Direto do Carf

Além do consequencialismo econômico: Tema nº 985 e ordem de sobrestamento

Autor

  • Ludmila Mara Monteiro de Oliveira

    é doutora em Direito Tributário pela UFMG com período de investigação na McGill University conselheira titular integrante da 2ª Turma Ordinária da 2ª Câmara da 2ª Seção do Carf e professora de Direito Tributário da pós-graduação da PUC-Minas.

19 de julho de 2023, 9h15

Diversos veículos de comunicação noticiaram, nos últimos dias, a decisão, proferida pelo ministro André Mendonça, do STF (Supremo Tribunal Federal), de "decretar a suspensão, em todo o território nacional, dos feitos judiciais e administrativos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão presente no Tema nº 985 do ementário da Repercussão Geral, nos termos do artigo 1.035, § 5º, do CPC".[1]

Mas não só o comando exarado pela Corte Constitucional ganhou os holofotes. Frisado e repisado o montante envolvido na disputa ensejadora da ordem de sobrestamento: dito que R$ 100 bilhões poderão "custar às empresas". De bom alvitre lembrar que, a depender do referencial adotado, igualmente acertado pontuar que "poderão deixar de ingressar nos cofres públicos R$ 100 bilhões" ou ainda que "a sociedade perderá R$ 100 bilhões que poderiam ser investidos em políticas públicas".

Spacca
A bem da verdade, passada a hora de "reconhecer que não existe mercado 'no vácuo'". "Todo mercado é fruto de um conjunto de regras emanadas do processo político, que moldam as relações econômicas da sociedade. Sem um aparato institucional que lhes dê suporte, não existem mercados, ou mesmo capitalismo."[2] Daí o porquê, a contraposição que sói ser posta entre tais atores, além de insubsistente, parece ser também contraproducente.

A fundamentação de uma decisão a partir da análise das consequências econômicas produzidas, como inadvertidamente noticiada, acaba por "abr[ir] um flanco para requerimentos de prestação de contas cujo atendimento estará sujeito a critérios científicos (extrajurídicos) de adequação".[3] Passaria o Direito, portanto, a ser colonizado por sistema que opera em lógica distinta — a da relação "lucro e prejuízo" —, o que implica em riscos para a própria legitimidade e estabilização de uma sociedade que se pretenda democrática.[4]

Não se está a se rechaçar todo e qualquer tipo de abordagem consequencialista. Como bem propõe Piscitelli, "argumentos cujo o foco esteja voltado para a realização ou mitigação de um desses elementos [provimento de recursos ao Estado para desempenho dos deveres que lhe são atribuídos ou promoção da justiça fiscal, em especial a distributiva], tendo em vista as consequências decorrentes da universalização da decisão judicial, serão argumentos consequencialistas válidos e, portanto, argumentos jurídicos passíveis de integrar a justificação de uma dada decisão judicial".[5]

Firmadas essas premissas, mister fazermos uma digressão histórica para, a partir daí, analisar os motivos que, deveras, motivaram a ordem de sobrestamento de todos os processos, seja em âmbito administrativo, seja em âmbito judicial, que versem sobre a incidência de contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias gozadas.[6]

Em 2014, sob a sistemática dos recursos repetitivos, decidiu o STJ (Superior Tribunal de Justiça) que "[e]m relação ao adicional de férias concernente às férias gozadas, tal importância possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa)".[7] Naquela oportunidade, frisado ainda que, a 1ª Seção daquele Tribunal teria, em 2010,[8] consolidado a orientação "no sentido de afastar a contribuição previdenciária do terço de férias também de empregados celetistas contratados por empresas privadas".

Embora encerrada no STJ, reconhecida a repercussão geral da matéria pelo Guardião da Constituição, no bojo do RE nº 593.068 (Tema de nº 163). O fato de o precedente ter sido firmado sob a forma do então vigente art. 543-C do CPC/73 fez com que impactos fossem sentidos no âmbito do Carf.

Isso porque, por ser o órgão responsável por exercer tão-somente o controle de legalidade do ato administrativo de lançamento, vedado às conselheiras e aos conselheiros "afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob o fundamento de inconstitucionalidade", exceto em algumas hipóteses, dentre as quais está a "[d]ecisão definitiva do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento realizado nos termos dos arts. 543-B e 543-C da Lei nº 5.869, de 1973, (…)" — ex vi da alínea "b" do inciso II do §1º do artigo 62 do Regimento Interno do Carf (Ricarf). Igualmente de observância obrigatória são as decisões definitivas de mérito, proferidas pela sistemática dos recursos repetitivos, em matéria infraconstitucional — ex vi do §2º do artigo 62 do Ricarf.

Ocorre que, embora definitiva a discussão no STJ, pendente de apreciação pelo STF, o que acabou por ensejar debates acerca do alcance da expressão "decisão definitiva", empregada no artigo 62 do Ricarf.

Três correntes então se formaram: uma primeira, majoritária na Câmara Superior, entendendo que, por não ter transitado em julgado a decisão proferida pelo STJ, haveria de ser mantida a incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias gozadas. Dito que "[n]os termos artigo 62 do Regimento Interno do Carf, aprovado pela Portaria 343 de 09 de junho de 2015, enquanto não transitado em Julgado decisão do STJ acerca da não incidência de contribuição previdenciária sobre um terço de férias, aviso prévio indenizado e 15 primeiros dias do auxílio doença ou auxílio acidente, não se pode afastar regra expressa do Decreto nº 3048/99 quanto à incidência de Contribuições Previdenciárias". [9]

Uma segunda vertente, afastando a exigência, sob o argumento de que "o Superior Tribunal de Justiça já julgou tais teses de não incidência em recurso especial representativo de controvérsia (…), [sendo] de observância obrigatória pelo Carf, conforme preleciona o artigo 62, § 1º, inc. II, alínea "b", do seu Regimento Interno".[10] Dito que, por não ostentar o recurso extraordinário efeito suspensivo, "até que o STF aborde a matéria interpreto que a decisão do STJ goza de plena aplicabilidade, portanto, dotada de caráter vinculante devendo nos termos do Regimento Carf ter sua posição reproduzida por este Conselho".[11]

E, por derradeiro, uma terceira linha argumentativa que, a despeito de reconhecer a inexistência de precedente de observância obrigatória, nos termos do artigo 62 do Ricarf, entende pela não incidência das contribuições previdenciárias sobre a verba. Pontuado que "tendo em vista a pendência de análise pelo STF, entendo como razoável adotar o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre os temas, como expresso no REsp nº 1230.957 RS, em razão da reiterada jurisprudência da Corte Superior que se consubstancia em entendimento dominante. Tal aplicação ocorre com base no que a doutrina denomina de precedente com eficácia persuasiva, na medida em que, segundo Fredie Didier, tal decisão constitui indício de uma solução racional e socialmente adequada, pois emanada do Poder Judiciário, inclusive, em reiteradas ocasiões". [12]

Malgrado tenha o julgamento do RE nº 593.068 sido concluído pela Corte Constitucional, não houve o trânsito em julgado porquanto sobrestado o citado recurso extraordinário até o deslinde de outro RE, de nº 1.072.485/PR (Tema nº 985), que visava perquirir a "natureza jurídica do terço constitucional de férias, indenizadas ou gozadas, para fins de incidência da contribuição previdenciária patronal". Passados seis anos da decisão firmada sob a sistemática do artigo 543-C do CPC/73, em uma guinada,[13] entendeu o Tribunal Pleno do STF, ser "legítima a incidência de contribuição social, a cargo do empregador, sobre os valores pagos ao empregado a título de terço constitucional de férias gozadas". [14]

O julgamento dos embargos de declaração, embora iniciado em março de 2021, todavia sequer possuiu data para conclusão, tendo o ministro Barroso inaugurado a divergência para propor a atribuição de efeitos ex nunc, a contar de 15 de setembro de 2020, data da publicação da ata de julgamento do recurso extraordinário, com a ressalva de que as contribuições pagas e não impugnadas até o retromencionado marco temporal não seriam restituídas.

Neste contexto em que proferida a ordem de sobrestamento dos feitos versando sobre a temática da incidência das contribuições previdenciárias sobre o terço constitucional de férias gozadas. A justificativa apresentada pelo ministro André Mendonça repousa na tentativa de "evitar resultados absolutamente anti-isonômicos entre contribuintes em situações equivalentes, por força e obra de prestação jurisdicional desta Corte".[15] 

Acrescendo que a "providência acautelatória faz-se, ainda, mais urgente em face da ausência de previsão referente ao julgamento definitivo dos embargos declaratórios e o cenário encontrado no Plenário Virtual, em que se notava, até o pedido de destaque, uma divisão entre cinco ministros de um lado e, de outro, quatro ministros no tópico da modulação de efeitos".[16]

A compreensão da controvérsia demonstra que, em verdade, o que está em jogo são os princípios da segurança jurídica e da isonomia. Embora grandes cifras ostentem grande apelo prático, não são capazes de conferir justificativa para a modulação dos efeitos da decisão proferida pelo STF, eis que os tão noticiados R$ 100 bilhões verterão ou para os cofres públicos ou contas privadas.

O nó górdio não está em consequências financeiras, que sempre podem ser igualmente aventadas por ambas as partes. Com os olhos voltados para o futuro, mas sem negligenciar o passado é que devem os ministros e ministras que compõem a Suprema Corte decidir definitivamente a controvérsia que há muito lhes foi devolvida para que, a partir daí, possam os milhares de processos administrativos e judiciais seguirem seu curso.

*Este texto não reflete a posição institucional do CARF, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[1] O § 5º do art. 1.035 do CPC dispõe que “reconhecida a repercussão geral, o relator no Supremo Tribunal Federal determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional.”

[2] BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves; MAGALHÃES, Tarcísio Diniz; OLIVEIRA, Ludmila Mara Monteiro de. Liberalismo, desigualdade e direito tributário. Revista Brasileira De Estudos Políticos, v. 110, 2015, p. 217/272, p. 222/223. Disponível em: <https://doi.org/10.9732/323>. Acesso em: 18 jul. 2023.

[3] SCHUARTZ, Luis Fernando. Consequencialismo Jurídico, Racionalidade Decisória e Malandragem. Revista de Direito Administrativo, v. 248, 2008, p. 130/158, p. 133. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.12660/rda.v248.2008.41531>. Acesso em: 18 jul. 2023.

[4] CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. A Resposta Correta: Incursões Jurídicas sobre as Teorias da Justiça. Belo Horizonte: Arraes, 2011, p. 219/220.  

[5] PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando Pelas Consequências no Direito Tributário. São Paulo: Noeses, 2011, p. 235.

[6] No tocante ao adicional de férias relativo às férias indenizadas, a não incidência de contribuição previdenciária decorre de expressa previsão legal – ex vi da al. “d” do §9º do art. 28 da Lei nº 8.212/91, com redação dada pela Lei nº 9.528/97.

[7] STJ. REsp nº 1.230.957/RS, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJe de 18/3/2014.

[8] STJ. AgRg nos EREsp nº 957.719/SC, Rel. Min. CESAR ASFOR ROCHA, DJe de 16.11.2010.

[9] CARF. Acórdão nº 9202-006.464, Cons.ª Rel.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA VIEIRA, sessão de 30 jan. 2018 [desempate pelo voto de qualidade].

[10] Cf. o voto vencido do Cons. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI em: CARF. Acórdão nº 9202-008.540, Cons. Rel. JOÃO VICTOR RIBEIRO ALDINUCCI. Redator Designado MAURÍCIO NOGUEIRA RIGHETTI, sessão de 29 jan. 2020 [desempate pelo voto de qualidade].

[11] Cf. a declaração de voto da Cons.ª ANA PAULA FERNANDES em: CARF. Acórdão nº 9202-006.464, Cons.ª Rel.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA VIEIRA, sessão de 30 jan. 2018 [desempate pelo voto de qualidade].

[12] Cf. a declaração de voto da Cons.ª ANA CECÍLIA LUSTOSA DA CRUZ em: CARF. Acórdão nº 9202-006.464, Cons.ª Rel.ª ELAINE CRISTINA MONTEIRO E SILVA VIEIRA, sessão de 30 jan. 2018 [desempate pelo voto de qualidade].

[13] Até aquela assentada, vinha o STF reiteradamente pontuando ser a matéria de natureza infraconstitucional – cf. ARE nº 1.260.750, bem como os RE nºs 611.505, 814.204 e 892.238.

[14] STF. RE nº 1072485, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 31/08/2020, DJe  01/10/2020. 

[15] Cf. a decisão monocrática proferida nos últimos dias do mês passado em: <<https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15359228128&ext=.pdf>. Acesso

[16] Idem.

Autores

  • é doutora em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), com período de investigação na McGill University; pós-doutora e mestra pela UFMG; vice-presidente da 2ª Seção do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais); conselheira da 2ª Turma da CSRF (Câmara Superior de Recursos Fiscais do Carf); professora.

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