Opinião

PEC 45 e contribuições destinadas a fundos estaduais: retrocesso inconstitucional

Autor

  • Paulo Honório de Castro Júnior

    é sócio na William Freire Advogados pós-graduado pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) presidente do Instituto Mineiro de Direito Tributário (IMDT) professor de Direito Tributário e Financeiro em cursos de pós-graduação e de extensão.

9 de julho de 2023, 9h15

A Câmara dos Deputados aprovou o texto base da PEC 45. A proposta central, como amplamente conhecido, consiste na criação de um IVA dual (uma Contribuição sobre Bens e Serviços — CBS, de competência federal, e um Imposto sobre Bens e Serviços — IBS, de competência estadual e municipal), ao lado de um imposto seletivo, em substituição a PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISSQN.

Chamou nossa atenção, por outro lado, a inclusão, de última hora, do artigo 20 na Emenda Aglutinativa de Plenário (leia-se, o texto aprovado), que trata das famigeradas "contribuições" destinadas a Fundos estaduais, que oneram produtos minerais e agropecuários, como o recente Fundeinfra, criado pela Lei nº 21.671/2022, no estado de Goiás, o FET, criado pela Lei nº 3.617/2019, no Tocantins, e o Fethab, instituído em Mato Grosso pela Lei nº 7.263/2000. Todos esses tributos, que vinculam receitas a Fundos estaduais, têm sido questionados perante o Poder Judiciário.

O que o artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário pretende fazer é muito simples: ante o risco de o Poder Judiciário pronunciar a invalidade desses tributos, criou-se uma regra que tenta a sua convalidação até 2043 (por 20 anos), via Emenda Constitucional. O texto possui a seguinte redação:

"Art. 20. Os Estados e o Distrito Federal poderão instituir contribuição sobre produtos primários e semielaborados, produzidos nos respectivos territórios, para investimento em obras de infraestrutura e habitação, em substituição a contribuição a fundos estaduais, estabelecida como condição à aplicação de diferimento, regime especial ou outro tratamento diferenciado, relacionados com o imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição Federal, prevista na respectiva legislação estadual em 30 de abril de 2023.
Parágrafo único. O disposto neste artigo aplica-se até 31 de dezembro de 2043."

Convalidação, sim, porque instituir "nova contribuição" sobre produtos primários e semielaborados, em pretensa substituição "a contribuição a fundos estaduais", com a mesma finalidade de seu pagamento ser condição para fruição de “diferimento, regime especial ou outro tratamento diferimento” do ICMS (imposto de que trata o art. 155, II, da Constituição), nada mais é do que manter o Fundeinfra, o FET, o Fethab e outros Fundos similares já existentes.

Ou seja, pretende-se que, ao lado do IBS e da CBS, a mineração e o agronegócio paguem ainda os exóticos tributos atuais vinculados a Fundos, além daqueles que certamente serão instituídos pelos Estados que ainda não o fizeram, como Minas Gerais, Pará, Bahia, dentre outros notórios exportadores de minerais e produtos agrícolas.

Mencionamos exportadores porque as ditas "contribuições" destinadas a Fundos estaduais, como já afirmados em outras oportunidades[1], nada mais são do que o próprio ICMS que se pretende cobrar sobre exportações — em afronta à EC nº 42/2003 e ao princípio do país de destino —, bem como reduzindo incentivos de ICMS concedidos e fruídos licitamente pelos contribuintes (como diferimento, reduções de base, de alíquotas etc.). Daí que o novel artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário queira constitucionalizar essa prática abusiva.

Lula Marques/Agência Brasil
Sessão que aprovou a reforma tributária
Lula Marques/Agência Brasil

A questão que se coloca é: poderia uma Emenda Constitucional fazer o que pretende o artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário? A resposta é negativa, ao menos no que se refere às exportações, que se incluem na expressão "outro tratamento diferenciado", relacionado "com o imposto de que trata o artigo 155, II, da Constituição", ou seja, com o ICMS.

O motivo para tanto, conforme apresentamos em estudo anterior[2], consiste na compreensão de que a imunidade sobre exportações, realizada para o ICMS em três etapas[3], densificando o seu conteúdo constitucional até sua culminação na EC nº 42/2003, concretiza o direito à igualdade no comércio internacional, especialmente em razão dos tratados assinados pelo Brasil[4]. Disso decorre também o direito à neutralidade fiscal no fluxo internacional de bens e serviços, espelho da livre concorrência, que constituem o princípio do país de destino.

Ademais, conforme decisão do ministro Gilmar Mendes no RE nº 474.132, a desoneração das exportações realiza o objetivo constitucional de desenvolvimento nacional (artigo 3º, II).

Sobre a igualdade, o artigo 150, inciso II, da Constituição veda a instituição de "tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida". O que o artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário pretende é exatamente instituir tratamento desigual entre exportadores (contribuintes em situação equivalente), ao excluir da regra de imunidade tão somente as exportações de "produtos primários e semielaborados".

A proposta afronta diretamente o artigo 150, II, da Constituição, porque a diferenciação, além de arbitrária, incide justamente na proibição contida na parte final do dispositivo, qual seja, "proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida".

A distinção feita entre os exportadores de produtos primários e semielaborados e os que exportam outros bens se dá exatamente "em razão de função" (mineração e agronegócio), o que não é permitido pela Lei Maior.

Logo, não é possível aprovar o artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário sem ferir os preceitos constitucionais expostos.

Deve-se ter claro que, ao menos para aqueles que se dedicam à exportação de produtos primários e semielaborados — o referido artigo 20 extirpa o direito à imunidade nas exportações do ordenamento jurídico, não havendo que se falar em preservação de um núcleo mínimo a esse direito. Daí que se esteja diante de um caso de proibição de retrocesso social, dado que a imunidade em tela consagra os direitos fundamentais à igualdade e à livre concorrência, como visto.

Considerando que os direitos fundamentais formam o núcleo da Constituição, havendo inclusive a cláusula aberta de direitos fundamentais (artigo 5º, § 2º) que contempla também aqueles decorrentes de tratados internacionais, eles devem ser submetidos a um regime especial de proteção, que leva ao princípio de proibição de retrocesso. Vale aqui a advertência de Bobbio[5] de que o "problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é tanto a justificá-los, mas o de protegê-los".

Por isso, normas de direitos fundamentais são cláusulas pétreas, nos termos do artigo 60, § 4º, IV. da Constituição. Isso significa que mesmo Emendas Constitucionais não podem suprimi-las, atingir seu núcleo essencial ou inviabilizar a realização dos valores por elas veiculados. Essa garantia impede que o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efetivado por medidas legislativas seja simplesmente aniquilado por medidas estatais[6]. Isto é, a proibição de retrocesso é uma garantia que encontra sua matriz axiológica na segurança jurídica, na proteção da confiança legítima e na dignidade da pessoa humana. Consagra que o Estado, após efetivar um direito fundamental, não pode retroceder sem uma medida compensatória correspondente.

Estamos diante de uma vulneração sobretudo à igualdade e de uma tentativa de retroceder em relação aos avanços determinados na redação original da Constituição de 1988, enquanto um projeto de gradual implementação da desoneração ampla das exportações.

Em relação aos contribuintes que, desde 1996, são desonerados do ICMS sobre a exportação de produtos primários e semielaborados, permitir que a cobrança ocorra após 27 anos, não só representaria retrocesso, como um abuso da confiança legítima daquele que, de boa-fé, planejou sua atividade econômica considerando a não tributação das exportações.

É certo que o STF já afirmou que "o princípio da vedação ao retrocesso social não pode impedir o dinamismo da atividade legiferante do Estado, mormente quando não se está diante de alterações prejudiciais ao núcleo fundamental das garantias sociais"[7]. Ocorre que, no caso do artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário, a revogação proposta — ao menos para aqueles que se dedicam à exportação de produtos primários e semielaborados — extirpa todo o seu direito do ordenamento jurídico, não havendo que se falar em preservação de um núcleo mínimo, já que ou se tributa ou não se tributa exportações. Para esse direito, não há meio termo ou concessões possíveis.

Por esses motivos, esperamos que o Congresso desista de levar adiante o artigo 20 da Emenda Aglutinativa de Plenário. Seria recomendável, aliás, a inserção de norma que proíba expressamente os Estados de criarem pretensas "contribuições" a fundos, que, ilicitamente, têm agravado a crise do federalismo fiscal brasileiro.

 


[1] CASTRO JÚNIOR, Paulo Honório de. A inconstitucionalidade do Fundeinfra em Goiás. In FERRARI, Bruna Camargo; DONIAK JR., Jimir; PEIXOTO, Marcelo Magalhães. Tributação e Contabilidade no Agronegócio. São Paulo: MP, 2023.

[2] CASTRO JÚNIOR, Paulo Honório de. A tributação das exportações no contexto das propostas de reforma tributária. In SCAFF, Fernando Facury. DERZI, Misabel. BATISTA JÚNIOR, Onofre Alves. TORRES, Heleno Taveira [Coords.]. Reformas ou deformas tributárias e financeiras: por que, para que, para quem e como? Belo Horizonte: Letramento, 2020.

[3] Redação original, que imunizava industrializados; Lei Kandir, editada nesse ponto em conformidade com a alínea "e", do inciso XII, do § 2°, do art. 155 da Constituição – que já manifestava a intenção de ampliar a imunidade via lei complementar -, e EC nº 42/2003.

[4] Andou bem a Lei Kandir (LC nº 87/1996) e o constituinte derivado (EC nº 42/2003), ao alinhar as regras brasileiras aos padrões do General Agreement on Tariffs and Trade – GATT, ratificado pelo Decreto Legislativo nº 30/1994 e promulgado pelo Decreto nº 1.355/1994, cujo art. XVI consagra o princípio da tributação no país do destino para os impostos sobre o consumo, tal qual o ICMS.

No mesmo sentido, o Brasil celebrou outros compromissos internacionais cujo conteúdo é a neutralidade no fluxo internacional de bens e serviços, evitando a discriminação de contribuintes exportadores. Conforme Lucas Bevilacqua e Rafael Fonseca[4], na vigência da Constituição de 1988, o Brasil assinou o Acordo de Marrakesh, constitutivo da Organização Mundial do Comércio (OMC), e todo o conjunto de acordos que arremataram a Rodada do Uruguai, com destaque para o GATT e para o Acordo sobre Subsídios e Medidas Compensatórias (ASMC), que preveem expressamente o princípio do destino.

[5] BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. São Paulo: Ed. Campus, 1992, p. 24.

[6] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 339-340.

[7] BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ADI 4.350, Relator Ministro Luiz Fux, Tribunal Pleno, DJe 3.12.2014.

Autores

  • é sócio na William Freire Advogados. Graduado em Direito e Mestre em Direito Tributário pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais). Pós-graduado pelo Ibet (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários). Presidente do IMDT (Instituto Mineiro de Direito Tributário). Professor de Direito Tributário e Financeiro em cursos de pós-graduação e de extensão.

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