Garantias do Consumo

Da responsabilidade efetiva de prestadores do mercado em linha

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19 de julho de 2023, 8h00

Regime de pretérito: a Directiva do Comércio Electrónico de 8 de junho de 2000 e sua interpretação pelo Tribunal de Justiça da UE
A responsabilidade dos prestadores de mercado em linha pela atuação dos parceiros que se servem das respectivas plataformas, no seio do mercado de consumo, para comerciar produtos do mais diverso jaez, era algo que de algum modo se não afirmava inequivocamente ante o regime estabelecido em 2000 pela Directiva do Comércio Electrónico (2000/31/CE), com data de 8 de junho de 2000 e a chancela do Parlamento Europeu.

Às abundantes fraudes perpetradas contra os consumidores sobrevinha, em princípio, a nula responsabilidade, como reação primitiva da ordem jurídica com o cunho das instâncias legiferantes da União Europeia.

E as dúvidas adensavam-se porque, ao que parece, a Directiva do Comércio Electrónico de 2000 não dava uma resposta efectiva à questão, antes  no intuito de favorecer a expansão da sociedade digital  eximia de responsabilidades os prestadores dos mercados em linha, nas múltiplas actividades por que se desdobravam, como estímulo que jamais deveria ser jugulado.

No entanto, convém sublinhar que o Tribunal de Justiça da União Europeia, no Processo C324/09 (L'Oréal v. eBay), aclarara o conceito de "ter conhecimento", consagrado no artigo 14 nº 1 da referenciada Directiva.

Com efeito, "o TJ-UE considerou, na circunstância, que quando o prestador de serviços em rede, em vez de se limitar a uma prestação neutra, através de um processamento puramente técnico e automático dos dados fornecidos pelos seus clientes, desempenha um papel activo susceptível de lhe facultar um conhecimento ou um controlo dos dados, não deverá ser havido como prestador intermediário e beneficiar da isenção de responsabilidade, nos termos previstos na normativa atinente ao comércio electrónico. Ademais, é suficiente para levantar a cortina de irresponsabilidade que tal operador tenha tido conhecimento de factos ou de circunstâncias com base nos quais um operador económico diligente devesse ter a noção da ilicitude em causa".

O TJ-UE esclarecera que o "conhecimento" deve ser interpretado in casu no sentido de qualquer situação em que "o prestador em causa toma conhecimento, por qualquer forma, de tais factos ou circunstâncias, abarcando as situações em que o operador de um sítio de comércio electrónico tem a noção da existência de uma actividade ou de uma informação ilegal na sequência de análise efectuada por sua própria iniciativa e em que a existência de uma tal actividade ou informação lhe é notificada".

No segundo caso, se é verdade que de uma notificação não se pode retirar automaticamente o direito à isenção da responsabilidade sob análise, já que as notificações são susceptíveis de se revelar insuficientemente precisas e demonstradas, não menos certo é que constitui, regra geral, elemento que o juiz nacional deve tomar em devida conta na sua apreciação, tendo em consideração as informações transmitidas ao operador, a realidade do conhecimento por este dos factos ou das circunstâncias com base nos quais um operador econômico diligente devesse dar-se conta da ilicitude.

Por outro lado, há que referir que o considerando 42 da Directiva 2000/31/CE esclarecia que as situações de exoneração de responsabilidade abrangiam exclusivamente os casos em que a actividade da sociedade da informação exercida pelo prestador de serviços revestisse caráter "puramente técnico, automático e de natureza passiva", o que implicaria que o referido prestador de serviços "não [tinha] conhecimento da informação transmitida ou armazenada, nem o seu controlo".

Neste contexto, o TJ-UE defendeu, no âmbito dos processos apensos C236/08 a C‑238/08 (Google France versus Louis Vuitton), que  a fim de verificar se a responsabilidade do prestador de serviços da sociedade de informação poderia ser limitada  "deve examinar‑se se o papel desempenhado pelo referido prestador é neutro, ou seja, se o seu comportamento é puramente técnico, automático e passivo, implicando o desconhecimento ou a falta de controlo dos dados que armazena".

Daí que cumpra fazer ressaltar este cambiante, que é de suma relevância no apuramento, em geral, de responsabilidade das plataformas matriz e na interpretação dos preceitos em apreciação.

O regime da Lei da Compra e Venda de Bens de Consumo, ora vigente em Portugal
Com a emergência da Lei da Compra e Venda dos Bens de Consumo (DL 84/2021, de 18 de Outubro), Portugal entendeu impor, em dados termos e de modo inequívoco, responsabilidades aos prestadores dos mercados em linha, nas relações jurídicas de consumo, algo que ali se estatuiu de forma expressa.

Com efeito, no seu artigo 44, uma tal disciplina se impôs, sob a epígrafe:

"responsabilidade do prestador de mercado em linha":
1) O prestador de mercado em linha [uma qualquer empresa como as que abrem a sua plataforma a outras empresas, onde se oferecem produtos e serviços do mais diverso jaez), parceiro contratual do fornecedor  que coloca  no mercado produto, conteúdo ou serviço digital,  é solidariamente responsável, perante o consumidor, pela  não conformidade que neles se verifique.

2) Considera-se que o prestador de mercado em linha é parceiro contratual do fornecedor sempre que exerça influência predominante na celebração do contrato, o que se verifica, designadamente, nas seguintes situações:

— O contrato é celebrado exclusivamente através dos meios disponibilizados pelo prestador de mercado em linha;

— O pagamento é exclusivamente efetuado através de meios disponibilizados pelo prestador de mercado em linha;

— Os termos do contrato celebrado com o consumidor são essencialmente determinados pelo prestador de mercado em linha ou o preço a pagar pelo consumidor é passível de ser influenciado por este; ou

— A publicidade associada é focada no prestador de mercado em linha e não nos fornecedores (como, em Portugal, no caso da Fnac, da Worten ou da OLX…).

1) Podem ser considerados, para aferição da existência de influência predominante do prestador de mercado em linha na celebração do contrato, quaisquer factos susceptíveis de fundar no consumidor a confiança de que aquele tem uma influência predominante sobre o fornecedor que disponibiliza o bem, conteúdo ou serviço digital.

2) O prestador de mercado em linha que não seja parceiro contratual de quem fornece o bem, conteúdo ou serviço digital deve, antes da celebração do contrato, informar os consumidores, de forma clara e inequívoca:
— De que o contrato será celebrado com o fornecedor  e não com o prestador de mercado em linha;
— Da identidade do fornecedor, bem como da sua qualidade de profissional ou, caso tal não se verifique, da não aplicação dos direitos previstos na lei; e
— Dos contatos do fornecedor para efeitos de exercício dos enunciados direitos.

3) O prestador de mercado em linha pode basear-se nas informações que lhe são facultadas pelo fornecedor, a menos que conheça, ou devesse conhecer, com base nos dados disponíveis relativos às transações em plataforma, que tal informação é incorreta.

O incumprimento do que se dispõe neste particular  determina a responsabilidade do prestador de mercado em linha.

O prestador de mercado em linha que, nos termos enunciados, se torne responsável perante o consumidor por declarações enganosas do fornecedor ou pelo incumprimento do contrato a este imputável, tem o direito de ser indemnizado pelo fornecedor, de acordo com a lei geral (opera neste passo o denominado "direito de regresso").

No entanto, a lei em apreço não aparelha uma qualquer outra sanção pela inobservância dos deveres de cuidado que a responsabilidade pressupõe, como é usual, no quadro das denominadas contra-ordenações econômicas passíveis de coima (montante em dinheiro) e de sanções outras, conceituadas como  acessórias.

Regulamento do Mercado Único dos Serviços Digitais de 19 de Outubro de 2022
Entretanto, a 19 de Outubro de 2022, o Parlamento Europeu e o Conselho fizeram editar, no Jornal Oficial, o Regulamento (UE) 2022/2065, do "Mercado Único dos Serviços Digitais", com modificações operadas na Directiva do Comércio Electrónico de 8 de junho de 2000.

E aí estatuíram  no que à  responsabilidade dos prestadores de serviços intermediários tange  um conjunto de regras atinentes a três hipóteses precisas, a saber:
— ao simples transporte,
— à armazenagem temporária e
— ao alojamento virtual, que de todo importa considerar.
 

a) No que se refere ao "simples transporte", eis o que se observará doravante:

No caso de prestações de um serviço da sociedade da informação que consista na transmissão, através de uma rede de comunicações, de informações prestadas pelo destinatário do serviço ou em facultar o acesso a uma rede de comunicações, o prestador do serviço não é responsável pelas informações transmitidas ou acedidas, desde que:
— Não esteja na origem da transmissão;
— Não selecione o destinatário da transmissão; e
— Não selecione nem modifique as informações objecto da transmissão.

As atividades de transmissão e de propiciamento de acesso no passo precedente enunciadas abrangem a armazenagem automática, intermédia e transitória das informações transmitidas, desde que tal armazenagem sirva exclusivamente para a execução da transmissão na rede de comunicações e a sua duração não exceda o tempo considerado razoavelmente necessário à referenciada transmissão.

Tal não afeta a possibilidade de uma autoridade judiciária ou administrativa, de acordo com o sistema jurídico do Estado-membro de que se trate, exigir do prestador de serviços que previna ou ponha termo a uma dada infracção.

b) Nas hipóteses de "armazenagem temporária (o caching)", eis o que ora se observa:
Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista na transmissão, através de uma rede de comunicações, de informações prestadas por um destinatário do serviço, o prestador do serviço não é responsável pela armazenagem automática, intermédia e temporária dessas informações, efetuada apenas com o objectivo de tornar mais eficaz ou mais segura a transmissão posterior das informações a outros destinatários do serviço, a rogo destes, desde que o prestador:

— Não modifique as informações;
— Respeite as condições de acesso às informações;
— Respeite as regras relativas à actualização das informações, indicadas de forma amplamente reconhecida e utilizada pelo sector;
— Não interfira com a utilização legítima da tecnologia, tal como amplamente reconhecida e utilizada pelo sector, aproveitando-a para obter dados sobre a utilização das informações; e
— Atue com diligência para suprimir ou bloquear o acesso às informações que armazenou, logo que tome conhecimento efetivo de que as informações foram suprimidas da rede na fonte de transmissão inicial, de que o acesso às mesmas foi bloqueado, ou de que uma autoridade judiciária ou administrativa ordenou tal supressão ou desactivação de acesso.

O disposto precedentemente não afeta, de novo, a possibilidade de uma autoridade judiciária ou administrativa, de acordo com o sistema jurídico do Estado-membro, exigir do prestador que previna ou ponha termo a uma dada infração.

c) Já no que tange ao denominado "alojamento virtual", eis o que rege o instituto:
Em caso de prestação de um serviço da sociedade da informação que consista na armazenagem de informações prestadas por um destinatário do serviço, o prestador do serviço não é responsável pelas informações armazenadas a pedido de um destinatário do serviço, desde que:

— Não tenha conhecimento efetivo da atividade ou conteúdo ilegal e, no que se refere a uma acção de indemnização por perdas e danos, não tenha conhecimento de factos ou de circunstâncias que evidenciem a ilegalidade da actividade ou do conteúdo; ou

— A partir do momento em que tenha conhecimento da ilicitude, actue com diligência no sentido de suprimir ou desactivar o acesso aos conteúdos ilegais.

O que precede não é aplicável nos casos em que o destinatário do serviço atue sob autoridade ou supervisão do prestador.

O que se dispõe antecedentemente não afeta de análogo modo a faculdade de uma autoridade judiciária ou administrativa, de acordo com o sistema jurídico do Estado-membro a que respeitar, exigir do prestador que previna ou ponha termo a uma dada infracção.

A fim de beneficiar da isenção de responsabilidade pelos serviços de alojamento virtual, o prestador deverá, a partir do momento em que tome conhecimento efecivo de atividades ou conteúdos ilegais, ou se houver sido alertado para o facto, proceder com a diligência devida em termos de suprimir tais  conteúdos ou bloquear o correspondente acesso.

A supressão ou a desativação do acesso efetuar-se-ão no  respeito pelos direitos fundamentais dos destinatários do serviço, incluindo o direito à liberdade de expressão e à informação.

Como se previne no preâmbulo do assinalado Regulamento, "o prestador pode tomar conhecimento efectivo dos conteúdos em causa, ou ser alertado para a natureza ilegal dos mesmos, através, nomeadamente, de investigações realizadas por iniciativa própria ou de notificações que lhe sejam apresentadas por pessoas ou entidades nos termos do Regulamento ora em vigor, contanto queque tais notificações sejam suficientemente precisas e adequadamente fundamentadas para permitir a um operador económico diligente identificar, avaliar e, se for caso disso, adoptar medidas, de forma razoável, contra os conteúdos alegadamente ilegais".

No entanto, um tal conhecimento efetivo ou a adequada advertência não pode ser considerado adquirido apenas pelo facto de o prestador ter conhecimento, em sentido geral, do facto de o seu serviço ser de análogo modo usado para armazenar conteúdos ilegais.

Além disso, o facto de o prestador indexar automaticamente informação carregada para o seu serviço, de dispor de uma função de pesquisa ou de recomendar informação com base nos perfis ou nas preferências dos destinatários do serviço não basta para provar que tal prestador tem um conhecimento "específico" das atividades ilícitas realizadas nessa plataforma ou dos conteúdos ilegais nela armazenados.

De harmonia com o que se contém nos consideranda do Regulamento, importa sublinhar que "A isenção de responsabilidade não será aplicável nos casos em que o destinatário do serviço actue sob autoridade ou supervisão do prestador de um serviço de alojamento virtual".

Se, v. g., o fornecedor de uma plataforma em linha que permite aos consumidores celebrar contratos à distância com comerciantes puder determinar o preço dos bens ou serviços oferecidos pelos comerciantes, poderá considerar-se que o comerciante atua sob a autoridade ou supervisão de uma tal plataforma em linha.

Exclusões no âmbito das relações jurídicas de consumo
As disposições precedentes  no que tange à isenção de responsabilidade  não são aplicáveis  no quadro do direito do consumo e das relações jurídicas a tal subjacentes, contanto se trate de plataformas em linha que permitem aos consumidores celebrar contratos à distância com comerciantes, sempre que tais plataformas apresentem o elemento específico de informação ou permitam, de qualquer outra forma, que a transação específica em causa induza um consumidor médio a acreditar que a informação, o produto ou o serviço objecto da transação é fornecido pela própria plataforma em linha ou por um destinatário do serviço que actue sob a sua autoridade ou supervisão.

Aliás, tal se previne, de forma mais ampla, no preâmbulo do próprio Regulamento dos Serviços Digitais de 19 de uutubro de 2022 (Regulamento UE 2022/2065) ao considerar-se que "A fim de assegurar a protecção efectiva dos consumidores quando efectuam transacções comerciais em linha que sejam objecto de intermediação, certos prestadores de serviços de alojamento virtual, nomeadamente plataformas em linha que permitam aos consumidores celebrar contratos à distância com comerciantes, não deverão poder beneficiar da isenção de responsabilidade aplicável aos prestadores de serviços de alojamento virtual previstos no… regulamento, na medida em que essas plataformas em linha apresentem as informações pertinentes relacionadas com as transacções em causa de uma forma que induza os consumidores a acreditarem que tais informações foram fornecidas por essas mesmas plataformas em linha ou por comerciantes que actuem sob a sua autoridade ou controlo, e que portanto essas plataformas em linha conhecem ou controlam as informações, mesmo que, na realidade, tal não seja o caso".
"São exemplos desse comportamento, uma plataforma em linha não apresentar claramente a identidade do comerciante, tal como o exige o presente regulamento, uma plataforma em linha recusar divulgar a identidade ou dados de contacto do comerciante até após a celebração do contrato celebrado entre o comerciante e o consumidor, ou uma plataforma em linha comercializar o produto ou serviço em seu próprio nome, em vez de utilizar o nome do comerciante que irá fornecer esse produto ou serviço.
Neste contexto, deverá determinar-se, de forma objectiva, com base em todas as circunstâncias pertinentes, se a apresentação é passível de induzir um consumidor médio a acreditar que a informação em causa foi prestada pela própria plataforma em linha ou por comerciantes que actuem sob a sua autoridade ou supervisão."

Em conclusão
1) As isenções de responsabilidade dos prestadores do mercado em linha (plataformas que oferecem o alojamento virtual a fornecedores outros) para que, com atenuações pontuais, apontava a Directiva do Comércio Electrónico de 8 de junho de 2000, com tradução em normativos nacionais dos estados-membros, estão  no que em particular tange às relações jurídicas de consumo , em dados termos, ultrapassadas,

2) Quer por normativo com a chancela do legislador pátrio  Lei de Compra e Venda de Bens de Consumo de 18 de Outubro de 2021 (DL 84/2021: artigo 44) – que  consagra expressamente uma tal responsabilidade, observados determinados requisitos,

3) Quer por mor do Regulamento "Serviços Digitais" de 19 de outubro de 2022, do Parlamento Europeu e do Conselho que consigna expressamente um tal desígnio no seu artigo 6º.

Autores

  • é antigo professor da Universidade de Paris d’Est, director do CEDC (Centro de Estudos de Direito do Consumo de Coimbra) e fundador e primeiro presidente da AIDC (Associação Internacional de Direito do Consumo).

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