Opinião

É possível a limitação do direito à filiação partidária de servidores públicos civis?

Autor

  • Jonathan de Mello Rodrigues Mariano

    é procurador federal professor convidado de pós-graduação da Universidade Vale do Rio Doce (Univale) em Governador Valadares (MG) mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) mestrando em Direito da Cidade pela Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) especialista em Direito Administrativo Econômica pela PUC-RJ (Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro) e especialista em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

17 de julho de 2023, 16h22

Recentemente, a imprensa noticiou que o diretor-geral da PF anunciou a elaboração de projeto de lei que impeça os policiais federais (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas) de se filiaram a partidos políticos, assim como os que desejarem se candidatar deverão pedir exoneração de seus cargos efetivos, com o cumprimento de quarenta de dois anos [1].

Nada obstante as razões que motivaram o diretor-geral da PF tenham legitimidade para impedir a instrumentalização da instituição para fins de satisfação de interesse pessoal, certo é que o anúncio traz uma questão jurídica importante como pano de fundo: poderia o ordenamento jurídico brasileiro limitar o direito à filiação partidária de servidores públicos civis, inclusive os da área de segurança pública?

As reflexões ora expostas não refletem o entendimento da instituição profissional a que se encontra vinculado este autor, mas sim são ponderações acadêmicas para contribuir com o debate público.

Pois bem. Os servidores públicos em geral, ao contrário dos particulares sem vínculo estatutário ou contratual do Estado, sujeitam-se a regime jurídico distinto em relação às liberdades públicas enquanto no exercício da função pública. Trata-se do que se convencionou denominar doutrinariamente de relação de sujeição especial [2].

Esse raciocínio legitimou diversas decisões ao longo dos anos na jurisprudência pátria, como, por exemplo, a ausência de direito adquirido às regras de afastamento, de licença, de remuneração [3] e de variados aspectos benéficos aos servidores. Quer-se dizer: os servidores públicos não podem se opor à mudança legislativa, sob o argumento de que possuem direito adquirido a determinado regime jurídico, quando ainda não completaram quaisquer dos requisitos autorizadores para o gozo dos benefícios até então vigentes.

A presença do regime de sujeição especial não afasta, porém, direitos e garantias reputadas fundamentais a qualquer cidadão, inclusive os servidores públicos. A filiação partidária enquadra-se como uma das esferas de composição de direitos políticos dos cidadãos em geral, não podendo, dessa forma, ser limitada sem qualquer justificativa razoável e, caso o seja, deverá ser utilizado o instrumento normativo correto.

De pronto, pode-se destacar que a limitação da filiação partidária a toda e qualquer categoria de servidor público civil é desproporcional e irrazoável, uma vez que o regime de sujeição especial não pode servir como justificativa para suprimir parte essencial do exercício de direito político no cenário brasileiro, considerando que o ordenamento jurídico exige a filiação partidária para o exercício da capacidade eleitoral passiva (ser votado), na forma do inciso V, §3º, artigo 14 da CRFB/1988.

E não só. Qualquer mudança pela via legislativa ordinária (lei ordinária ou complementar) violaria a própria lógica constitucional estabelecida pelo artigo 38 da CRFB/1988, que fornece a base do regime jurídico-constitucional do servidor eleito para o exercício de mandato eletivo, cujo pressuposto, por conta da configuração do sistema político-eleitoral brasileiro, é a filiação a determinado partido político.

Por isso, infere-se que existe um óbice constitucional material à imposição de impedimento ao direito à filiação partidária pela legislação ordinária (lei ordinária ou complementar), já que, se o Constituinte previu a possibilidade de o servidor ser eleito, logicamente pressupôs a legitimidade do exercício do direito de filiação partidária, uma vez que, sem ela, o servidor não é titular da capacidade eleitoral passiva (ser votado) e, por consequência, de ser sujeito aos ditames do art. 38 da CRFB/1988.

Atente-se, aliás, que esse limite se estende aos servidores públicos civis atuantes na área de segurança pública. Não se pode esquecer que os policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, são servidores públicos, ocupantes de cargos públicos efetivos, investidos através de concurso público e sujeitos a regime jurídico estatutário.

O termo "servidores públicos", consagrado no artigo 38 da CRFB/1988, abrange inevitavelmente os policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, motivo pelo qual a limitação ao direito à filiação partidária encontra o mesmo óbice material, caso se prossiga por uma alteração por via ordinária (lei ordinária ou complementar).

Não seria possível estender o precedente do STF (Supremo Tribunal Federal) de que os policiais civis não possuem direito de greve (Tema 541 de repercussão geral) para sinalizar tratamento distinto aos policiais em geral quanto à possibilidade de restrição ao direito de filiação à partidária para concorrer a cargo eletivo.

O impedimento do exercício do direito de greve tem uma razão de ser, já que, com a sua admissão, a sociedade estaria sujeita a viver numa situação de desordem e de anarquia, diante da inação do Estado em manter a segurança e os demais valores fundamentais da sociedade brasileira que são o espírito da própria Constituição.

A retirada da filiação partidária não se escora nessa mesma justificativa. Na verdade, o fato de policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, serem filiados a partido político não lhes retira, nem mesmo os isenta, enquanto servidores públicos civis, de exercerem as suas atividades dentro da legalidade, com zelo e dedicação, assim como de acordo com as diretrizes administrativas da instituição.

Ao mesmo tempo em que não se pode tolerar a limitação ao direito à filiação partidária, também não é possível admitir o descumprimento de ordem superiores legais e hígidas por policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, apenas por divergência a respeito de ideologias político-partidárias ou apenas partidárias dos superiores que se encontram ocasionalmente à frente da instituição.

No serviço público, em qualquer categoria profissional, essa prática de desobediência por diferença de posicionamento político-ideológico não pode ser tolerada, razão pela qual a sua presença deve culminar em punição disciplinar, após o respeito ao devido processo legal, ao servidor que assim agir.

O único caminho imaginável para superar esse óbice constitucional material aplicável a toda e qualquer categoria de servidor público civil, inclusive policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais,, quanto à alteração pela via ordinária (lei ordinária ou complementar), seria a aprovação de emenda à Constituição. Isto é, seria o instrumento normativo, em tese, possibilitador da limitação do direito à filiação partidária de determinada categoria de servidores públicos.

Ocorre que a limitação irrestrita do direito à filiação partidária a toda e qualquer categoria de servidor público civil violaria o núcleo essencial do direito político na esfera da capacidade eleitoral passiva (ser votado), pois retirar-se-ia do cidadão uma garantia inerente à vida em sociedade apenas por ocupar determinado cargo público.

Trata-se de uma restrição fulminadora de parte do núcleo essencial de direito fundamental, sem que exista qualquer justificativa razoável e, quiçá, com correspondência no mundo civilizado democrático.

A bem da verdade, a emenda à Constituição poderia apenas restringir o direito à filiação partidária a uma categoria de servidores públicos civis, desde que houvesse justificativa plausível para tanto, como já acontece, por exemplo, com relação a magistrados e a membros do Ministério Público (inciso III, parágrafo único, artigo 95 e alínea "e", inciso II, artigo 128, ambos da CRFB/1988).

O ponto alto dessa reflexão vem agora: essa justificativa plausível existiria para os policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais? A resposta parece negativa, por duas razões.

A primeira refere-se à admissão, se assim o for, de imposição de regime de sujeição especial mais gravoso das corporações policiais civis em comparação às instituições militares, que também se enquadram na condição de "braço armado do Estado".

Numa perspectiva comparativa, pode-se deduzir que a imposição de condicionantes aos militares na ativa sejam os das Forças Armadas, sejas os policiais militares, para o exercício de sua capacidade eleitoral passiva, na forma do §8º, do artigo 14, da CRFB/1988, acontece em razão de as instituições militares se encontrarem num patamar de proteção e de preservação a debates políticos bem superior que o das corporações policiais.

Isso porque os militares, por uma questão de organização de hierarquia e de disciplina, devem se sujeitar a um regime mais restritivo em relação à sua organização institucional e funcional. Com efeito, não seria possível tolher os policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, do exercício da capacidade eleitoral passiva (ser votado), quando aos militares lhes é reconhecida essa faculdade, desde que adotem determinadas posturas funcionais a depender do tempo de serviço na caserna.

Assim, a proposta de que seria necessária a exoneração e o respeito a determino tempo de quarentena, como anunciado inicialmente pelo atual diretor-geral da Polícia Federal, viola a própria lógica do sistema constitucional, já que haveria a imposição de um regime de sujeição especial dos policiais em geral mais gravoso do que a dos militares.

A segunda relaciona-se com uma análise de proporcionalidade mais ampla, e não de perfil comparativo. Existem caminhos menos gravosos do que a limitação ao direito de filiação partidária a policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, com o objetivo de evitar o uso indevido da imagem da instituição para alavancagem político-eleitoral.

Exemplo disso seria o impedimento do uso de insígnias, de distintivo e de nomenclatura de cargo que ocupam em mídias sociais, em anúncios publicitários e na urna eletrônica enquanto prenome político-eleitoral, assim como a previsão de um regime de sujeição especial sancionador mais gravoso ao policial que assim agisse.

Trata-se de opção restritiva que se coaduna com o regime de sujeição especial dos agentes de segurança pública, enquanto "braços armados do Estado", que alcançará na mesma proporção o objetivo final desejado de evitar a instrumentalização da instituição para a satisfação de interesses pessoais relativos ao sistema político-eleitoral, garantindo-lhes, entretanto, o pleno gozo das faculdades componentes do direito político fundamental.

Com isso, pode-se deduzir que, mesmo que se opte pela limitação por meio de emenda constitucional, como visto, ainda persistirá a existência de óbices constitucionais materiais de impedimento aos policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais.

Em resumo, o raciocínio desenvolvido permite chegar a duas reflexões conclusivas a respeito da pergunta objeto deste artigo:

1) a limitação do direito à filiação partidária a toda e qualquer categoria de servidor público civil viola o núcleo essencial do direito político na esfera da capacidade eleitoral passiva (ser votado) e, logo, é inconstitucional; e

2) a conclusão de inconstitucionalidade também não se altera mesmo se a categoria for de policiais em geral (agentes, delegados de polícia, peritos e papiloscopistas), federais ou estaduais, uma vez que a restrição ao direito à filiação partidária de tais agentes da segurança pública, ainda que através de emenda à Constituição, não passaria no exame de proporcionalidade comparativo em relação ao regime de sujeição especial eleitoral dos militares ou na análise de proporcionalidade mais ampla quanto à possibilidade de traçar caminhos menos gravosos de restrição de direitos fundamentais de tais servidores públicos civis.

 


[2] Wimmer, M. (2010). As Relações de Sujeição Especial na Administração Pública. Direito Público, 4(18). Recuperado de https://www.portaldeperiodicos.idp.edu.br/direitopublico/article/view/1291. Acesso em 11 de julho de 2023.

[3] Súmula 27/STF: Os servidores públicos não têm vencimentos irredutíveis, prerrogativa dos membros do Poder Judiciário e dos que lhes são equiparados.

Autores

  • é procurador Federal, mestrando em Direito e Políticas Públicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e em Direito da Cidade pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), especialista em Direito Administrativo Econômico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), professor da pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil da Universidade Vale do Rio Doce (Univale) e membro do Instituto de Direito Administrativo do Rio de Janeiro (Idarj).

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