Opinião

Criminalização da atividade empresarial no Brasil: prática precisa ser debatida

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8 de julho de 2023, 7h07

Responsabilidade penal em empresas sempre foi tema controvertido nos tribunais brasileiros. Seja devido a releituras apressadas da famigerada "teoria do domínio do fato" — criada por jurista alemão para lidar com a responsabilidade de superiores pelos crimes praticados por subordinados durante o nazismo —, seja por presunção de onisciência impraticável em grandes corporações.

Empresários de diversos calibres são, cada vez mais, forçados a considerar riscos de direito penal ao assumirem funções. Isso sem considerar os diversos profissionais que, conhecedores dos critérios equivocados que podem levá-los a responder a processos infundados, preferem não assumir posições de liderança, criando um mecanismo de incentivo reverso que contraria a lógica empresarial.

Por definição, apenas responde por crime aquele que pratica ação ou omissão puníveis, ou concorra de algum modo para a sua prática, admitindo-se a responsabilidade da pessoa jurídica somente em crimes ambientais. Não é qualquer omissão, todavia, que possui o efeito de gerar responsabilidade penal: somente será relevante a que partir de pessoas que, tendo conhecimento da situação que demanda intervenção, poderiam e deveriam agir para evitar o resultado. Esse dever de ação, por sua vez, incumbe àqueles que possuem obrigação legal de cuidado, proteção ou vigilância, assumem a responsabilidade de impedir o crime ou criam o risco de sua ocorrência.

Assim, quem determina o não pagamento de tributo prestando informação falsa às autoridades pratica crime tributário — mas também pode responder pela conduta o diretor financeiro que, descumprindo deveres do cargo, omite-se intencionalmente. Menos óbvia é a acusação de um presidente de holding que controle empresa cujo diretor responsável venha a se omitir ou praticar diretamente sonegação fiscal, com base em uma responsabilidade genérica pelo cargo de liderança.

Essa é, no entanto, a situação de muitas acusações que são objeto de processo criminal no Brasil, frequentemente levadas aos tribunais superiores para que o denunciado possa, finalmente, ver respeitado o direito de não responder a processo penal exclusivamente com base no exercício de cargo diretivo — e não sem antes passar pelo infortúnio de ver a reputação ameaçada pela simples existência de uma denúncia que, no imaginário popular, já se transforma em condenação definitiva e sem possibilidade de defesa.

Para citar exemplo recente, em acusação por crime ambiental envolvendo o então presidente de uma empresa de alimentos por suposta ocorrência de poluição em unidade no interior do Rio Grande do Sul, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu, por maioria, que a denúncia deveria ser afastada de pronto com relação ao executivo. Conforme se entendeu no julgamento, a inclusão do denunciado no processo havia ocorrido somente em razão de sua posição de sócio-diretor. Não poderia, assim, ser responsabilizado sem que houvesse relação de causa e consequência entre sua conduta e o resultado em tese criminoso, como manda a lei.

A justificativa muitas vezes dada pelo Ministério Público nesses casos é que não seria possível exigir da acusação que individualizasse a conduta dos acusados quando o crime ocorresse em contexto empresarial.

Essa saída acusatória, no entanto, remonta a precedentes longínquos da década de 1980, quando as possibilidades investigativas ao alcance das autoridades eram limitadas — e as sociedades empresárias se apresentavam sem grandes estruturas de governança, criadas para garantir que as empresas operem conforme as melhores práticas.

Talvez por essa razão, mais recentemente, alguns julgados reconheçam que a flexibilização do critério de individualização de conduta não pode se transformar em licença para para processar sem qualquer indício de que a pessoa de fato cometeu um crime, com o acusado aguardando pacientemente o curso do processo para provar uma inocência que deveria — por determinação expressa da Constituição Federal — ser presumida.

Para que a presunção de inocência vigore, esse raciocínio precisa ser levado às últimas consequências.

De 1980 até hoje, avanços tecnológicos possibilitaram ao Ministério Público acessar bases de dados completas sobre o funcionamento de companhias e outras sociedades, inclusive valendo-se de consultas a juntas comerciais para saber onde começar uma investigação consistente para identificar possíveis autores de infrações penais. Também foi possível conhecer a dinâmica empresarial de forma suficientemente profunda para entender que um presidente de conglomerado não possui — e nem poderia — controle sobre operações descentralizadas, envolvendo centenas ou milhares de colaboradores.

Tampouco basta, como se vê em tantos julgados, que a descrição de conduta necessária para acusar passe a ser uma descrição de atividades do próprio cargo, como se isso provasse a autoria de um crime. Participar de reuniões de diretoria ou receber informações estratégicas sobre determinado negócio são práticas lícitas que mostram, apenas e tão somente, que o acusado exerce funções regulares no centro da empresa. Sem que exista indicativo concreto de conduta criminosa, tais circunstâncias passam longe de qualquer critério de responsabilização que se possa admitir em um sistema jurídico regido por regras razoáveis.

A prática corrente de acusar executivos, empresários e acionistas com baseem seus cargos, enfim, é tema que precisa ser debatido com a seriedade e sensibilidade necessárias pelos tribunais, sem soluções apressadas que sujeitem indefinidamente os acusados às tormentas de um processo penal.

*artigo publicado originalmente no Valor Econômico

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