Controvérsias Jurídicas

Estupro real, virtual, simulação de arma e análise de casos

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

17 de julho de 2023, 14h18

Constitui crime de estupro, punido com reclusão de seis a dez anos, constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso (CP, artigo 213).

Constranger significa forçar, coagir qualquer pessoa, homem ou mulher, a submeter-se à prática de ato libidinoso, não importando se a vítima tem nenhuma, pouca ou grande vivência sexual. Se menor de 14 anos, o crime será mais grave, estupro de vulnerável, com pena privativa de liberdade de oito a 15 anos.

Conjunção carnal é a relação sexual completa, mediante cópula vagínica. A conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso forçado pode caracterizar estupro, excluídas apenas palavras ou escritos eróticos, que não se equiparam a atos. A vítima pode ser obrigada tanto a agir ativa, como ser constrangida a praticar sexo oral no delinquente, quanto passivamente, quando obrigada a permitir que seus seios ou órgão genital sejam apalpados, ou a submeter-se a coito anal.

O ato libidinoso pode também manifestar-se sem o contato de órgãos sexuais, como por exemplo, mediante inserção de objetos na vagina da vítima. Se a vítima for constrangida a praticar atos libidinosos em si própria, como masturbação ou penetração de objetos lascivamente em si mesma, também haverá estupro. O estupro pode ser praticado mediante violência física ou psicológica, a chamada grave ameaça, atuando sobre o psíquico da vítima com força intimidadora para reduzir sensivelmente sua capacidade de querer.

O mal prometido pode ser dirigido contra a própria vítima ou contra terceiros (prometer que vai matar a vítima ou seus familiares, ou humilhá-los gravemente em público). Com a evolução tecnológica, muitos criminosos têm adotado uma nova modalidade de crime sexual, o chamado estupro virtual. O delinquente faz contato com a vítima por meio da internet, usando as redes sociais. Pode tanto conquistar aos poucos, sua confiança, simulando relações amistosas, como ameaça-la já no primeiro contato.

A ameaça é feita virtualmente, muitas vezes dizendo ter foto comprometedora da vítima, a qual muitas vezes lhe foi cedida de boa-fé por ela própria. Para dar credibilidade à ameaça do delinquente, após algum tempo uma outra pessoa (em geral, a mesma usando perfil diferente) faz contato com a vítima dizendo que tomou conhecimento da existência da sua imagem íntima e que ela já é de domínio público.

Quando a vítima já está aterrorizada, é feita a chantagem, obrigando-a, mediante a grave ameaça de exposição pública, a praticar sexo consigo mesma, masturbando-se, fazendo-se penetrar lascivamente objetos ou praticando algum ato sexual com terceiros. Esse comportamento hediondo também é considerado estupro, na forma do art. 213 do CP. É a chamada autoria indireta ou mediata, na qual o sujeito serve-se de outra pessoa sem condições de reagir ou discernir para, em seu lugar, praticar a ação delituosa. Mesmo sem realizar os atos materiais de execução (não é o estuprador que realiza os atos sexuais na vítima), ele é considerado o autor da infração.

Quem convence uma criança a se matar, não pratica induzimento ao suicídio, mas homicídio, pois usou alguém privado de discernimento para realizar a ação homicida desejada. Quem constrange a vítima e terceiros ao ato sexual, para satisfação da própria lascívia, é considerado pela legislação penal como o próprio autor do estupro. No caso do estupro virtual, a gravidade da ameaça exercida sobre a vítima e terceiros, faz com que autem não como autores, mas meros instrumentos comandados pelo estuprador, autor indireto do crime. Transformam-se em longa manus para satisfação da perversão mental de um sádico.

Spacca
Tema também polêmico se refere à caracterização da grave ameaça. Na hipótese de simulação de arma de fogo, por exemplo, quando o agente, fingindo estar armado, constrange a vítima a atos sexuais contra sua vontade. Alguns tribunais equivocadamente chegam a desclassificar o crime de estupro para o de importunação sexual — artigo 215-A, CP, in verbis: "Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro"  Pena: reclusão, de um a cinco anos, se o ato não constituir crime mais grave.

Na realidade, mesmo não estando efetivamente armado e a vítima não ter sido exposta a uma situação de perigo real, a ameaça deve ser considerada grave, pois teve a capacidade de influir na vontade da vítima e submetê-la ao ato sexual forçado.

Os crimes são bem distintos. No estupro (CP, artigo 213), a vítima é constrangida, mediante o emprego de violência ou grave ameaça, a praticar ou permitir que com ela se pratique a conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso. Por sua vez, na importunação sexual (CP, artigo 215-A), embora o ato libidinoso seja praticado sem a anuência da vítima, não há o emprego de violência ou grave ameaça.

A simulação de arma é grave ameaça, configurando meio idôneo e apto a provocar intimidação. Desta forma, não é imprescindível a existência de risco objetivo e concreto à vítima para que a ameaça se configure como grave.

Esse é o entendimento consolidado do STJ (Superior Tribunal de Justiça) no que tange ao conceito de grave ameaça no crime de roubo: "É pacífico o entendimento deste Tribunal de que a simulação de emprego de arma de fogo configura grave ameaça, elementar do crime de roubo" [1]. O mesmo Tribunal, em julgado de lavra do ministro Rogério Schietti Cruz, define ameaça como "a intimidação de outrem, que, na hipótese de crime de roubo, pode ser feita com o emprego de arma, com a sua simulação, ou até mesmo de forma velada" [2].

No momento do crime, a vítima não possui mecanismos de verificação de autenticidade da arma portada pelo agressor, situação que por si só é suficiente para eliminar sua resistência aos atos libidinosos, configurando a elementar da grave ameaça trazida no texto do artigo 213. CP. Arrematando a questão, em recente julgado, o STJ decidiu que "A simulação de arma de fogo pode sim configurar a grave ameaça para os fins do tipo do artigo 213 do Código Penal" [3].

Em outro caso, dois adultos, um de gênero masculino, o outro feminino, visando à recíproca satisfação sexual, passaram a tirar fotos da genitália da filha menor do adulto do gênero feminino. Posteriormente, o do gênero masculino passou a exigir que a mãe se fotografasse tocando as partes íntimas da filha e lhe enviasse as imagens por celular. Depois de descoberta a abjeta interação lasciva do casal com a infante, o Ministério Público ofereceu denúncia assim discorrendo: "durante vários momentos do diálogo mantido entre os adultos, são enviadas fotos, pela mãe da menor ao denunciado, nas quais o órgão genital da criança é exibido. Não obstante, a pedido do denunciado, a mãe chega a fazer sexo oral na própria filha, filmando e enviando o arquivo para ele" [4].

O adulto do gênero masculino foi processado e condenado em 1ª instância pela prática dos delitos contidos no artigo 241-A do Estatuto da Criança e do Adolescente [5] e 217-A do Código Penal (estupro de vulnerável). Em sede recursal, o Tribunal de Justiça manteve a condenação. Em habeas corpus impetrado no STJ, a defesa do adulto do gênero masculino alegou atipicidade da conduta invocando, como principal argumento, o fato de não ter mantido contato físico com a vítima.

De acordo com os argumentos da defesa, a ausência de contato físico entre o adulto e a menor impossibilitou a prática da conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso, motivo pelo qual sustentaram a absolvição do agente do crime de estupro de vulnerável.

Acertadamente a tese defensiva não foi acolhida pelo STJ. Conforme se verifica no texto do artigo 217-A, CP, a prática do delito se configura com qualquer ação libidinosa, não sendo exigido o contato físico entre o agressor e a vítima. Nesses casos, o simples ato de olhar a vítima nua com o objetivo de satisfazer a própria lascívia já é suficiente para a caracterização do crime de estupro ou estupro de vulnerável.

"Na prática de atos libidinosos, a vítima também pode desempenhar, simultaneamente, papeis ativo e passivo. Nessas duas condutas  praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso é dispensável o contato físico de natureza erótica entre o estuprador e a vítima." [6]

No mesmo sentido, Rogério Sanches: "De acordo com a maioria da doutrina, não há necessidade de contato físico entre o autor e a vítima, cometendo o crime o agente que, para satisfazer sua lascívia, ordena que a vítima explore seu próprio corpo (masturbando-se), somente para contemplação (tampouco há que se imaginar a vítima desnuda para a caracterização do crime" [7].

Quanto à desnecessidade de contato físico entre agressor e vítima para o cometimento do crime de estupro, assim entende o STJ: "Em situações excepcionais, tem-se que o crime de estupro pode se caracterizar, inclusive, em situações nas quais não há contato físico entre o agente a vítima" [8]. "A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração de ação penal para apuração do delito de estupro de vulnerável. Segundo a posição majoritária na doutrina, a simples contemplação lasciva já configura o ato libidinoso descrito nos artigos 213 e 217-A do Código Penal, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido" [9].

Conforme pode ser verificado nos ensinamentos doutrinários e nas decisões de nosso Tribunal Superior, a objetividade jurídica dos crimes contra a dignidade sexual vai muito além da violação física dos corpos das vítimas. O fato da pessoa da vítima (interação do físico, mental e intelectual) ser utilizada como meio de satisfação da lascívia do agente, já configura o delito sexual.

Nesse sentido, prescinde-se do contato físico entre o autor e a vítima, e até mesmo da vítima em si própria, vez que é plenamente admitida a contemplação lasciva como meio de ação para o delito. Nesses casos, bastaria que a vítima expusesse partes de seu corpo ou ficasse em posições eróticas a mando do agressor para que o estupro se consumasse. No caso sob análise, o adulto do gênero masculino, mesmo não tendo contato físico com a vítima menor de 14 anos, agiu asquerosamente em conluio com a mãe da menor para que a lascívia de ambos fosse satisfeita, razão pela qual a condenação por estupro de vulnerável permaneceu.

 


[1] STJ, 5ª Turma. HC 229.221/SP, relator ministro Gurgel de Faria, julgado em 23/06/2015.

[2] STJ, 6ª Turma. REsp 1294312/SE, relator ministro Rogério Schietti Cruz, julgado em 25/10/2016.

[3] STJ, 6ª Turma. REsp 1.916.611-RJ, relator ministro Olindo Menezes (desembargador convocado do TRF 1ª Região), julgado em 21/09/2021 (Info 711).

[4] CAVALCANTE, Marcelo André Lopes. Principais julgados do STF e STJ Comentados, São Paulo, Ed. JusPodium, 2022, p. 935.

[5] Artigo 241-A, ECA. Oferecer, trocar, disponibilizar, transmitir, distribuir, publicar ou divulgar por qualquer meio, inclusive por meio de sistema de informática ou telemático, fotografia, vídeo ou outro registro que contenha cena de sexo explícito ou pornográfica envolvendo criança ou adolescente: Pena  reclusão, de três a seis anos, e multa.

Artigo 217-A, CP. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos: Pena  reclusão, de oito a 15 anos.

[6] MASSON. Cleber. Código Penal Comentado, 2ª edição, São Paulo, Ed. Método, 2014, p. 825).

[7] SANCHES. Rogério. Manual de Direito Penal: parte especial, 8ª edição, Salvador, Ed, JusPodium, 2016, p. 460.

[8] STJ, 5ª Turma. HC 611.511/SP, relator ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Dje 15/10/2020.

[9] STJ, 5ª Turma. RHC 70976-MS, relator ministro Joel Ilan Paciornik, julgado em 02/08/2016 (Info 587).

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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