Repensando as Drogas

Drogas boas, drogas más: debater para melhor regulamentar

Autor

  • Guilherme Roedel

    é mestre em Sociedade Ambiente e Território pela UFMG/Unimontes especialista em Inteligência de Estado e de Segurança Pública pela Fundação Escola do MP-MG professor efetivo de Processo Penal da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes) promotor de Justiça do MP-MG e membro do grupo Repensando a Guerra às Drogas.

7 de julho de 2023, 8h00

Falar abertamente sobre drogas, no Brasil, é tabu. Para ser mais preciso, o correto é dizer que falar sobre algumas drogas é tabu. Outras tantas, como o álcool, a nicotina, a Ritalina, o Venvanse, o Viagra, o Rivotril, o Zolpidem, a cafeína e o açúcar seguem sendo divulgadas e consumidas em larga escala, com pouco controle e muito glamour.

A publicidade, que contribui para o aumento do consumo e risco do abuso, embora regulamentada para veiculação nos tradicionais meios de comunicação, não encontra limites nas redes sociais. Vinhos, uísques, vodcas e gins, cervejas artesanais, pen-drives aromatizados, charutos cubanos e outras drogas aguçam a curiosidade e o desejo das centenas de milhares de jovens que acompanham assíduos os stories e o feed dos influenciadores, que ganham muito dinheiro com o merchandise de drogas nas redes sociais.

"Partiu academia!", anuncia a musa fitness enquanto degusta um pré-treino turbinado com cafeína, taurina e outras inas que aceleram o metabolismo e, aparentemente, melhoram seu desempenho. Além de muito exercício físico e estimulantes vendidos livremente nas farmácias, nos supermercados e na internet, os corpos esculturais dessas garotas-propaganda, não raras vezes, são moldados com algumas doses de Osempic, Saxenda, esteroides androgênicos e anabolizantes de venda controlada. A popularização do consumo dessas "drogas da beleza" acendeu o alerta no Conselho Federal de Medicina, que decidiu vetar as terapias hormonais para fins estéticos e de desempenho esportivo [1].

Finaliza a semana de treinos, mas a propaganda de drogas nas redes não descansa. "Sexta-feira, papai", anuncia o influencer [2] que nos incentiva a abrir uma gelada e encerrar o expediente ao meio-dia. Afinal, ao meio-dia da sexta-feira, "quem fez, fez! Quem não fez, de agora pra frente não faz mais!" O slogan viralizou. É legenda fácil nos posts de influenciadores e influenciados, inclusive quando divulgam o consumo de bebidas alcoólicas nos outros dias da semana, ocasião em que surgem variações do "sextou!", como "tem uma sexta na minha segunda!" Sextar virou verbo e não se tem notícias de críticas a essa mudança na estrutura da língua portuguesa…

A regulamentação da publicidade de bebidas alcoólicas, tabaco e medicamentos é feita, primordialmente, pela Lei Federal nº 9.294/1996. A propaganda comercial desses produtos não pode sugerir o consumo exagerado, "nem a indução ao bem-estar ou saúde, ou fazer associações a celebrações cívicas ou religiosas". Também não pode atribuir "aos produtos propriedades calmantes ou estimulantes, que reduzam a fadiga ou a tensão". A lei ainda veda o emprego de "imperativos que induzam diretamente o consumo" e prevê pesadas multas pela sua violação.

ConJur
A política implementada desde a lei de 1996 restringiu duramente a propaganda e logrou reduzir o uso do tabaco. A inserção de imagens ilustrativas dos graves danos à saúde nas embalagens dos produtos passou a ser obrigatória em 2001. Dois anos depois, outra lei especificou o teor de advertências mandatórias na propaganda: "fumar causa câncer de pulmão"; "nicotina é droga e causa dependência"; "fumar causa impotência sexual" são alguns dos alertas obrigatórios. As alterações legais promovidas desde a virada do século 20 incluíram aumento da carga tributária, política de preço mínimo e restrições aos locais de venda e consumo. Fumar em recinto coletivo, público ou privado, foi proibido, mas o tabaco não foi criminalizado.

A mudança nessa política brasileira surtiu resultado bastante positivo para a redução do consumo. Estima-se que o percentual de fumantes na população brasileira caiu de quase 35%, em 1989, para menos de 13% em 2018. Entre os homens, despencou de 43,3% para menos de 16%. As quase 30% de mulheres fumantes hoje não chegam a 10% [3]. Por outro lado, o mercado clandestino aumentou desde o início das restrições legais, chegando a alcançar quase 43% do mercado total. Atualmente, estima-se que o mercado ilegal abarque quase 30% do total [4].

Em razão das restrições legais, já não se vê na dita "grande mídia" propaganda de cigarros com esportistas radicais, caubóis destemidos ou jovens descolados exalando sex appeal com um cigarro na mão e um drink colorido na outra nos moldes encontrados nas redes sociais. Nesse espaço virtual, cuja tentativa de regulamentação tem sido alardeada como censura e ofensa à liberdade de expressão, basta uma passada de dedo na tela do celular para constatar que o merchandising de bebidas alcóolicas e outras drogas parece não se submeter a qualquer imperativo legal. No Instagram, Tik Tok e outras redes, a indução ao consumo e a atribuição de propriedades calmantes e estimulantes ao álcool, tabaco e outras drogas pelos bem-remunerados garotos-propagandas ocorre diariamente e sem qualquer restrição de horário ou classificação etária. "Detalhe pequeno", advertiria o influenciador ao meio-dia das sextas-feiras: para os efeitos da referida lei, cerveja não é considerada bebida alcóolica [5]!

Reforçando, a restrição legal à publicidade prevista na Lei nº 9.294 não se aplica àquela que é a bebida alcoólica mais consumida no Brasil. Pouco importa que a sociedade custeie o serviço de hemodiálise para dezenas de milhares de pessoas em razão do consumo abusivo de cerveja, tampouco os gastos milionários do SUS para tratar os traumas provocados por motoristas embriagados. Não importa se em todos os estudos médico-farmacológicos o álcool é considerado a droga mais nociva para o indivíduo e para a sociedade: para a lei brasileira que regula o uso e a publicidade de drogas, cerveja não é bebida alcoólica!

Não obstante o evidente sucesso do lobby da indústria cervejeira, que fez com que o legislador brasileiro positivasse algo como "dois mais dois são cinco", é inegável que nas últimas décadas houve um esforço coletivo para melhor regular o mercado de algumas drogas. Mas tal esforço somente foi possível graças à existência de um debate público sério a respeito dos malefícios do tabaco e do álcool e da preocupação com a influência que a propaganda exerce sobre os padrões de consumo da população.

Persistissem acerca do tabaco e do álcool o mesmo tabu, preconceitos e mitos que envolvem a maconha, não seria improvável que grupos conservadores, alarmados com a possibilidade de jovens tornarem-se zumbis, ladrões, assassinos ou cadáveres por conta do vício, fizessem lobby no parlamento pela criminalização do comércio e do consumo dessas drogas. E, nesse caso, não seria difícil imaginar que grupos armados entrassem em cena para controlar a distribuição e venda do produto ilícito, com margens de lucro elevadas e cooptação de toda uma gama de agentes públicos necessários para garantir o funcionamento do esquema – exatamente como ocorre com o tráfico de maconha e da cocaína.

Os pontos de venda, hoje regulados pela lei, passariam a ser integralmente dominados por grupos criminosos. Não haveria controle sanitário sobre a produção, transporte e armazenamento. Misturas mais baratas e tóxicas aumentariam os lucros dos traficantes, assim como os riscos à saúde dos usuários. As embalagens dos produtos não conteriam advertências e imagens assustadoras dos males causados pela droga. Milhões de usuários e traficantes dos novos ilícitos seriam presos, processados e condenados. O rótulo de criminosos lhes retiraria oportunidades de emprego, estudo e convivência social. O ineficiente aparato estatal de persecução penal, que hoje mal consegue investigar e punir assassinos e estupradores porque muito ocupados com a repressão da venda e uso de maconha e cocaína, entraria em colapso. O comércio clandestino de tabaco, hoje estimado em pouco mais de ¼ do total, abocanharia 100% do bilionário e secular mercado de tabaco.

Se, além do cigarro, os empreendedores morais resolvessem, numa verdadeira cruzada moral em busca da virtude, da sobriedade e libertação do vício, criminalizar o álcool, os pré-treinos, os esteroides anabolizantes e outras drogas de venda livre ou controlada cujo (ab)uso pode causar perturbação mental, dependência química e graves danos à saúde, é bem provável que em menos de um século — tempo aproximado desde o início da criminalização da maconha e da cocaína — falar sobre essas drogas também se tornaria um tabu.

Na falta de um debate sério, baseado em pesquisas científicas e no conhecimento empírico, torna-se fácil apontar algumas drogas como as inimigas número um da sociedade. Interditado o assunto, é fácil tratar a maconha como o "cigarro do demônio" vinculando-a ao cometimento dos mais terríveis crimes e associando-a a drogas perigosas como a cocaína – que, por sua vez, também é percebida no imaginário social atual de forma bastante diversa do remédio que aliviava dores de dentes de crianças, auxiliava no tratamento da gota e, misturada no famoso refrigerante, acabava com a exaustão do trabalhador na primeira metade do século 20.

Não se pretende pleitear ao tabaco, medicamentos, maconha e outras drogas a mesma permissividade publicitária de que goza a cerveja. Ao contrário, parece muito mais prudente, à luz do conhecimento farmacológico e criminológico disponível, banir a publicidade do álcool — droga que está presente em 90% dos registros de homicídios em que houve consumo prévio de alguma droga [6] — e regulamentá-la melhor nas redes sociais.

Contudo, o exame criterioso da história, da criminologia, da farmacologia e do mercado internacional das drogas tampouco recomenda que o álcool, o tabaco, a maconha e outras drogas sejam criminalizadas, uma vez que os efeitos danosos da proibição superam em muito os malefícios do consumo, mesmo no caso de drogas potencialmente nocivas, como a cocaína. Se ainda persistem dúvidas, basta relembrar o estrago feito pelos gângsteres norte-americanos cujo maior símbolo foi Al Capone, ou pensar em João Pedro, Agatha Felix e outras várias crianças e adolescentes das periferias das cidades brasileiras atravessadas por balas perdidas, ou imaginar a dor de uma mãe que só descobre que o filho se tornou dependente de drogas quando é comunicada que o menino, além de doente, agora está preso.

Não há, no mundo, nenhuma política regulatória, por melhor que seja, que consiga eliminar por completo os malefícios das drogas. Mas existem experiências positivas na regulação desses mercados, inclusive no Brasil, como evidenciado no caso do tabaco. Há dezenas de políticas alternativas à "guerra às drogas" já implementadas ao redor do globo. Em Portugal, desde 2001 não é crime consumir qualquer droga. No Uruguai, a maconha é vendida pelo Estado. A venda de maconha para uso recreativo é realidade em vários estados nos EUA. Na Suíça e no Canadá dependentes químicos recebem heroína do Estado e podem fazer uso em espaços controlados, o que reduziu o número de furtos e fez sumir as “cracolândias”.

Para que o Brasil desconstrua o mito do flagelo das drogas e comece a abandonar a política atual que, apesar de custar bilhões, corromper milhares de funcionários, matar e encarcerar outras centenas de milhares de pessoas, não reduz a oferta e o consumo das drogas ilícitas, o primeiro passo a ser dado é quebrar o tabu e falar abertamente sobre todas as drogas. Enquanto nivelarmos o debate a partir de insinuações de vínculo das drogas com o diabo ou acreditar que a criminalização é mais eficaz que a informação, educação e cuidado, estaremos condenados a recorrer apenas a Deus para não sermos nós a próxima vítima de uma bala perdida ou da fissura de um dependente.

É preciso debater para compreender "a natureza comum de se tomar remédios psicoativos, bebidas alcoólicas, tabaco, café e substâncias ilícitas, separadas por cargas simbólicas altamente significativas decorrentes de seus diferentes regimes de normatização" [7]. Em um Estado laico, é preciso quebrar os tabus e superar o mito. Entre o libera geral e a criminalização há um espaço fértil para uma boa regulamentação. Afinal, o que diferencia o veneno do remédio é a dosagem. Em outras palavras, "nenhuma droga é boa, nenhuma é má: todas são ambas as coisas" [8].

 


[5] O parágrafo único do artigo 1º dispõe que bebidas alcóolicas são aquelas com teor alcóolico superior a 13º Gay Lussac.

[6] UNODC, Global Study on Homicide 2019 (Vienna, 2019)

[7] CARNEIRO, Henrique. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia Literária, 2018, p. 16.

[8] HAGER, Thomas. Dez drogas: as plantas, os pós e os comprimidos que mudaram a história da medicina. Tradução de Antônio Xerxenesky. São Paulo: Todavia, 2020, 336 p. Título original: Ten drugs: how plants, powders, and pills have shaped the history of medicine.

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  • é mestre em Sociedade, Ambiente e Território pela UFMG/Unimontes, especialista em Inteligência de Estado e de Segurança Pública pela Fundação Escola do MP-MG, professor efetivo de Processo Penal da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), promotor de Justiça do MP-MG e membro do grupo Repensando a Guerra às Drogas.

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