Direito Civil Atual

Estatuto do Torcedor é revogado com prejuízos aos consumidores

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17 de julho de 2023, 15h18

No Brasil, há duas décadas, iniciou-se a vigência da Lei nº 10.671/2003, que instituiu o Estatuto de Defesa do Torcedor, assegurando-lhe a devida proteção nos eventos esportivos. Em 14 de junho deste ano, o referido diploma legal foi integralmente revogado pela Lei nº 14.597, intitulada de Lei Geral do Esporte.

A novel estrutura normativa congrega também aspectos atinentes à denominada "Lei Pelé" e ao financiamento dos desportos, tendo substituído o inteiro teor, respectivamente, das Leis 8.650/93, 10.891/04 e 12.867/13. Encontra-se composta por quatro títulos que versam acerca do Ordenamento Esportivo Nacional, da Ordem Econômica Esportiva e da Integridade e a Cultura da Paz no Esporte. Objetiva a presente coluna abordar, especificamente, sob a ótica cível, os itens extirpados do EDT e os acrescidos, que geram prejuízos para os consumidores espectadores dos certames, não adentrando as demais temáticas.

ConJur
Nota-se, de logo, no caput do artigo 142, da LGE, previsão esdrúxula e inadmissível, segundo a qual as relações de consumo "regulam-se especialmente por esta Lei, sem prejuízo da aplicação das normas gerais de proteção ao consumidor". Ora, a Lei nº 8.078/90 volta-se para a ordem pública e o interesse social, não pairando ilações de que as suas normas, gerais ou especificas, nortearão tais liames.

Em caso de conflito entre a Lei Geral do Esporte e o CDC, este prevalecerá devido à regência de todos os contratos firmados entre os destinatários finais e os fornecedores de bens [1]. Nos parágrafos 1º e 2º do precitado dispositivo, vislumbram-se regras que não se coadunam com o microssistema em epígrafe, visto que tencionam mitigar a responsabilidade solidária assegurada pelos artigos 7º, parágrafo único, e 25, parágrafo 1º, do CDC [2].

Considera-se fornecedora a pessoa jurídica responsável pela organização da competição "em conjunto com a organização esportiva detentora do mando de campo, se pertinente, ou, alternativamente, as duas organizações esportivas competidoras" (grifou-se). Estatui que "as demais pessoas naturais ou jurídicas que detenham os direitos de realização da prova ou partida" podem também encaixar-se neste conceito. A solidariedade entre as referidas pessoas jurídicas decorre do imperativo legal emanado do CDC [3] e não de conjecturas se será oportuna ou apropriada, como registrado na LGE, prevalecendo as regras oriundas do microssistema. Outra restrição é identificada quando estabelece que as entidades, administradoras e reguladoras de modalidade esportiva em âmbito nacional, "caracterizam-se como fornecedoras relativamente a eventos esportivos por elas organizados".

A responsabilidade das organizações com atuação em nível federal não poderá ser limitada aos certames que estruturam, mas, também, estende-se a outros, que, conquanto, não os liderem, mantenham-se inertes ou omissas quanto às providências necessárias para a proteção dos consumidores. O EDT, no artigo 3º, equiparava à figura do fornecedor, sem quaisquer restrições, as sobreditas entidades [4].

O § 3º do artigo 176 da LGE prevê que "Não se confunde a torcida organizada com a organização esportiva por ela apoiada" e, no § 6º, consta que "o dever de reparar o dano é responsabilidade da própria torcida organizada e de seus dirigentes e membros". Ao que parece, tencionou-se eximir a referida pessoa jurídica da responsabilidade diante dos danos causados aos espectadores. Entrementes, será viável pugnar, judicialmente, que a entidade desportiva também responda pelos prejuízos gerados pelos seus apoiadores, pois tem o dever de os orientar e acompanhar as suas ações, evitando-se os desmandos e atos de violência.

A venda dos ingressos constitui serviço que deverá estar pautado na antecedência, organização e segurança. A Lei Geral do Esporte, no artigo 143, caput, reduziu o prazo para a sua disponibilização, alterando-o de 72 horas, como previsto no Estatuto do Torcedor, para 48. O maior prazo garantia melhor planejamento para a a compra, evitando-se balbúrdia e conflitos.

Nas competições de envergadura nacional ou regional, de primeira e segunda divisões, a atividade será realizada em, no mínimo, cinco postos de venda localizados em distritos diferentes da cidade. Regra esta que já estava presente no EDT, mas a LGE previu a exceção para o seu cumprimento caso a oferta pela internet supra, com eficiência, a efetivada em locais físicos. É crucial que os órgãos e as entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor fiscalizem o fiel cumprimento desta normativa, sobretudo quanto aos hipervulneráveis e às dificuldades para acessar o sistema informatizado.

Alteração substancial é visualizada no caput do artigo 149, que trata do dever de promover a segurança do espectador nos certames esportivos. Enquanto o Estatuto do Torcedor determinava, no artigo 14, que seria incumbência da entidade detentora do mando de jogo e de seus dirigentes, a Lei Geral do Esporte a atribui à organização esportiva diretamente responsável pela realização do evento e aos seus respectivos gestores.

Compete-lhe comunicar, aos órgãos competentes, a previsão do certame, solicitar agentes públicos de segurança e estruturar de serviço de orientação e profissionais da seara da saúde, nos mesmos moldes do EDT. Dispõe o parágrafo 1º do citado artigo 149, que a disponibilização de uma ambulância, para cada 10 mil torcedores, é dever do detentor do direito de arena ou similar e, antes, teria que ser executada pelo titular do mando. Há a transferência de responsabilidade para terceiros — prática taxada abusiva pelo artigo 51, III, do CDC[5].

No artigo 152 do Lei Geral do Esporte, detecta-se mais uma regra que conflita com a premissa da responsabilidade solidária e objetiva congraçada pelo CDC, posto que a limita às organizações esportivas regionais, às que disputarão a prova ou a partida e aos seus dirigentes, não mencionando as entidades de abrangência nacional. Os prejuízos causados aos espectadores decorrentes de falhas de segurança nos certames devem ser atribuídos a todas as entidades beneficiadas e não apenas às organizadoras e competidoras. É visível a total dissonância destas regras com a essência propulsora do Código de Defesa do Consumidor: a responsabilidade solidária e objetiva de todos aqueles que obtêm proveitos com as atividades econômicas e não apenas de um ou outra pessoa jurídica envolvida.

Involução também identifica-se no artigo 151 da LGE ao registrar o dever de ser implementado plano de ação, para a segurança, o transporte e as contingências, apenas no que tange aos eventos com público superior a 20 mil pessoas. O EDT, no artigo 17, exigia que fossem estruturados independentemente de qualquer expectativa de comparecimento, possibilitando uma maior proteção para os consumidores [6]. Houve inovação quanto aos laudos técnicos, expedidos pelos órgãos públicos competentes, pois, deverão ser apresentados não somente ao Ministério Público, como é cediço, mas também à Autoridade Nacional para Prevenção e Combate à Violência e à Discriminação no Esporte. Ocorre que o artigo 182, caput, da LGE, que tratava da criação da Anesporte, foi vetado, não se tendo conhecimento se, a posteriori, realmente, será implementada, colocando em dúvida a promoção da integridade e a cultura da paz no esporte.

A transparência na organização e execução das competições sofreu retrocessos, conquanto o artigo 187 da LGE garanta a ética e o fair play, primando pelo equilíbrio financeiro. Apontam-se quatro ocorrências que afetam o direito de o consumidor se inteirar das regras norteadoras dos eventos: 1) ampliação de prazos para a divulgação de dados pertinentes; 2) a supressão de regras sobre o critério técnico para se admitir a participação de entidade esportiva; 3) a eliminação de dispositivos sobre a apresentação de significativas informações; e 4) o relacionamento entre os espectadores em face da justiça desportiva, do ouvidor, dos árbitros e das entidades participantes, perpassou por involuções.

Quanto à primeira, o regulamento, as tabelas e o nome do ouvidor serão expostos até 45 dias antes do início do evento e não mais com 60 dias de antecedência. As eventuais sugestões, apresentadas pelos interessados, terão que ser submetidas ao conselho arbitral, composto por todas as organizações de prática esportiva integrantes da competição, para deliberação por maioria — regra não contemplada pelo EDT [7]. O documento final será veiculado com a precedência de 30 dias, sendo anteriormente 45 dias.

O EDT, no artigo 10º §§ 1º a 5º, com a redação atribuída pela Lei nº 13.155/15, detalhava as regras sobre o critério técnico para a habilitação de entidade de prática desportiva, determinando que fossem considerados a colocação obtida em competição anterior e o cumprimento de relevantes requisitos. Dentre estes, estavam a comprovação da regularidade fiscal e junto ao FGTS, a quitação de débitos trabalhistas e outros perante os atletas.

A LGE não contemplou tais exigências e não traz menção ao princípio do acesso e do descenso nos campeonatos ou torneios regulares com mais de uma divisão, conforme disposto pelos parágrafos 2º e 3º daquele mesmo artigo. No artigo 193, limitou-se a referir-se tão somente ao desempenho no anterior certame — aspectos que conflitam com os direitos dos consumidores à transparência e à informação [8].

Os artigos 5º a 8º do EDT asseguravam a publicidade e a transparência na organização das competições, competindo às entidades divulgar, em sítio eletrônico, importantes dados, mas que foram extirpados pela LGE. Havia obrigatoriedade quanto à apresentação da íntegra do regulamento, das tabelas da competição, do nome do ouvidor, das formas de contato e da escalação dos árbitros. Os borderôs completos das partidas deveriam ser publicizados e, durante a sua realização, os torcedores tinham resguardado o direito à exposição da renda obtida. Este dado seria disponibilizado pela entidade organizadora da competição por intermédio dos serviços de som e imagem instalados no local, coadunando-se com o direito à informação dos consumidores.

O EDT esmiuçava o direito de o torcedor manter contato com o ouvidor, a arbitragem, a justiça desportiva e as entidades participantes, como se depreende da análise dos revogados artigos 6º e 32 a 36. Contudo, não foram mantidas as regras sobre o amplo acesso a tais profissionais e as prerrogativas de se receber respostas diante de pleitos formulados.

A LGE, nos artigos 173 a 177, garante, respectivamente, a "incerteza do resultado esportivo", a prevenção e o combate à manipulação do desfecho do evento, não se admitindo o conluio e os atentados à imprevisibilidade. Sem embargo, nos artigos 194 a 197, não obstante a referência a uma arbitragem independente, imparcial, previamente remunerada e isenta de pressões, deixou de consignar prerrogativas inquestionavelmente consideráveis. Não manteve a regra que garantia a escolha dos árbitros mediante sorteio ou audiência pública, no mínimo, 48 horas antes de cada rodada, com transmissão ao vivo pela rede mundial de computadores, sob pena de nulidade [9].

Conclui-se que a revogação do EDT e sua inserção parcial na LGE, além de dificultar o conhecimento e a interpretação pelo povo, devido à mescla de normas diversas, eliminou proeminentes regras sobre a segurança e a informação. Urge que o SNDC manifeste-se sobre o tema e adote a providências pertinentes em prol dos consumidores.

 


[1] O art. 40 do EDT estabelecia que a defesa dos interesses e direitos dos torcedores, em juízo, observará, no que couber, a mesma disciplina da Lei n.º 8.078/90.

[2] Cf.: ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Direito do Consumo. Coimbra: Almedina, 2005, p. 179-189. ALABART, S. D.; ÁLVAREZ MORENO, M. T. In: S. D. Alabart (Coord.) Manual de Derecho de Consumo. Madrid: Editorial Reus, S.A, 2016, p. 21-41. BARENGHI, Andrea. Diritto dei Consumatori. Milano: Wolters Kluwer, 2018, p. 135-164.

[3] Cf.: MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 283-318.

[4] SILVA, Joseane Suzart Lopes da. Estatuto do Torcedor. Coleção Leis Especiais para Concursos. Salvador: Editora JusPodivm, 2019, p. 33.

[6] SILVA, Joseane Suzart Lopes da. Direito dos Torcedores. A Proteção Jurídica dos Torcedores no Brasil. Eventos Esportivos com Dignidade, Informação e Segurança. Curitiba: Juruá, 2017, p. 134.

[7] Cf.: PINTO, Ronaldo Batista; GOMES, Luiz Flávio; OLIVEIRA, Gustavo Vieira de. Estatuto do Torcedor Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 88.

[8] No que concerne à precisão e à clareza nas relações de consumo, conferir: CALAIS-AULOY, Jean; TEMPLE, Henri. Droit de la consommation, Paris: Dalloz, 2010, p. 55-90. RAYMOND, Guy. Droit de la Consommation. 5. ed. Paris: LexisNexis, 2019, p. 343-356.

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