Observatório Constitucional

Terceira etapa da reforma tributária: o STF e as cláusulas pétreas

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15 de julho de 2023, 8h00

A recente aprovação da Proposta de Emenda Constitucional nº 45, de 2019, na Câmara dos Deputados, após décadas de estudos e trabalhos legislativos, representa um passo importante num debate que há muito permanecia latente no Congresso Nacional. Desde os anos 1990, foi se estabelecendo certo consenso de que o sistema tributário brasileiro — complexo, regressivo e anacrônico — carecia de mudanças. Contudo, nunca havia sido possível construir os caminhos necessários para efetivamente levar a cabo uma reforma tributária ampla. Até hoje.

A palavra está agora com o Senado, onde já tramita a PEC nº 110, de 2019, em muito convergente com a proposta aprovada na Câmara dos Deputados: criação de IVA (ou IBS), base ampla, crédito financeiro e princípio do destino. Mas esta coluna não tem por objeto o debate legislativo, nem pretende este artigo discutir o conteúdo da proposta aprovada ou apresentar sugestões para a próxima etapa do processo legislativo. Trata dos momentos seguintes do debate constitucional, quando o Supremo Tribunal Federal vier a se debruçar sobre a matéria, e dos precedentes que a corte já firmou sobre os limites à reforma constitucional, inclusive em matéria tributária.

Discutir os limites constitucionais da reforma não representa, nesse caso, antecipar uma terceira etapa do processo reformador, a fase judicial. No diálogo constitucional, os precedentes firmados no STF influenciam os próprios contornos do debate parlamentar e muitas vezes motivam também reações legislativas, no nível da lei e da Constituição, em resposta a decisões do tribunal. Foi o que se viu, por exemplo, na Emenda Constitucional nº 33, de 2001, que autorizou a incidência de ICMS sobre a importação de bens destinados a pessoa física, e da Emenda Constitucional nº 39, de 2002, que acrescentou ao texto constitucional a competência para contribuição para custeio do serviço de iluminação pública.

Quanto à reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados, em outros trabalhos acadêmicos [1] já sustentamos que seus principais desafios são três: superar o obstáculo da rigidez constitucional, administrar os conflitos federativos e garantir a autonomia financeira dos entes subnacionais. Rigorosamente, são elementos que se entrelaçam, três perspectivas de um mesmo objeto.

Como se sabe, o sistema tributário brasileiro é peculiar. Tem bases especialmente rígidas, estabelecidas no nível da própria Constituição. Para redefini-las é preciso alterar o texto constitucional, com efeitos relevantes na partilha de receitas e na distribuição da carga tributária entre diferentes segmentos econômicos e contribuintes.

Uma mudança assim passa por um esforço singular de composição de conflitos e administração de disputas federativas, horizontais e verticais, em torno de novas — e velhas — bases tributárias. Depende também da superação de um certo estado de desconfiança federativa, que nos assombra há anos e parece resultar de expectativas de recomposições fiscais frustradas, como no caso da compensação prevista na Lei Kandir e na Emenda Constitucional nº 42, de 2003, matéria inclusive julgada pelo STF na ADO 25, de relatoria do ministro Gilmar Mendes.

No contexto de uma economia que, cada vez mais, torna-se digital, reformar a tributação — notadamente a que incide sobre o consumo — significa redefinir ou abandonar conceitos que servem de lastro para a partilha de competências no Brasil, evitando lacunas e sobreposições. É ainda caminhar para a superação e.g da velha dicotomia mercadoria-serviço, da lista taxativa e, sobretudo, de certa maneira de aplicar esses conceitos que ainda insiste em solucionar controvérsia tributárias da era digital com princípios do direito romano.

As décadas de demora no Congresso Nacional mostraram que essa não é uma tarefa fácil, especialmente quando se trata de reformas amplas e profundas, como a aprovada na Câmara dos Deputados. Além disso, há limites de conteúdo, que a própria Constituição estabelece no §4º do artigo 60, na forma de cláusulas pétreas, sob pena de desnaturar-se. Nenhuma delas é específica para o campo tributário, mas duas revelam-se particularmente importantes nessa temática: as que vedam emendas tendentes a abolir "a forma federativa de Estado" e "os direitos e garantias individuais".

O Supremo Tribunal Federal em diversos julgados, sob a égide da Constituição de 1988, firmou a orientação no sentido de que as limitações constitucionais ao poder de tributar são cláusulas pétreas. Os princípios tributários, como e.g. o da anterioridade e o da irretroatividade, asseguram direitos fundamentais dos contribuintes. A imunidade recíproca, por sua vez, decorre do pacto federativo.

Precisamente com esse fundamento, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a ADI 939, de relatoria do ministro Sidney Sanches, declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos da Emenda Constitucional nº 3, de 17/3/1993 — criadora do Imposto sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira (IPMF) — que permitiam que a nova exação fosse exigida sem observância às limitações ao poder de tributar previstas no artigo 150, III, "b" (princípio da anterioridade) e VI (imunidades tributárias).

Foi esse o primeiro julgado no qual o STF conheceu de uma ação direta contra uma emenda à Constituição e provavelmente também a primeira vez que o tribunal assentou a leitura extensiva que erigiu as limitações ao poder de tributar ao patamar de cláusulas pétreas. A orientação firmada nesse julgamento a respeito das limitações ao poder de tributar influenciou decisivamente a jurisprudência do STF e foi, posteriormente, reaplicada em outros casos decididos pela corte, como, por exemplo, o Recurso Extraordinário nº 587.008, relatado pelo ministro Dias Toffoli e julgado em 6/5/2011, e a Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.661, relatada pelo ministro Marco Aurélio e julgada em 20/10/2011.

Essa maneira de ler a Constituição assenta as balizas do debate da reforma constitucional tributária, que se mostram especialmente desafiadoras, quando se trata de reformas amplas que extinguem, fundem, substituem ou criam exações.

No texto aprovado para a PEC 45, de 2019, há exemplos de disposições que afastam ou excepcionam limitações ao poder de tributar. A alteração promovida na redação do §1º do artigo 150 afasta a aplicação do princípio da anterioridade em relação ao exercício financeiro (artigo 150, III, "b") para os impostos seletivos sobre "produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente". A regra do artigo 149-B, parágrafo único, excepciona a aplicação da imunidade prevista no artigo 195, § 7º, em relação à contribuição sobre bens e serviços (artigo 195, V). A previsão do §1º do artigo 129 do ADCT determina a não aplicação do princípio da anterioridade nonagesimal (artigo 150, III, "c") em relação às alíquotas de referência fixadas pelo Senado Federal. O artigo 9º, §5º, I, da emenda afasta a aplicação do princípio da legalidade tributária (artigo 150, I) à revisão anual do valor do crédito presumido concedido ao produtor rural.

A bem da verdade, é discutível se todas essas hipóteses configuram verdadeiras exceções a limitações constitucionais ao poder de tributar ou se apenas esclarecem hipóteses em que essas disposições já não seriam naturalmente aplicáveis. Mas não é isso que está em questão neste artigo.

O ponto para o qual queremos chamar atenção é que, levada à risca a orientação adotada na ADI 939 — e reafirmada em diversas outras decisões posteriores — alguns desses dispositivos e outros que podem eventualmente ser incluídos no Senado seriam de duvidosa constitucionalidade. Sim, porque não poderia uma emenda constitucional afastar uma limitação constitucional ao poder de tributar. As exceções seriam apenas as previstas no texto constitucional originário, não caberiam outras.

No entanto, não nos parece que essa seja a forma mais adequada de ler os julgados do STF, tampouco a disposição do artigo 60, §4º, da Constituição, quando o que se discute é uma reforma tributária ampla como a proposta na PEC 45. Sem negar a importância desses precedentes nem ignorar a maneira como eles influenciam o pensamento tributário vigente e talvez a própria formulação de alguns dispositivos da PEC 45, é fundamental reconhecer que as circunstâncias são outras.

Não estamos a discutir ajustes pontuais ou o acréscimo de novas exações à ordem jurídica vigente. A proposta é mudar todo o sistema de tributação do consumo: substituir impostos, criar competências, modificar as regras de partilha de receitas e propor novos arranjos institucionais de deliberação federativa. Admitir uma interpretação menos restritiva, nesse quadro, não parece ir de encontro ao núcleo duro da Carta Constitucional. Afinal, trata-se de um redesenho da tributação do consumo de forma global, não da inclusão de mais um tributo, como no caso julgado pelo STF na ADI 939.

A maneira ampla e profunda como se apresenta o debate legislativo é relevante para a interpretação das mudanças propostas. Veja-se ao menos um exemplo particularmente ilustrativo. Aprovada a PEC, o IPI deixará de existir, de acordo com a regra de transição. Mas está prevista a competência para a instituição do imposto seletivo (IS), a incidir sobre "produção, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente". A emenda previu para o IS a mesma exceção antes aplicável ao IPI: ambos escapam à vedação da alínea "b" do inciso III do artigo 150 da Constituição, isto é, a proibição de cobrar tributos no mesmo exercício financeiro em que haja sido publicada a lei que os instituiu ou aumentou. Há nisso violação de cláusula pétrea? Não. Substituíram-se tributos, redesenhou-se a tributação do consumo de forma ampla.

Essa ordem de ideias, aliás, não se coloca apenas quanto aos chamados direitos fundamentais dos contribuintes, senão também em relação às regras de partilha de receitas e divisão de competências tributárias, que têm estreita conexão com a forma federativa de Estado e repercutem na autonomia dos entes subnacionais. É válida uma emenda constitucional que altere a competência tributária dos entes subnacionais suprimindo impostos (e.g. ICMS e ISSQN)? Mudanças dessa ordem afetam o pacto federativo? Eliminam a autonomia dos entes subnacionais? O Conselho Federativo pensado para o (novo) Imposto sobre Bens e Serviços é compatível com o pacto federativo firmado em 1988?

Com questionamentos assim, entre outros, foram impetrados ao menos dois mandados de segurança, no Supremo Tribunal Federal: o MS 39.289, pelo deputado Luiz Philippe de Orleans e Bragança, e o MS 39.303, pelo deputado Alexandre Ramagem. Ambos são de relatoria do ministro Luiz Fux. Nenhum deles foi apreciado até o momento.

Também aqui é fundamental enxergar a amplitude do movimento institucional proposto: uma reforma ampla da tributação do consumo. Recusar de todo a possibilidade de reunir impostos, criar novos foros de debate federativo e — sim, também isso — redistribuir recursos na federação é aceitar que estamos fadados a permanecer com um sistema tributário pensado nos anos 1960, cujas bases tributárias já mostram sinais de erosão, e que não se revela plenamente capaz de lidar com todos os desafios que nossa sociedade em rede e nossa economia, cada vez mais, digital apresentam.

O fato é que, desde 1988, o STF não lidou com uma reforma constitucional tributária ampla, como a proposta na PEC 45, de 2019. Nunca decidiu caso similar ou parecido. E a razão é simples: tal reforma nunca houve sob a égide da Constituição vigente. Todos os casos decididos cuidavam de alterações mais ou menos pontuais no texto da Constituição. Os precedentes foram firmados nessas circunstâncias.

Num sistema tributário rígido como o nosso, no qual a tributação do consumo está fragmentada nos três níveis da federação e, pelo menos, cinco tributos diferentes, mudanças amplas demandam novos arranjos federativos e outras formas de cobrar impostos e partilhar receitas.

Fazer alterações dessa magnitude, sem soluços nem hiatos, no quadro de uma sociedade que tem pressa e de uma economia que muda rápido e se digitaliza, é tarefa árdua, quase impossível. Mas sua primeira etapa legislativa já foi vencida na Câmara dos Deputados por 382 votos. Há pelo menos mais duas pela frente, uma legislativa e outra judicial. Com os ajustes e debates necessários, que nenhuma delas tarde.

 


[1] CORREIA NETO, Celso de Barros et al. A Tributação na Era Digital e os Desafios do Sistema Tributário no Brasil. Revista Brasileira de Direito – IMED, v. 15, p. 145-167, 2019

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