avaliamos adequadamente os gastos públicos em sua série histórica, nem mesmo monitoramos os resultados e falhas das políticas públicas verificados anteriormente, de modo que quase sempre aceitamos como normal a trágica repetição dos erros ao longo dos anos e décadas.

Uma ignorância histórica de tal monta nos encerra em cenário de capturas cumulativas — sofregamente vívidas no curto prazo — que perpassam nosso capitalismo de compadrio, revelado nas múltiplas e conflituosas demandas por renúncias fiscais, créditos subsidiados, emendas parlamentares balcanizadas, contratos administrativos direcionados, subvenções, auxílios etc. É como se só fosse possível a gestão patrimonialista, porque não refletimos e corrigimos nossos erros, porque o controle não é pedagógico, tampouco retroalimenta o planejamento no ciclo da política pública.

Simplesmente não nos ocupamos do básico esforço de diagnosticar seriamente todos os problemas e, a partir daí, não confrontamos reciprocamente suas pretensões de prioridade. Assim tudo parece caótico, tudo reclama qualquer solução, tudo pode ser alvo de consultorias ou promessas milagrosas de cura pelo mercado ou pelo terceiro setor, diante de um Estado inepto e capturado não só pela cadeia produtiva de fornecedores e variados tipos de intermediários, mas até mesmo por seus agentes públicos insulados burocraticamente.

Nenhuma promessa de aprimoramento da qualidade do gasto público se implementará, de fato, sem nos dedicarmos ao diagnóstico — sempre temporal e territorialmente circunstanciado — dos nossos problemas.

Obviamente não há como pensar em soluções sem se conhecer em profundidade os problemas. Infelizmente, porém, a praxe da maioria dos nossos municípios reside na contratação de consultorias contábeis e jurídicas que oferecem modelos padronizados e genéricos de planejamento setorial e/ou orçamentário.

Neste ano em que serão formulados e apreciados os projetos de PPA estaduais e federal, a existência de haver quem venda e quem compre planejamento genérico e padronizado para fins meramente protocolares na Administração Pública brasileira reclama ser reconhecida como uma das causas centrais da fragilidade das nossas finanças públicas.

As consultorias contábeis e jurídicas que vendem sistemas informatizados com modelos padronizados, por exemplo, de plano plurianual, lei de diretrizes orçamentárias e lei orçamentária anual (PPA, LDO e LOA) precisam ser questionadas do mesmo modo que médicos têm sido demandados em juízo por oferecerem cirurgias sem prévio diagnóstico exaustivo das condições clínicas de cada paciente e sem cumprirem o dever de informação especializado para fins de consentimento específico sobre as soluções contratuais propostas.

Modelos genéricos e padronizados de PPA-LDO-LOA são como cirurgias realizadas em abstrato, porquanto sem suficiente informação prévia individualizada do paciente (aqui equiparado, no nosso caso, à coletividade afetada pela política pública proposta sem prévio diagnóstico circunstanciado).

Tecnicamente a responsabilidade estrutural da atividade de planejamento sequer pode ser terceirizada para consultorias, vez que só é cabível a execução indireta naquilo que implicar "serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios". Esse é o teor do artigo 3º, inciso I e § 1º do Decreto 9.507/2018, que regulamentou a execução indireta (terceirização) no âmbito da Administração Pública federal.

As consultorias contábeis e jurídicas não podem vender modelos padronizados de planejamento setorial e orçamentário, sob pena de nulidade absoluta dessa terceirização e de responsabilidade extracontratual de tais prestadores de serviço, nos moldes dos artigos 6º e 14 do Código de Defesa do Consumidor.

As consequências da frágil concepção terceirizada e pasteurizada do planejamento estatal vão desde a abertura excessiva de créditos adicionais suplementares e especiais, até a própria ineficiência da gestão pública que realiza gastos fúteis diante de tantos vazios assistenciais em outras áreas prioritárias.

O aprimoramento democrático da concepção sobre qual é o papel do Estado brasileiro e sobre quais são suas prioridades na consecução de políticas públicas deveria ser um dos nossos maiores desafios em torno do aprimoramento das regras fiscais que nos regem. O público precisa ser feito em público, até porque diagnóstico de problemas e prognóstico de possíveis soluções na Administração Pública pressupõe inafastavelmente participação popular, tal como exigido pelo artigo 48, §1º, inciso I da Lei de Responsabilidade Fiscal.

A noção de impositividade orçamentária — prevista no §10 do artigo 165 da CF/1988 — passa pela máxima vinculação do gestor ao planejamento que ele formula em diálogo com a sociedade. Para tanto, é preciso retomar a imprescindibilidade do dever de diagnóstico específico que se impõe tanto ao gestor, quanto a todas as consultorias que ele contrata a título de "serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios".

É preciso diagnóstico circunstanciado e individualizado de cada ente político da federação em cada política pública, para que a população possa — durante o processo legislativo que fomenta o debate das leis do planejamento setorial e orçamentário — exercer seu direito de questionar e influenciar o que vier a ser reputado democrática e republicanamente como prioridade da ação governamental.

Nenhuma fonte de conhecimento da realidade brasileira é mais rica e tecnicamente hígida do que aquela que se pode extrair dos dados do Censo de 2022, tanto quanto os apontamentos feitos pelas diversas instâncias de controle (a título de recomendações, ressalvas, alertas e determinações).

Sem esse esforço estrutural, seguiremos a acumular soluções ineptas ou abusivas em nossos instrumentos legais de planejamento protocolar, de onde se originam a má qualidade do gasto público posteriormente executado, a corrupção e, por vezes, a inércia preguiçosa de algumas instâncias de controle que se orientam tardiamente para a punição dos delitos e improbidades consumados.

O diagnóstico é o ponto de partida, mas não é o ponto de chegada. Muito embora até haja um elenco relativamente amplo de dados empíricos coletados para fins de diagnóstico, falta-nos capacidade de enfrentar a perspectiva de que é impossível resolver tudo, para todos e de uma vez só. Eis a razão pela qual é preciso ordenar prioridades em face da própria gestão da escassez.

Desse modo, precisamos fortalecer o PPA, mas não apenas ele. Precisamos resgatar a intrínseca correlação substantiva entre os planos orçamentários quadrienais, de um lado, e as peças de planejamento setorial nas mais diversas políticas públicas, de outro.

É oportuno lembrar que a essência do PPA reside nos programas de duração continuada, porque ali é que estão densificados fiscalmente os serviços públicos essenciais que devem ser mantidos ao longo do tempo, independentemente do governo que entrar ou sair.

Os programas de duração continuada do PPA correspondem, na seara orçamentário-financeira, ao núcleo indisponível da ação estatal, que deve ser financiado até mesmo por meio de dívida pública. Tal garantia intertemporal também pode ser associada, no Direito Administrativo, ao princípio da continuidade dos serviços públicos. Para o Direito Financeiro, portanto, os programas de duração continuada identificam, em última instância, o tamanho constitucionalmente necessário do Estado.

Esse horizonte de essencialidade fiscal delimita o tamanho do Estado e fixa as despesas que não podem ser preteridas ou mitigadas ao longo do tempo. Trata-se, como já dito, da própria identidade constitucional mínima do que o orçamento público precisa contemplar.

A fixação dos programas de duração continuada do PPA como o locus onde podemos reconhecer o tamanho constitucionalmente necessário do Estado é reforçada todos os anos pela lei de diretrizes orçamentárias, em seu anexo de despesas não suscetíveis de contingenciamento. Aludido anexo arrola todas as despesas que correspondem normativamente a obrigações estatais e, como tal, não podem ser fiscalmente reduzidas ou limitadas, independentemente do comportamento da arrecadação estatal, o que implica, no limite, que seu financiamento deve ser assegurado até mesmo mediante dívida pública.

As despesas não contingenciáveis são prioritárias, porque devem ser executadas, ainda que haja frustração de receita, mesmo quando se verifique risco de descumprimento da meta de resultado primário e ainda que o PIB seja negativo em determinado exercício financeiro. No pior dos cenários, elas devem ser financiadas mediante dívida pública, daí porque é possível correlacioná-las com a noção de "mínimo existencial" no âmbito do Direito Financeiro.

Tendo isso claro em mente, devemos impugnar a hipótese de determinado gestor público "furar a fila" de prioridades normativas durante a execução orçamentária, passando despesas discricionárias de curto prazo eleitoral, à frente de tais despesas obrigatórias não suscetíveis de contingenciamento ou dos programas de duração continuada do PPA.

É preciso questionar como fiscalmente ilegítima a opção de postergar tais gastos prioritários, sobretudo quando se verificar que houve alocação de recursos públicos, por exemplo, em festividades, shows e propaganda, ou ainda, quando forem concedidas novas renúncias de receitas por prazo indeterminado e sem pleno atendimento aos requisitos exigidos pelo artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal.

Programas de duração continuada e despesas insuscetíveis de contingenciamento são as prioridades indiscutivelmente eleitas no bojo das leis do ciclo orçamentário. Não cabe frustrar a primazia alocativa que lhes ampara, por meio de filas de espera, omissões regulamentares, restos a pagar, passivos judicializados e precatórios, entre outras estratégias de inversão de prioridades ao longo da execução do orçamento.

É premente que passemos a impor, de forma ampla e ostensiva, o dever de aderência do executado em face do planejado, salvo motivação que objetivamente circunstancie os eventuais desvios de rota. Essa, aliás, é a dimensão conceitual do que foi inscrito no §10 do artigo 165 da Constituição de 1988, pela Emenda 100/2019, a pretexto de impositividade orçamentária.

Entre a teoria e a prática, porém, vai uma longa distância. Infelizmente, no Brasil, nós não temos tido capacidade de pautar a ação estatal, para além do curto prazo eleitoral dos agentes políticos de ocasião. Falta-nos o horizonte de médio e longo prazos.

Sem esse olhar referido ao que almejamos no futuro para o conjunto das políticas públicas, a sociedade brasileira perde a capacidade de enfrentar os riscos de captura patrimonialista dos recursos governamentais.

A esse propósito, precisamos estar conscientes de que é impossível, na realidade brasileira contemporânea, falar de revisão das regras fiscais e de rediscussão qualitativa do teto, sem debatermos as razões pelas quais o planejamento não vincula execução orçamentária.

Por que não fiscalizamos a execução orçamentária, no mínimo, à luz dos pressupostos teóricos do controle do ato administrativo discricionário? No Direito Administrativo, é possível controlar se o motivo alegado para prática de determinado ato discricionário, de fato, existiu e, caso o motivo seja falso ou não seja consonante com a regra de competência, o ato pode vir a ser anulado.

Ora, precisamos considerar a execução orçamentária como uma série de atos administrativos, suscetíveis a controle, no mínimo, pelos prismas do dever de motivar, da existência e consistência dos motivos invocados para a prática do ato, do desvio de finalidade, da razoabilidade e da proporcionalidade, tal como já assentado na doutrina administrativista.

É premente a necessidade de impormos o ônus de motivação, caso o executado não seja aderente ao planejado, sobretudo à luz da impositividade orçamentária, como já dito prevista no §10 do artigo 165 da CF/1988. A noção de orçamento impositivo já é adotada em vários países desenvolvidos e essencialmente diz respeito ao dever de motivar a distorção entre planejado e executado.

Não obstante isso, as finanças públicas brasileiras ainda estão presas à retrógrada tese de insindicabilidade da discricionariedade orçamentária. Precisamos reconhecer que, de fato, a inversão de prioridades alocativas, que ocorre durante a execução orçamentária, ainda é muito pouco suscetível a controle. Para superar a frágil sujeição ao sistema de freios e contrapesos na seara fiscal, precisamos, porém, resgatar o planejamento como o eixo de ordenação legítima de prioridades, até porque esse é o fio da meada que permitirá o exercício do controle sem ofensa ao princípio da separação de poderes.

Para fortalecer o controle é preciso situá-lo como um esforço pedagógico capaz de retroalimentar o próprio planejamento. Ou seja, controle adequado é aquele que é reflexivo e obriga o gestor a aprimorar a concepção da política pública na próxima etapa de planejamento, na medida em que aponta seus vazios assistenciais e inconsistências de prognóstico.

Para superar a pecha de peça de ficção, os PPA’s estaduais e federal relativos ao próximo quadriênio devem incorporar os dados já disponíveis do Censo 2022 e o acúmulo hermenêutico das mais diversas instâncias de controle.

Eis o ponto de partida estrutural para um debate efetivamente sistêmico sobre a qualidade do gasto governamental e, por conseguinte, das próprias políticas públicas. É uma óbvia circularidade, mas, infelizmente, não é um caminho fácil de ser trilhado em nossa realidade orçamentária tão pouco reflexiva.

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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