Fábrica de Leis

Devem as leis ser elaboradas com menos cautela do que os atos administrativos?

Autor

  • Victor Marcel Pinheiro

    é bacharel mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) ex-visiting scholar na Universidade Columbia (EUA) ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha) advogado e consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

11 de julho de 2023, 8h00

Inicia-se com a conhecida advertência feita por Victor Nunes Leal há quase 80 anos: "Tal é o poder da lei que a sua elaboração reclama precauções severíssimas. Quem faz a lei é como se estivesse acondicionando materiais explosivos. As consequências da imprevisão e da imperícia não serão tão espetaculares, e quase sempre só de modo indireto atingirão o manipulador, mas podem causar danos irreparáveis" [1].

A despeito dessa advertência, devem as leis ser elaboradas com menos cautelas do que os atos administrativos normativos?  A se julgar pela condução da política regulatória brasileira, pelo menos no plano federal, aparentemente a resposta é sim.

Spacca
A institucionalização de um processo mais racional de elaboração das leis ainda caminha a passos lentos se comparado aos recentes avanços e iniciativas em andamento no que se refere aos atos administrativos normativos em geral (excetuados os decretos como será visto).

Já elenquei nesta Fábrica de Leis hipóteses para a falta de disseminação da Análise de Impacto Legislativo (AIL) na cultura de produção normativa brasileira [2]. Dando sequência ao exame desse tema, o objetivo aqui é apontar com maior clareza o descompasso da política regulatória brasileira federal a partir da identificação da existência de dois grandes regimes jurídicos hoje vigentes: a) um para a elaboração dos atos legislativos (os previstos no artigo 59 da Constituição) e os decretos presidenciais e b) outro para elaboração dos demais atos normativos administrativos.

De um lado, a elaboração dos atos legislativos conta ainda com um baixo grau de institucionalização e disseminação de diretrizes e boas práticas. As principais regras constitucionais a respeito tratam de temas procedimentais como iniciativa, votação e emendamento, em plano ainda muito abstrato e sem maiores diretrizes de legística material, ou seja, de diretrizes direcionadas a um ganho de qualidade no processo e produto legislativo.

Uma importante exceção  porém ainda tímida  é o artigo 113 do ADCT ("A proposição legislativa que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro"). A Lei Complementar nº 95, de 1998, que regulamenta o artigo 59, parágrafo único da Constituição, basicamente trata de normas de legística formal  que, não obstante sua fundamental importância para garantia de segurança jurídica e efetividade das normas legais, não esgota o amplo espectro de diretrizes da boa elaboração de normas.

Os regimentos internos das casas do Congresso também não apresentam normas específicas sobre a elaboração legislativa do ponto de vista de boas práticas regulatórias com exigências mais densas de participação social, análise ex ante de impacto legislativo, técnicas ou instrumentos regulatórios flexíveis e responsivos.

Ressalva seja feita à avaliação de políticas públicas iniciada no Senado no ano de 2013, por meio de inclusão em seu regimento interno do artigo 96-B, Contudo, não há a previsão normativa da integração dessas avaliações a um ciclo legislativo-regulatório para que suas conclusões sejam trabalhadas para fins de aperfeiçoamento da legislação e regulação vigentes.

No âmbito do Poder Executivo Federal, uma importante ressalva diz respeito ao Decreto 9.191/2017, que regulamenta a Lei Complementar 95/1998. Neste ato normativo, estabelecem-se algumas normas de grande relevância para a elaboração de propostas de atos normativos primários (como leis e medidas provisórias) e decretos a serem adotados pelo presidente da República.

Como exemplo, além da definição de competências de análise jurídica e de mérito de diferentes órgãos da Presidência da República, há a previsão da possibilidade (mas não obrigatoriedade) de consultas e audiências públicas, além de um Anexo com diversas diretrizes, como as destinadas à mensuração de impactos sobre os direitos fundamentais e redução de custos administrativos.

De todo modo, a despeito dos significativos avanços, ainda permanece o diagnóstico de que se trata de ato carente de maior aplicação na prática da elaboração das leis e decretos, muitas vezes visto apenas como uma formalidade burocrática [3]. Além disso, como será visto abaixo, as recentes exigências de Análise de Impacto Regulatório (AIR), consultas e audiências públicas não são aplicáveis aqui.

De outro lado, há recentes inovações legislativas, administrativas e de cultura organizacional no Poder Executivo federal que apontam para uma verdadeira transformação no que se refere à elaboração das normas jurídicas com status normativos inferiores a decreto.

Apenas para elencar algumas das principais normas e inciativas a esse respeito:

1) Programa de Fortalecimento da Capacidade Institucional para Gestão em Regulação (PRO-REG), nos termos do Decreto 6.062/2007 e Decreto 8.760/2016;

2) Guias de Avaliação de Políticas Públicas ex ante e ex post da presidência da República e da então Secretaria de Acompanhamento Econômico, da Advocacia da Concorrência e Competividade (Seae) do Ministério da Economia;

3) Lei 13.848, de 25 de junho de 2019 (Lei geral das agências reguladoras federais) e Lei 13.874, de 20 de setembro de 2019 (Lei de Liberdade Econômica), que estabeleceram exigências de AIR, consultas e audiências públicas para atos normativos de interesse geral;

4) Decreto 10.139, de 28 de novembro 2019, que dispõe sobre a revisão e a consolidação dos atos normativos inferiores a decreto na Administração Pública federal (artigo 1º, caput);

5) Decreto 10.411, de 30 de junho de 2020, que regulamenta as exigências de AIR da Lei geral das agências reguladoras federais e da Lei de Liberdade Econômica, excluindo-se os atos legislativos e decretos (artigo 1º, §3º);

6) Decreto 11.243, de 21 de outubro de 2022, que estabelece medidas de promoção de boas práticas regulatórias de atos normativos, excluindo-se os atos legislativos e decretos (artigo 2º, §2º, inciso II e III)

7) Plano Nacional de Política Regulatória formulado pela Seae, lançado em dezembro de 2022, com indicadores e metas para implementação dos atos normativos acima.

Embora não se tenha condições de fazer uma análise pormenorizada de cada iniciativa acima, fica claro que, no plano federal, há uma clara divisão de regimes jurídicos que revelam o descompasso da política regulatória brasileira: enquanto a elaboração da maior parte dos atos administrativos normativos está submetida a uma série de exigências normativas (como a realização ex ante e ex post de análises de impacto e resultado regulatório), é objeto de mudanças organizacionais e conta com um Plano Nacional estratégico para seu desenvolvimento, a elaboração dos atos legislativos, incluídas as leis, e os decretos presidenciais ainda conta com poucas diretrizes nesse sentido.

É necessário relembrar que esse descompasso na política regulatória brasileira também difere das tendências em outros países, pois a grande maioria dos países da OCDE já institucionalizou medidas de boas práticas regulatórias em relação tanto aos atos legislativos primários quanto aos atos administrativos normativos.

Retomando-se as palavras do ministro Victor Nunes Leal, elaborar as leis é como "acondicionar materiais explosivos" e, portanto, não pode ser relegada a uma atividade irrelevante, inofensiva ou de importância secundária. Deve haver um alinhamento de posturas entre Poder Legislativo e Poder Executivo para que também sejam ampliadas a adoção de diretrizes mais concretas, inclusive inspiradas nas boas práticas internacionais, para uma melhoria da elaboração legislativa, uniformizando, naquilo que cabível, os regimes jurídicos para produção normativa hoje disperso em diferentes diplomas.

Nesse mesmo sentido, a OCDE, ao analisar a política regulatória brasileira em relatório de 2022, também aponta a falta de um "documento de alto nível", idealmente uma lei ou, no curto prazo, um decreto que uniformize o tratamento do tema [4].

Para contribuir com esse debate, apresento três sugestões.

A primeira é uma reformulação da Lei Complementar 95/1998. Faz-se novamente referência ao PLS 488/2017 (PLP 494/2018 na Câmara dos Deputados), que propõe mudanças relevantes à Lei, como a exigência de Análise de Impacto Legislativo para proposições que instituam políticas públicas. De todo modo, após ser aprovado no Senado Federal, ele está sem andamento há mais de cinco anos em fase inicial de tramitação na Câmara dos Deputados.

Mais recentemente, o Senado, em fase inicial, aprovou o PLP 41/2019, que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal para estabelecer a exigência de avaliação ex ante e ex post de proposições legislativas e atos administrativos gerais que concedam benefícios tributários.

 Ambos os projetos apontam na direção certa: são necessárias modificações na legislação complementar para que ela deixe de ser uma lei exclusivamente de legística formal e passe a incorporar diretrizes de legística material, como a adoção a Análise de Impacto Legislativo, previsão de cláusula de revisão temporária e experimentos legislativos ("sandboxes regulatórios"), entre outros.

A segunda é a regulamentação do §16 do artigo 37 e o §16 do artigo 165, ambos incluídos na Constituição pela Emenda Constitucional 109/2021, e que estabelecem a exigência de os entes federativos avaliarem suas políticas públicas, nos termos de lei, e que os resultados da avaliação sejam considerados no momento de formulação das leis orçamentárias. Nesse ponto, há uma importante oportunidade de formular uma legislação nacional que ofereça diretrizes e crie incentivos para os entes federativos efetivamente incorporarem os processos de avaliação de suas políticas públicas e as normas jurídicas que lhes dão suporte em seus processos regulatórios [5].

A terceira é uma aproximação dos regimes jurídicos da elaboração das leis e decretos dos demais atos administrativos no plano federal. De um lado, pode-se fazer a aproximação do regime jurídico do Decreto 9.191/2017, Decreto 10.411/2020 e Decreto 11.243/2022 para que também a elaboração das propostas de atos legislativos primários e decretos da Presidência da República se beneficiem das boas práticas em processo de institucionalização para os atos administrativos normativos em geral.

De outro lado, são possíveis modificações nos regimentos internos das casas do Congresso, bem como outros atos internos, de modo a adotar mecanismos de aprimoramento do processo e do produto legislativo. Apenas para mencionar alguns exemplos, agenda regulatória, AIL/AIR, participação social e o fortalecimento de órgãos de coordenação e supervisão regulatória podem ser instrumentos a serem mobilizados pelo Poder Executivo e pelo Poder Legislativo para que a elaboração de normas jurídicas — sejam por meio de leis, decretos ou demais atos administrativos — seja mais racional, transparente e democrática.

 


[1] Victor Nunes Leal, Problemas de Técnica Legislativa. Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro, v. 2, nº 1, 1945, p. 429-446, p. 430.

[2] Victor Marcel Pinheiro, Por que a Análise de Impacto Legislativo ainda não é realidade no Brasil?, Consultor Jurídico, 18/10/2022, disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-out-18/fabrica-leis-analise-impacto-legislativo-nao-realidade-pais

[3] Vejam-se os diagnósticos feitos em relação ao Decreto 4.176/2002, ainda aplicáveis ao Decreto 9.191/2017: Natasha Schmitt Caccia Salinas,  Avaliação legislativa no Brasil: apontamentos para uma nova agenda de pesquisa sobre o modo de produção das leis. Revista Brasileira de Políticas Públicas, Brasília, v. 3, nº 2, p. 229-249, 2013, p. 247, e Felipe de Paula, Avaliação legislativa no Brasil: limites e possibilidades, Tese (Doutorado em Direito)  Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016, p. 114.

[4] OCDE, Regulatory Reform in Brazil, Paris, 2022, p. 71.

[5] Destaca-se recente obra coordenada por Fabiana de Menezes Soares, Thiago Hermont e Paula Gomes de Magalhães em que se discute as possibilidades de regulamentação de tais dispositivos constitucionais: Avaliação Legislativa no Brasil: efeitos da Emenda Constitucional nº 109, artigo 37, §16. Belo Horizonte: Editora Dialética, 2023.

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  • é bacharel, mestre e doutor em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), ex-visiting scholar na Universidade de Columbia (EUA), ex-aluno visitante na Ludwig-Maximilians-Universität München (Alemanha), advogado, consultor legislativo do Senado e professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP).

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