Opinião

Improbidade administrativa, matéria penal e os tribunais superiores

Autores

  • Jacinto Nelson de Miranda Coutinho

    é professor titular aposentado de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel) especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR) mestre (UFPR) doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza") presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória advogado membro da Comissão de Juristas do Senado que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP (hoje Projeto 156/2009-PLS) advogado nos processos da "lava jato" em um pool de escritórios que em conjunto definiam teses e estratégias defensivas.

  • Alice Silveira de Medeiros

    é advogada mestre em Direito do Estado pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná pós-graduada em Contratações Públicas pela Universidade de Coimbra especialista em Licitações e Contratos Públicos com Tópicos Especiais em Direito das Concessões pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e membro da Comissão de Gestão Pública Transparência e Controle da Administração da OAB-PR.

9 de julho de 2023, 7h07

Em outubro de 2021, com a entrada em vigor da Lei nº 14.230/2021, as regras aplicáveis aos casos e processos decorrentes da (suposta) prática de atos de improbidade (originalmente definidas pela Lei nº 8.429/1992) foram alteradas, substancialmente. Desde estão, a jurisprudência dos tribunais superiores, predisposta a orientar a interpretação do novo texto legal, vem sendo adaptada. Porém, de forma ainda oscilante.

Até agora, há decisões que terminam por conferir larga operatividade às mudanças implementadas, enquanto outras, restringiram-na. E o cenário de instabilidade  prejudicial à segurança jurídica  que a variabilidade jurisprudencial, sozinha, já costuma criar, aqui, fica agravada pelo fato de algumas dessas decisões serem conflitantes.

A (controversa) posição, recentemente firmada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do AREsp nº 1877917, serve de exemplo. O Informativo de Jurisprudência nº 776, divulgado no site oficial do órgão, no último dia 30 de maio, deu notícia do julgado, sugerindo aderência à linha de entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), quando da fixação do Tema nº 1.199, no âmbito do ARE 843989, conforme a tese que ficou assentada ("[e]m atenção ao Tema 1199/STF, deve-se conferir interpretação restritiva às hipóteses de aplicação retroativa da Lei nº 14.230/2021, adstringindo-se aos atos ímprobos culposos não transitados em julgado"). Mas não é isso o que o inteiro teor do acórdão  nem mesmo o que essa tese, em si — revela.

A análise pelo STF do leading case que resultou na consolidação do Tema nº 1.199, não foi longe ao ponto de abarcar todas as novas disposições, mais benéficas ao acusado, incorporadas pela Lei nº 14.230/2021 à LIA, tampouco encerrou a discussão acerca da (in)viabilidade de retroação de todas elas. As próprias teses, ao final, fixadas, assim sinalizam: "1) É necessária a comprovação de responsabilidade subjetiva para a tipificação dos atos de improbidade administrativa, exigindo-se  nos artigos 9º, 10 e 11 da LIA  a presença do elemento subjetivo – DOLO; 2) A norma benéfica da Lei 14.230/2021  revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa , é IRRETROATIVA, em virtude do artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal, não tendo incidência em relação à eficácia da coisa julgada; nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes; 3) A nova Lei 14.230/2021 aplica-se aos atos de improbidade administrativa culposos praticados na vigência do texto anterior da lei, porém sem condenação transitada em julgado, em virtude da revogação expressa do texto anterior; devendo o juízo competente analisar eventual dolo por parte do agente; 4) O novo regime prescricional previsto na Lei 14.230/2021 é IRRETROATIVO, aplicando-se os novos marcos temporais a partir da publicação da lei".

Não há dúvida de que o STF, com isso, limitou bastante os efeitos que a plena incidência do artigo 5º, XL, da CR ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu"), poderia alcançar dentro dos processos decorrentes de ações de improbidade, o que já deu margem a críticas. Sobretudo, porque o regime jurídico a que esses casos se submetem é conformado pelos princípios constitucionais do direito administrativo sancionador  os quais, basicamente, correspondem àqueles em face dos quais a Constituição assegura direitos específicos aos acusados em geral , pressuposto que, aliás,  ficou, pacificado após a reforma da LIA, com a inclusão no artigo 1º, do §4º ("[a]plicam-se ao sistema da improbidade disciplinado nesta Lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador").

Sem falar que o sentido de "lei penal", para uma ordem jurídica fundada em valores axiológicos-normativos iguais àqueles consagrados no texto constitucional de 1988, não pode se fechar na literalidade de um termo. Ao contrário, ele (o sentido do texto legal) precisa assumir densidade material [1].    

O STJ, nada obstante, foi além do que o STF já havia ido. Ao fim e ao cabo, ao resolver o AREsp nº 1877917 (supracitado), o STJ reduziu o espaço de aplicação da regra constitucional em questão a uma única hipótese de incidência, em casos de improbidade. É bem provável, de consequência, que essa discussão ainda ganhe novos desdobramentos. Mesmo porque, num outro julgamento recente  de caso análogo, mesmo não envolvendo atos de improbidade , o próprio STJ entendeu cabível a retroação de lei mais benéfica, na esfera administrativo-sancionatória, defendendo, dentre outras coisas, "ser possível extrair do artigo 5º, XL, da Constituição da República princípio implícito do Direito Sancionatório, qual seja: a lei mais benéfica retroage. Isso porque, se até no caso de sanção penal, que é a mais grave das punições, a Lei Maior determina a retroação da lei mais benéfica, com razão é cabível a retroatividade da lei no caso de sanções menos graves, como a administrativa". Trata-se do AgInst em REsp nº 2024133, decidido em março de 2023.

 Por outro lado, em que pese o STF ter suspendido, no bojo da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7236, a eficácia do §4º, do artigo 21,  da LIA (com redação dada pela Lei nº 14.230/2021), um dos dispositivos que mais inovou (positivamente) no ordenamento, ampliando a margem de comunicabilidade/repercussão de decisões criminais sobre ações de improbidade referidas aos mesmos fatos [2], o STJ, na oportunidade em que teve chance de falar sobre o assunto, entendeu, reportando-se à Constituição, que esse ato (de suspensão) não atinge o ne bis in idem.

Tal decisão, também de março de 2023, foi firmada no âmbito de um recurso em Habeas Corpus  o RHC nº 173448, que versava sobre crimes contra a Administração Pública, logo, matéria penal ; e é emblemática em várias passagens, começando pela afirmação trazida no sentido de que "a independência das esferas tem por objetivo o exame particularizado do fato narrado, com base em cada ramo do direito, devendo as consequências cíveis e administrativas ser aferidas pelo juízo cível e as repercussões penais pelo Juízo criminal, dada a especialização de cada esfera", sob a advertência de que, "[n]o entanto, as consequências jurídicas recaem sobre o mesmo fato".

Na sequência, conclusões de extrema relevância são deduzidas. Dentre elas as seguintes: 1) "[n]essa linha de intelecção, não é possível que o dolo da conduta em si não esteja demonstrado no juízo cível e se revele no juízo penal, porquanto se trata do mesmo fato, na medida em que a ausência do requisito subjetivo provado interfere na caracterização da própria tipicidade do delito, mormente se se considera a doutrina finalista (que insere o elemento subjetivo no tipo), bem como que os fatos aduzidos na denúncia não admitem uma figura culposa, culminando-se, dessa forma em atipicidade, ensejadora do trancamento ora visado"; 2) "[t]rata-se de crime contra a Administração Pública, cuja especificidade recomenda atentar para o que decidido, sobre os fatos, na esfera cível. Ademais, deve se levar em consideração que o artigo 21, §4º, da Lei 8.429/1992, incluído pela Lei nº 14.230/2021, disciplina que ‘a absolvição criminal em ação que discuta os mesmos fatos, confirmada por decisão colegiada, impede o trâmite da ação da qual trata esta Lei, havendo comunicação com todos os fundamentos de absolvição previstos no artigo 386 do Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal)'"; 3) "[a] suspensão do artigo 21, §4º, da Lei 8.429/1992, na redação dada pela Lei nº 14.230/2021 (ADI 7.236/DF) não atinge a vedação constitucional do ne bis in idem (…) e sem justa causa não há persecução penal"; 4) "[a]pesar de, pela letra da lei, o contrário não justificar o encerramento da ação penal, inevitável concluir que a absolvição na ação de improbidade administrativa, na hipótese dos autos, em virtude da ausência de dolo e da ausência de obtenção de vantagem indevida, esvazia a justa causa para manutenção da ação penal".

Esse entendimento do STJ, mais do que alargar a operatividade da Lei nº 14.230/2023, prestigia à racionalidade subjacente a ela  refletida, senão em todos, em boa parte dos seus dispositivos , empurrando na direção do desenvolvimento de uma dinâmica de atuação das instâncias persecutórias competentes mais integrada e menos propensa a incorrer em bis in idem, o que significa um grande avanço.

A real e profícua defesa da probidade, coisa da mais alta importância, passa muito mais pela racionalização das técnicas de intervenção punitivo-estatais e pelo respeito às regras (constitucionais) do jogo, do que pela insistência em manter aceso um discurso (retórico) de combate à impunidade e à corrupção. Isso, no fundo, promove a continuidade do emprego de métodos anacrônicos e de baixa sincronicidade com a lógica do sistema constitucional, com prejuízo a interesses e direitos individuais e coletivos. Por isto, almeja-se que a jurisprudência comece a andar, daqui para diante, mais em compasso com esses dois últimos julgados do STJ, do que com aqueles (do STJ e do STF) mencionados primeiro.

 


[2] E, vindo, assim, a permitir um início de ressignificação para a máxima da Independência entre as Instâncias, não raro empregada para justificar intoleráveis burlas à vedação ao bis in idem. Para uma análise mais aprofundada da questão, vide: https://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/887

Autores

  • é professor titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (aposentado), professor do programa de pós-graduação em Ciências Criminais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor do programa de pós-graduação em Direito da Faculdade Damas (Recife), professor do programa de pós-graduação em Direito da Univel (Cascavel), especialista em Filosofia do Direito (PUC-PR), mestre (UFPR), doutor (Università degli Studi di Roma "La Sapienza"), presidente de honra do Observatório da Mentalidade Inquisitória, advogado e membro da Comissão de Juristas do Senado Federal que elaborou o Anteprojeto de Reforma Global do CPP, hoje Projeto 156/2009-PLS.

  • é advogada, mestre em Direito do Estado pelo programa de pós-graduação da Universidade Federal do Paraná, pós-graduada em Contratações Públicas pela Universidade de Coimbra, especialista em Licitações e Contratos Públicos com Tópicos Especiais em Direito das Concessões pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná e membro da Comissão de Gestão Pública, Transparência e Controle da Administração da OAB-PR.

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