Repensando as drogas

Polícia encontra maconha e dinheiro na casa de José. E agora, José?

Autor

21 de julho de 2023, 8h00

José foi preso por tráfico de drogas. Policiais militares contam que um transeunte que não quis se identificar disse que José guardava drogas em casa, que por isso foram até a casa de José e lá, a mãe dele permitiu que a guarnição entrasse. Dentro do imóvel, acharam várias buchas de maconha, já fracionadas e prontas para a venda. José, na delegacia, conta uma versão um pouco diferente: fala que já acordou com os policiais dentro da sua casa e que as buchas eram suas, para seu uso. A mãe do José nem ouvida foi. Mas o que vale é a palavra dos policiais.

José vai para a audiência de custódia e lá explicam para ele que não vão falar sobre os fatos, ou seja, sobre o motivo de ele ter sido preso. Querem saber só se ele sofreu alguma violação de direitos. A Constituição fala que a educação é um direito fundamental, mas José não completou nem o ensino fundamental, então aquilo tudo lhe parece um tanto abstrato.

ConJur
Notando que José não entendeu muito bem a explicação, o magistrado é mais direto e pergunta se a Polícia bateu nele. Não, não bateu. Então não, pelo jeito José não sofreu nenhuma "violação de direitos". José não completou o ensino fundamental, a porta da casa dele está quebrada, não explicaram em momento algum que ele tinha o direito de permanecer em silêncio, ele não teve acesso a advogado ou defensor na delegacia, mas não, ele não apanhou. O promotor pede a prisão preventiva de José, "em razão da gravidade do crime em concreto", já que o tráfico gera consequências nefastas para a sociedade.

José tinha maconha em casa e, segundo pesquisas científicas, é virtualmente impossível ter uma overdose fatal de maconha. Paracetamol, vendido sem prescrição médica na farmácia, tem mais chance de matar alguém por overdose do que a maconha. Álcool, além dos danos à saúde do usuário, é catalizador da prática de vários crimes, sobretudo os que envolvem violência doméstica e os crimes de trânsito. Mas o álcool e o paracetamol são legais e a maconha, não, e é o tráfico que gera consequências nefastas para a sociedade.

Qualquer tráfico de drogas gera consequências nefastas para a sociedade. Quase qualquer tráfico de drogas. Na verdade, principalmente o tráfico de drogas que ocorre na periferia, onde esse crime é muito, mas muito mais comum do que em qualquer outro lugar. Sim, porque essa quantidade de maconha que o José tinha é tráfico não só por ser maconha, mas por causa de onde ela estava. Se ela estivesse numa festa universitária, de meninos ricos e brancos, seria porte para uso pessoal. No máximo, na pior das hipóteses, seria porte com objetivo de oferecer para consumo coletivo. É que meninos ricos e brancos não precisam viver do tráfico, então claro que só portam drogas para fins recreativos, jamais para lucro. Não é o caso do José, que não é rico, nem branco, nem completou o ensino fundamental.

José nem tem emprego formal, já que ensino fundamental incompleto e emprego formal raramente andam lado a lado. Ele faz bicos, ganha seu sustento, faz umas dívidas de vez em quando, mas é claro que para ter aquela maconha ali, José só pode fazer parte do tráfico. E não é o policial, nem o promotor, nem o juiz que inventaram isso não. Está na Lei. Mais especificamente no § 2º do artigo 28 da Lei 11.343/06: "Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente".

O local e as condições em que se desenvolveu a ação, assim como as circunstâncias sociais e pessoais do José são as piores possíveis. É por isso que a maconha encontrada com ele, sem dúvida nenhuma, era para o tráfico. A dos meninos ricos e brancos da festa universitária não era.

O engraçado é que há buchas de maconha na festa dos meninos ricos e brancos com até mais frequência do que há na casa do José, mas a chance de pegarem a maconha da casa do José é bem maior. Primeiro porque para entrarem na festa dos meninos ricos e brancos, os policiais precisam ter mais habilidade, pedir licença, por favor e todas essas etiquetas que se espera nos lugares mais refinados. Já na casa do José as portas são, digamos assim, intrinsecamente mais abertas. Mas isso também tem outra explicação: é que o José mora numa região que foi classificada como "zona quente de criminalidade".

Essas zonas quentes de criminalidade são os espaços na cidade que precisam — e recebem — uma carga muito maior de policiamento ostensivo, porque é ali que acontece o maior número de crimes. A Polícia sabe disso porque é ali que ela faz o maior número de abordagens e, dentre essas abordagens, meia volta pegam alguma coisa ilícita com alguém. Ou na casa de alguém. Numa dessas casas que já têm as portas intrinsecamente mais abertas.

De fato, nunca ocorreu a eles passarem esse pente fino em bairros mais abastados — até porque sua presença não seria tão bem tolerada nesses locais —, mas é por aquele motivo que já mencionamos: pessoas mais abastadas não cometem ilícitos. Elas não precisam disso, então certamente que não cometem. Pelo menos não esse tipo de ilícito que traz as tais consequências nefastas para a sociedade. Então é preciso mesmo concentrar essas abordagens em bairros como o do José: lá mal chega transporte público, saneamento básico, iluminação ou escola que oferece o ensino fundamental que o José não completou. Mas a Polícia chega. Chega e faz muitas abordagens, que geram muitos registros, que permitem identificar que aquela ali é uma zona quente de criminalidade. Não os outros lugares, onde não são feitas abordagens.

O inquérito policial do caso do José é concluído em tempo recorde, não tanto pelo fato de José estar preso, mas principalmente porque o que se apurou no auto de prisão em flagrante já é suficiente. Um transeunte — que não foi ouvido ou sequer identificado — disse que José estava guardando drogas em casa, a Polícia foi até a casa de José e achou drogas. O levantamento da vida pregressa foi feito acessando outros registros policiais em que o nome do José aparece. Não necessariamente crimes praticados por José, mas ocorrências em que ele foi abordado ou em que transeuntes não identificados mencionaram o nome dele. Nos respectivos históricos, infere-se que José pode ter envolvimento com o tráfico.

No mundo, o tráfico de drogas movimenta cerca de US$ 32 bilhões de dólares por ano, segundo dados da ONU. Para isso, existe uma estrutura enorme e sofisticada, que utiliza aeronaves, helicópteros, aeroportos clandestinos, grandes veículos de carga. Veículos que José não poderia dirigir, pois não teria como passar na prova de legislação indispensável para tirar habilitação, já que não tem ensino fundamental. Contrastando com essa estrutura bilionária, na conta bancária do José não há quase dinheiro nenhum: o que entra já sai quase na mesma hora, para pagar as contas. Ainda assim, é inegável que processar e julgar o José por tráfico deve ser prioridade, por causa da gravidade em concreto do crime de tráfico praticado pelo José, que traz consequências nefastas para a sociedade.

A Delegacia investiga todos os tipos de crime da cidade de José e tem poucos investigadores, então é muito raro que tenham recurso para efetivamente investigar a vida do José ou de qualquer outro preso nas mesmas circunstâncias que ele, assim o inquérito é relatado com base no flagrante e nos outros registros em que o nome do José aparece.

O Ministério Público recebe os autos e oferece denúncia, entendendo que sem instruir aquele processo, não tem como saber se o que o José cometeu foi um tráfico privilegiado — para o qual caberia acordo de não persecução penal. Além disso, José não confessou o crime na delegacia. O promotor sabe que, nas instruções de tráfico, raramente aparece em juízo algo que não esteja já mencionado no inquérito e José não é reincidente, mas nessa fase, o promotor tem é que pensar em defender a sociedade desse tráfico praticado por José, e das suas consequências nefastas.

Chega o dia em que o José vai finalmente ser julgado. A situação não é boa para ele, afinal, o local e as condições da ação, as circunstâncias sociais e pessoais do José são péssimas. O primeiro policial é ouvido e repete o que já tinha feito constar no histórico da ocorrência: as drogas que estavam com o José já estavam fracionadas e prontas para a venda. José acha curioso aquilo, porque quando se compra droga, ela vem fracionada, já que estava pronta para a venda.

Mas José só pensa isso porque ele não tem estudo, nem terminou o ensino fundamental, portanto não tem a mesma capacidade de compreender o peso daquela informação como o juiz e o promotor têm. Ele não entende, por exemplo, a enorme diferença que existe entre ele ter maconha fracionada e pronta para venda e meninos ricos e brancos terem maconha fracionada. No caso dos meninos, é só fracionada, jamais pronta para a venda. Para piorar a situação, acharam na casa do José um dinheiro, quase R$ 300. Ninguém se ocupou de saber se o dinheiro era do José ou de outra pessoa que morava na casa — a casa tem cinco moradores —, porque isso não é necessário. José não tem emprego formal e tinha maconha em casa, então é óbvio que o dinheiro vem do tráfico que o José pratica e que traz consequências nefastas.

Vem o segundo policial e a situação do José só se agrava. Esse, além de confirmar tudo o que o primeiro disse, ainda acrescenta que via sempre o José circulando por lugar conhecido como ponto de venda de drogas e que já tinha abordado José outras vezes. José lembra que mora perto de uma biqueira, que todo mundo que mora no bairro dele mora perto de uma biqueira porque não existe ponto do bairro que não seja perto de uma biqueira.

Biqueiras no bairro de José são como entradas de metrô em Paris — uma referência mais palatável para os que irão julgar José —, você nunca está muito longe de uma. As biqueiras são bem mais numerosas do que os postos de saúde, os pontos de ônibus ou as escolas que oferecem o ensino fundamental. Mas José era visto perto de uma biqueira e já tinha sido abordado outras vezes, e isso é realmente péssimo, mesmo levando em conta que o José e a família dele não têm dinheiro para morar em um bairro onde biqueiras não são como os metrôs em Paris.

A terceira e última testemunha de acusação — também um policial militar — informa que era motorista da viatura e que permaneceu dentro do carro durante toda a ocorrência, mas confirma integralmente o que seus colegas de farda disseram. Ou seja, três testemunhas, que gozam de fé pública e fazem rotineiramente abordagens em bairros como o de José — onde a Polícia chega bem mais que a escola — disseram todas a mesma coisa: alguém disse que José tinha drogas em casa, eles foram até lá e José tinha mesmo.

Numa sala de audiência ao lado, um raro caso em que um menino rico e branco está sendo julgado por ter sido pego com uns 400 comprimidos de ecstasy. Ele não respondeu ao processo preso porque, ao contrário de José, ele não representa risco à ordem pública, já que ele é rico e branco, logo não há de viver do tráfico. Ele distribui habitualmente ecstasy para seus colegas de faculdade e recebe por isso, mas ele não é traficante como José. Esse comércio dele não traz as mesmas consequências nefastas que o tráfico do José traz. No processo do menino rico e branco, várias testemunhas atestam que aquele menino, tão rico e tão branco, é também tão bom: bom aluno, bom filho e bom irmão.

José também, graças à atuação ferrenha da Defensoria Pública, trouxe testemunhas como as do menino rico. Uma delas é, inclusive, sua mãe, que além de dizer que José também é um bom filho, bom irmão (bom aluno nunca foi, já que nem terminou o ensino fundamental), trabalhador e que ajuda com as despesas da casa, acrescenta que os policiais arrombaram a porta da residência e que ela não autorizou entrada nenhuma. Mas o depoimento da mãe do José não tem grande peso, é claro que ela vai mentir para proteger o filho. O testemunho da irmã de José vai pela mesma linha e também não tem muita relevância, pelos mesmos motivos.

No fim das contas, as testemunhas do menino rico e branco e as testemunhas do José, todas informantes e não testemunhas, dizem mais ou menos a mesma coisa: o réu é bom, honesto, não merece ir para a cadeia. Vem o interrogatório. O rapaz rico se expressa bem, diz que sabe que errou e que só gostaria de uma oportunidade de seguir com seus estudos e, quem sabe um dia, atuar ombro a ombro com aquele que, naquele momento, presidia seu julgamento. O magistrado pensa que é preciso levar em conta a juventude e inexperiência do moço.

José é um pouco mais jovem que esse rapaz rico e branco, mas aos olhos das pessoas na audiência ele não parece nem tão jovem, nem tão inexperiente. Além disso, ele não sabe usar bem o português, atropela a norma culta a cada frase e se embola quando o juiz o pressiona, perguntando qual motivo teriam os policiais para mentir sobre ele. Ele pensa que os policiais não mentiram, que eles disseram que acharam maconha na casa dele e realmente acharam. A conclusão que tiraram a partir disso, não só os policiais, mas todos os outros envolvidos no seu processo, é que o José acha mais difícil de entender. José pensa isso tudo, mas responde simplesmente que "não sabe", porque aquela situação já está intimidadora o suficiente.

Saem as respectivas sentenças. O menino rico e branco tem a conduta desclassificada para o § 3º do artigo 33 da Lei 11.343/06, pega uma pena de seis meses de detenção, substituída por restritiva de direitos. Vai recorrer em liberdade e a chance de prescrição é grande. O José também pega pena mínima: cincno anos de reclusão. Como já respondeu preso ao processo, agora com sentença condenatória é assim que vai continuar. A droga que o menino rico e branco portava era em maior quantidade. A substância, talvez mais nociva. O intuito ficou provado: era passar para os outros.

Ocorre que existe uma diferença importante entre os réus: meninos ricos e brancos, principalmente universitários, merecem uma segunda chance e mandá-los para a cadeia vai estragar o futuro deles. O caso de José é diferente, é a liberdade dele que estraga o futuro dos outros, por causa do tráfico que ele pratica e que traz consequências nefastas para a sociedade. Não há problema em estragar o futuro de José, porque José nunca teve futuro. Ele não sofreu violação de direitos porque não se pode violar o que não se tem. José nasceu no local errado, as condições em que se desenvolveu sua vida foram erradas, suas circunstâncias sociais e pessoais são erradas. Sua existência traz consequências nefastas para a sociedade e é papel do sistema de justiça criminal trazer consequências nefastas para ele.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!