Prescrição Intercorrente e o PAF: on ne résiste pas a l'invasion des idées!
5 de julho de 2023, 8h00
Após o nosso último artigo sobre a prescrição intercorrente de multas aduaneiras [1], lemos atentamente os artigos publicados por Rosaldo Trevisan [2], que também tratam do tema. Esses textos merecem nossa atenção não apenas por serem a mais estruturada, senão a única, posição acadêmica publicada em sentido contrário ao que temos defendido, mas para confrontar alguns equívocos que têm sido ecoados pela União nos tribunais.
Trevisan afirma, corretamente, que existem pontos de intersecção entre o Tributário e o Aduaneiro e, por isso, não se pode reduzir um a antípoda do outro. De fato, o grande desafio no tema não é a definição do regime jurídico material, que nos é dado com clareza pela legislação de regência, mas sim estabelecer a natureza do crédito, se tributário ou não.
Existem infrações decorrentes de deveres administrativos 1) estritamente ligados ao controle aduaneiro (deveres aduaneiros); 2) no interesse da arrecadação ou da fiscalização dos tributos aduaneiros (obrigações acessórias tributárias); 3) relacionados tanto ao controle aduaneiro quanto à arrecadação/fiscalização dos tributos (deveres híbridos). Para os primeiros, o crédito decorrente da infração teria natureza não tributária, sujeita à Lei nº 9.873/99, e, para os segundos, natureza tributária, sujeita ao CTN. A complexidade residiria na determinação da natureza e regime do crédito decorrente desses deveres híbridos.
Por outro lado, o próprio Rosaldo Trevisan nos dá pelo menos dois exemplos que pertencem à "parte da área aduaneira que não intersecciona a tributária", (…) "parte essa que, portanto, não estaria sujeita às regras do CTN e do Dec. 70.235/1972, a menos que outro comando legal expressamente o determinasse": 1) os direitos antidumping e compensatórios (artigo 7, §5º da Lei nº 9.019/95) e 2) a multa substitutiva do perdimento (artigo 23, §3º, do DL nº 1.455/76). Nos dois exemplos citados por ele, há remissões exclusivamente ao rito do Decreto nº 70.235/72, inexistindo comando que estabeleça, por remissão, a adoção do CTN para reger essas matérias.
Ora, seguindo a trilha do autor, de que pelo menos essas matérias se sujeitariam apenas ao Decreto nº 70.235/72, mas não ao CTN, pela ausência de remissão, defluem algumas conclusões lógicas:
1) o fato de essas matérias estarem sujeitas ao rito do PAF não afeta a sua natureza não tributária, já que a remissão é feita apenas em relação ao Decreto nº 70.235/72, caso contrário, estar-se-ia sustentando o absurdo de, a depender do procedimento, o regime jurídico do crédito seria alterado (em bom português, para que qualquer um entenda: "o cachorro que abana o rabo, não o rabo que abana o cachorro").
2) Não sujeitos ao CTN, pela ausência de "comando legal [que] expressamente o determinasse", não estariam sujeitas às regras de prescrição e decadência daquele Código — ausência de previsão específica a respeito de prescrição intercorrente no PAF, no CTN, é o fundamento determinante tanto da posição firmada pelo STF nos ED no RE nº 94.462/SP [3], como pelo STJ no REsp nº 840.111/RJ [4].
3) Da conclusão pela inaplicabilidade do CTN à multas aduaneiras "inequívocas", como indicado por Trevisan, parece-nos que a única conclusão lógica seria a necessidade de distinguishing da Súmula CARF nº 11 para esses casos, para que se analise o regime jurídico do crédito e se verifique a aplicabilidade da Lei nº 9.873/99.
Repita-se, a única forma de afastar as conclusões acima seria: 1) sustentar que Trevisan estaria absolutamente equivocado quanto à natureza dos créditos mencionados, o que não nos parece ser o caso; ou 2) que prescrição intercorrente seria matéria processual e dependeria do rito adotado.
Quanto ao primeiro ponto, reluto em acreditar que alguém defenderia, com seriedade científica, que a multa decorrente da conversão da pena de perdimento teria natureza de crédito tributário, pois isso implicaria reconhecer à penalidade original também esse caráter, o que não tem qualquer sentido.
Quanto ao segundo ponto, além de ir contra as lições jurídicas mais comezinhas, também contraria o recente entendimento do STF, firmado no julgamento do RE nº 636.562, onde se afirmou, expressamente, que "A prescrição intercorrente obedece à natureza jurídica do crédito subjacente à demanda" [5]. É óbvio: o Decreto nº 70.235/72 não trata de prescrição e decadência, porque todas são decorrências, como disse a Suprema Corte, da natureza jurídica do crédito, seu regime material, e não do rito procedimental a que se submete [6]. Misturar as duas coisas é um erro grave na compreensão dos institutos.
Parecem-nos, portanto, que as ilações acima seriam inescapáveis, assumindo a existência de casos inequivocamente aduaneiros.
Em um momento, o autor culpa a Portaria MF nº 260/2020 por "ter ensejado a reinterpretação da lei de 1999 [Lei nº 9.873/99]", porque não haveria diversos "tipos de processo", já que todos estariam sujeitos a "um mesmo rito processual, previsto no Decreto 70.235/1972". Esse equívoco já foi esclarecido em outra oportunidade: a distinção entre diversos tipos de "processos" decorre dos distintos direitos materiais a serem aplicados por cada um, podendo haver desde uma diferenciação total de procedimentos (e.g. processo civil e penal), passando por uma coincidência parcial (e.g. processo civil e trabalhista), até uma coincidência total (e.g. processo civil e do consumidor) [7].
A posição do autor, a esse respeito, implicaria a aplicação do CTN para qualquer matéria sujeita ao Decreto nº 70.235/72, já que, em seu entender, o rito procedimental supostamente determinaria o regime material, conflitando, e.g., com a Súmula CARF nº 184, com o Tema 390 do STF (citado supra) e com o entendimento por ele mesmo adotado em outras oportunidades (e.g. acórdãos nº 3401-004.351 [8] e 3403-002.865 [9]).
Argumenta também que a distinção terminológica entre "legislação tributária e aduaneira" teria surgido apenas com a Lei nº 10.833/03, como forma de sugerir que, anteriormente, tudo seria tratado conjuntamente, salvo da doutrina. Esse argumento não procederia ainda que estivéssemos discutindo isso na década de 70.
A distinção entre créditos tributários e não tributários é expressa no artigo 39, §2º da Lei nº 4.320/64, e a extensão conceitual deles foi delimitada, com precisão, pelo CTN, em 1966. O Decreto-lei nº 37/1966 já separava em títulos distintos o Imposto de Importação das demais regras a respeito de controle aduaneiro. A CF/1946, por exemplo, já distinguia a competência para o poder de polícia aduaneira e para direito tributário. Quando menos, são irrelevantes os rótulos terminológicos, em sendo induvidoso que a aplicação das sanções em questão são decorrência do poder de polícia aduaneiro exercido pela União, enquadrando-se exatamente na hipótese do artigo 1º da Lei nº 9.873/99.
A distinção entre os regimes jurídicos é um "palíndromo temporal": não importa se olhamos de 1966 para 2023 ou de 2023 para 1966, que as conclusões serão as mesmas à luz do Direito positivo.
Invoca também o artigo 67 do Ricarf e a redação da Súmula nº 2, para sustentar que o termo "tributário" teria um sentido mais amplo. Felizmente, o próprio Trevisan lembra que os créditos não tributários só são julgados pelo rito do Decreto nº 70.235/72, por força de remissões legislativas, e não pela aplicação direta das regras desse rito, direcionadas apenas aos créditos tributários federais (artigo 1º) — todo o resto o toma de empréstimo, por remissão. Quanto à Súmula nº 2, além de mal redigida, é despicienda, pois reproduz o que já estabelece o artigo 26-A do Decreto nº 70.235/72 [10], aplicável a todos ele adotem.
Por fim, afirma que o artigo 1º da Lei nº 9.873/99 traria um prazo de "prescrição da ação punitiva" e que o artigo 139 do DL nº 37/66, traria uma "extinção do direito de impor penalidade", e que apenas o primeiro previu a contagem no prazo de infração permanente ou continuada. Na sequência, afirma que a aplicação da Lei nº 9.873/99 às multas aduaneiras implicaria na derrogação do artigo 139 do DL nº 37/66.
Quanto a suposta "diferença" fundamental entre os prazos, ignora o REsp nº 1.115.078/RS, vinculante, que fixou que o artigo 1º da Lei nº 9.873/99 traria "prazo decadencial para se constituir o crédito decorrente de infração à legislação administrativa", tendo a mesma natureza e prazo do artigo 139 do DL nº 37/66 — não há conflito normativo entre as disposições.
Em relação às infrações continuadas, assim como para a prescrição intercorrente, deve valer o teor da Lei nº 9.873/99, diante da lacuna do DL nº 37/66 a esse respeito. Haveria derrogação se houvesse conflito — não havendo conflito, em razão do DL 37/66 ser lacunoso a respeito, tampouco haverá derrogação.
Como se vê, os argumentos aduzidos não sobrevivem ao menor esforço crítico, ignorando a jurisprudência do STF e STJ, conceitos fundamentais do Direito e toda sorte de pilares jurídicos que se coloquem entre o cientista e o "dogma" de negar a prescrição intercorrente das multas aduaneiras.
Não prosperando qualitativamente, o autor adotou um argumento quantitativo, sustentando que "o Poder Judiciário, majoritariamente, não admite a prescrição intercorrente sob o rito do Decreto 70.235". Aqui não há divergências, mas uma informação que não condiz com a estatística, conforme competente levantamento de jurimetria elaborado pelo colega Thales Belchior (disponível aqui), que evidencia o contrário: majoritariamente, reconhece-se a aplicação da prescrição intercorrente para as multas aduaneiras!
Para além disso, no dia 9/5/2023, foi julgado o REsp nº 1.999.532/RJ, de relatoria da ministra Regina Helena Costa, analisando a penalidade prevista no artigo 107, IV, "e", do DL nº 37/66, de caráter inequivocamente aduaneiro, e reconheceu expressamente, verbis:
"As Turmas integrantes da 1ª Seção desta Corte firmaram orientação segundo a qual incide a prescrição intercorrente prevista no art. 1º, § 1º, da Lei n. 9.873/1999 quando paralisado o processo administrativo de apuração de infrações de índole não tributária por mais de 03 (três) anos e ausente a prática de atos de impulsionamento do procedimento punitivo. Precedentes."
No seu voto, a ministra Regina Helena estabeleceu um corte: os deveres administrativos posteriores ao desembaraço aduaneiro não teriam perfil tributário, pois não guardam relação imediata com a fiscalização ou a arrecadação de tributos incidentes na operação internacional, mas, sim, com o controle do fluxo de bens econômicos do território nacional.
Ora, considerando o entendimento firmado pelos precedentes da 1ª Seção e o REsp nº 1.999.532/RJ, e a afirmação (de Trevisan) de que há multas inequivocamente não tributárias (como a da conversão da pena de perdimento — artigo 23 e 24 do DL nº 1.455/76), como ainda resta alguma dúvida da inaplicabilidade da Súmula Carf nº 11 para parte dos casos julgados naquele Tribunal?
Poderia haver alguma dúvida a respeito da fixação do regime jurídico para aqueles deveres administrativos que ficam na zona de intersecção entre o Tributário e o Aduaneiro, mas para as situações inequivocamente fora dessa zona, não há mais margem para hesitar e adotar subterfúgios que já foram afastados pela doutrina e, agora, pelo STJ.
Aliás, não haveria razões sequer para não se aplicar o REsp nº 1.115.078 [11], que estabelece com clareza a sua aplicação a infrações aduaneiras, com a jurisprudência do STJ uníssona no sentido de que ele não se aplicaria apenas às multas ambientais, mas a qualquer multa que se enquadre no artigo 1º da Lei nº 9.873/99. Criou-se uma situação pitoresca: o Carf contraria o STJ a respeito do alcance do seu repetitivo, restringindo-o! Com a devida vênia, isso extrapola a divergência de entendimentos e adentra o perigoso campo da desobediência de precedentes vinculantes e descumprimento do próprio Ricarf.
Há no Netflix um documentário chamado A Terra é Plana, que acompanha terraplanistas tentando, por experiências "científicas" demonstrar a validade da sua tese, mas, ao final (alerta de spoiler), o resultado deles acaba por confirmar que o planeta não é plano. Não comparamos quem de nós diverge com terraplanistas, mas fato é que depois que o tema ganhou relevância, argumentos "científicos" têm sido disparados a esmo, buscando infirmar as conclusões, mas que, postos sob escrutínio técnico, acabam sempre por ratificar e fortalecer a inescapável aplicação do artigo 1º da Lei nº 9.873/99.
Acabam, no afã de infirmar a construção jurídica acima disposta, e prorrogar a recalcitrância, utilizam-se de uma "força argumentativa" que é muito mais força do que argumento, esquecendo-se que "nada é mais forte que uma ideia cuja hora chegou", clássica citação atribuída a Victor Hugo.
Para os que analisarão o tema, nos tribunais judiciais e administrativos, vale uma citação, essa sim de autoria comprovada, no L'Histoire d’un Crime, do autor francês: "On résiste a l'invasion des armées; on ne résiste pas a l'invasion des idées" — resistamos à invasão dos exércitos, mas não resistamos à invasão das ideias!
[1] https://www.conjur.com.br/2023-mar-08/direto-carf-prescricao-intercorrente-aduana-replica-critica-grata. A MP nº 1.859-17/99 incluíra o art. 5º na Lei nº 9.873/99, excluindo os “processos ou procedimentos de natureza tributária” em razão da privatividade de lei complementar para dispor da matéria, não tendo absolutamente nada a ver com o rito procedimental ou processual aplicado. Fosse o crédito tributário analisado por outro rito, a exceção seguiria válida.
[2] https://www.conjur.com.br/2023-abr-04/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte e https://www.conjur.com.br/2023-mai-09/territorio-aduaneiro-prescricao-intercorrente-aduana-back-to-the-future-parte.
[3] Diz o min. Moreira Alves: "Ademais, se se quisesse criar prazo extintivo para coibir essa procrastinação, mister seria que a lei (…) se socorresse de outra modalidade de prazo que não o de decadência ou de prescrição".
[4] Diz o min. Luiz Fux: "(…) afastando-se a incidência prescrição intercorrente em sede de processo administrativo fiscal, pela ausência de previsão normativa específica".
[5] Ao final, concluiu o STF pela constitucionalidade do art. 40 da LEF porque o legislador teria apenas transposto o art. 174 do CTN para as particularidades da prescrição intercorrente na execução fiscal.
[6] Quando legislador quer punir a inércia no âmbito processual o faz com meios próprios, como nas hipóteses das preclusões processuais e na perempção.
[7] BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 1, p.66 e ss.
[8] Rel. Cons. Rosaldo Trevisan, j. 29/01/2018.
[9] Rel. Cons. Rosaldo Trevisan, j. 26/03/2014.
[10] Art. 26-A. No âmbito do processo administrativo fiscal, fica vedado aos órgãos de julgamento afastar a aplicação ou deixar de observar tratado, acordo internacional, lei ou decreto, sob fundamento de inconstitucionalidade.
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