Ambiente Jurídico

A relação entre coisas antigas e o patrimônio cultural

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

15 de julho de 2023, 8h00

A palavra "antigo", com o significado daquilo que se conserva há muito tempo, vetusto, tem sua origem no latim "antiquus" e adjetiva, em grande medida, coisas que merecem respeito, estudos e admiração pelo seu alargado lapso temporal de existência, sendo se lembrar, a propósito, as frases dos filósofos Plutarco (Queroneia, 46 d.C. — Delfos, 120 d.C.), para quem "ignorar as vidas dos homens da antiguidade é continuar sempre na infância" e Confúcio (Tsou, 551 a.C. — Qufu, 479 a.C.), que recomendava: "estude o passado se quiser decifrar o futuro".

No campo do Direito do Patrimônio Cultural, merecem proteção aqueles bens que são dotados de especial significado e valor[1] (não dizem respeito apenas à antiguidade), podendo compreender, por exemplo, atributos arquitetônicos modernos (como a cidade de Brasília e o Conjunto da Pampulha, reconhecidos como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco) ou a vinculação e uso por personagens de relevo para a trajetória civilizacional do país (a exemplo da casa de Chico Mendes, em Xapuri (AC), tombada pelo Iphan em 2008).

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Entretanto, é preciso reconhecer que a antiguidade de um bem é um dos atributos que mais se destacam para o seu reconhecimento como portador de valor cultural, pois é da essência humana a reverência pelas coisas mais remotas, que carregam consigo uma espécie de aura sagrada que lhes impõe  respeito e conservação pelas gerações.

Em tal cenário, de longa data são os dispositivos, conceitos e deliberações que atribuem proteção a coisas surgidas, cultivadas ou construídas nos tempos de antanho, sendo de indiscutível relevo para a seleção de bens culturais o atributo cronológico pretérito.

No âmbito do Direito Canônico, por exemplo, em 28 de abril de 1462, Pio 2º expediu a Bula Papal Cum almam nostram urbem, onde se prevê a excomunhão, além de pesadas multas, a "todos, religiosos ou leigos, sem exceção, independentemente de seu poder, dignidade, de seu status e posição, do mérito eclesiástico (mesmo pontifical) ou mundano que venham demolir, quebrar, danificar ou transformar em cal, de forma direta ou indireta, pública ou secretamente, qualquer edifício público da antiguidade ou quaisquer remanescentes de edifícios antigos que existam no solo da cidade ou em seus arredores, mesmo que eles se encontrem nas propriedades que lhes pertençam na cidade ou no campo".

Em 1519 o célebre Rafael Sanzio, que havia sido designado pelo papa Leão 10 para conservar os bens da Igreja Romana, dirigia carta ao pontífice em que manifestava sua preocupação com a preservação do patrimônio cultural e dizia: "é dever de todos e de cada um amar a sua pátria e seus pais; por isso me sinto compelido a empregar todas as minhas débeis forças para conservar, o quanto possível, certa vida na imagem, ou antes, na sombra dessa cidade, e assegurar que esse testemunho do mérito e poder dos divinos espíritos não seja destruído ou danificado por celerados ou ignorantes".

As raízes da proteção jurídica ao patrimônio cultural brasileiro se prendem, obviamente, ao ordenamento jurídico de Portugal, onde é considerado embrião do sistema legal o Alvará Régio de 20 de agosto de 1721, por meio do qual dom João 5º atribuiu à Real Academia de História a adoção de providências "para se conservarem os monumentos antigos, que podem servir para ilustrar, e certificar a verdade da mesma história" em que determinou: "daqui em diante nenhuma pessoa de qualquer estado, qualidade e condição que seja, possa desfazer ou destruir em todo nem em parte, qualquer edifício que mostre ser daqueles tempos ainda que em parte esteja arruinado e da mesma sorte as estátuas, mármores e cipos".

Especificamente em solo brasileiro, o primeiro indício de preocupação governamental com a preservação do patrimônio cultural data do ano de 1742, quando o então vice-rei do, André de Melo e Castro, Conde de Galveias, escreveu ao governador de Pernambuco, Luis Pereira Freire de Andrade, ordenando a paralisação das obras de transformação do Palácio das Duas Torres, construído por Maurício de Nassau, em um quartel para as tropas locais, ocasião em que foi determinada a restauração do palácio em razão de sua antiguidade e relevância histórica.

Feito o breve passeio pelo tempo, insta salientar que temos hoje vigentes em nosso país dispositivos legais que atribuem especial proteção a bens em razão de sua ancianidade.

Quanto ao patrimônio paleontológico, por exemplo, o artigo 2º. da Portaria DNPM 542/2014 estabelece que se considera fóssil o resto, vestígio ou resultado da atividade de organismo que tenha mais de 11 mil anos. Ou seja, são protegidos elementos naturais vegetais ou animais que remontam ao período pleistocênico e ficam submetidos ao regime jurídico estabelecido pelo Decreto 4.146/42.

Em relação ao patrimônio arqueológico pré-histórico brasileiro, todos os vestígios materiais deixados pelos povos que aqui viveram até a chegada de Pedro Álvares Cabral (1500) ficam submetidos ao regime jurídico da Lei 3.924/61. São os chamados bens arqueológicos pré-cabralinos.

Importante diploma para evitar a evasão do patrimônio cultural brasileiro para outros países é a Lei nº  4.845/65, que proíbe a saída, para o exterior, de obras de arte e ofícios produzidos no país, até o fim do período monárquico (15 de novembro de 1889), estabelecendo:

Art.1º – Fica proibida a saída do País de quaisquer obras de artes e ofícios tradicionais, produzidas no Brasil até o fim do período monárquico, abrangendo não só pinturas, desenhos, esculturas, gravuras e elementos de arquitetura, como também obra de talha, imaginária, ourivesaria, mobiliário e outras modalidades.
Art.2º – Fica igualmente proibida a saída para o estrangeiro de obras da mesma espécie oriundas de Portugal e incorporadas ao meio nacional durante os regimes colonial e imperial.
Art.3º – Fica vedada outrossim a saída de obras de pintura, escultura e artes gráficas que, embora produzidas no estrangeiro no decurso do período mencionado nos artigos antecedentes, representem personalidades brasileiras ou relacionadas com a História do Brasil, bem como paisagens e costumes do País.

A seu turno, em defesa do patrimônio bibliográfico, a Lei nº 5.47/68 dispõe sobre a exportação de livros antigos e conjuntos bibliográficos brasileiros, estabelecendo:

Art. 1º Fica proibida, sob qualquer forma, a exportação de bibliotecas e acervos documentais constituídos de obras brasileiras ou sobre o Brasil, editadas nos séculos 16 a 19.
Parágrafo único. Inclui-se igualmente, nessa proibição a exportação de:
a) obras e documentos compreendidos no presente artigo que, por desmembramento dos conjuntos bibliográficos, ou isoladamente, hajam sido vendidos;

b) coleções de periódicos que já tenham mais de dez anos de publicados, bem como quaisquer originais e cópias antigas de partituras musicais.

Em Minas Gerais, a Lei Estadual  nº 5.741/71, que dispõe sobre a proteção especial de  documentos, obras, locais de valor histórico e artístico, monumentos,  paisagens naturais e  jazidas arqueológicas, pelo Estado, dispõe em seu artigo 3º, que independentemente de decisão do Conselho Estadual de Cultura, mas devendo constar de seu Registro Cultural, ficam considerados sob proteção especial do Estado os  documentos, as obras e locais históricos e monumentos, com mais de  150 anos, existentes no território mineiro. Ainda segundo a lei, os  templos, construções residenciais e todos os valores móveis existentes  no interior deles estão compreendidos na aludida proteção. De tal forma, em Minas Gerais há a presunção legal do valor cultural dos bens acima enumerados que tenham mais de um século e meio de existência.

No campo internacional, a Convenção sobre a defesa do patrimônio arqueológico, histórico e artístico das Nações Americanas (C-16)  — Convenção de São Salvador — aprovada em 16 de junho de 1976 (Santiago, Chile), estabelece especial proteção, entre outros, para os monumentos, edificações, objetos artísticos, utilitários, etnológicos, intactos ou desmembrados, da época colonial, bem como os correspondentes ao século 19; bibliotecas e arquivos; incunábulos e manuscritos; livros e outras publicações, iconografias, mapas e documentos editados até ao ano de 1850.

Enfim, é destacada a potencialidade de coisas antigas serem integrantes do patrimônio cultural de um povo. A vetustez ou ancianidade são indícios de especial valor e devem ser objeto de criteriosa análise para a seleção dos bens culturais do nosso país.


[1] Portadores de referência à ação, à memória e à identidade do povo brasileiro, nos termos do art. 216, caput, da CF/88.

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